por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
Di Cavalcanti, 1966, Mulatas e Pombas

De sua poltrona de inválida, Ana Luiza observa cuidadosamente a neta. O nariz dos Fonseca. Mas as ancas... Admite a contragosto que a menina possui um remelexo típico dos da raça negra. Pretos...
Lembranças passeiam pelo céu azul, pardas lembranças...
Ainda que não quisesse, havia muito mais a admitir na imagem de Marina: aquele brilho nos olhos, a pele queimada de sol, os cabelos... Um longo suspiro e Ana Luiza volta os olhos para o céu.
Ao menos, no céu, nenhum indício de que não fosse aquela tarde, toda ela, mansidão. Recosta suavemente seus pensamentos no espaldar da poltrona. A brisa de abril, vinda do mar, lhe serve de conforto. Abril é um mês de encanto e aconchego. Há anos — ou seriam eras? - Ana Luiza vem se acostumando à magia do outono, sabe bem do murmúrio que, então, as tardes vem musicar por entre as centenárias árvores do jardim dos Fonseca; reconhece, neste, a memória e seus olhos, atentos, vislumbram as disformes figuras que estampam o passado por entre as grossas raízes que rasgam a terra e seus bem treinados ouvidos distinguem o contracanto dos mortos no canto dos pássaros.
A voz de Marina, a dizer qualquer coisa lá adiante, desvia-lhe a vista.
— Vovó Anita, vai chover, quer vir agora? – pergunta a menina.
Depois, irá depois, assim que mal se inicie aquela chuvinha tímida e venha o cheiro bom da terra, desta terra, esta terra cheira a carne, cheira suor, cheira passado.
"À sombra daquele carvalho a gente se amava.”
Para além aos muros do jardim, a praia está quase deserta. Algumas poucas mamães elegantes fazem o sacrifício de vigiar os filhos que brincam na areia, temerosas, muito possivelmente, de um indesejável contato de suas crianças com os moleques pobres que, a esta hora, invadem a praia à cata de garrafas, embalagens plásticas e demais resíduos lucrativos que o dia dos ricos possa ter-lhes deixado.
“Não fossem a brisa e o velho carvalho e este lugar seria hoje irreconhecível."
Já se acostumara. Não se acostumaria, entretanto, à ausência da paisagem de outros tempos. A família Jason possuíra terras a perderem-se de vista naquela região. Hoje erguiam-se arranha-céus em plena encosta, destruindo a mata, agredindo o encanto, a magia, de abril. Sim, são outros os tempos. Antes, a chegada do outono trazia consigo rituais bem mais poéticos do que esta correria de fim de estação. Malas feitas, filhos, netos, crias e criados, todos, afobadamente a preparar a volta à cidade. Esquecida a bela casa de verão, viriam as chuvas, viria o silêncio e Ana Luiza novamente se recolheria à solidão.
Na verdade a ausência da família não a angustiava. Houvera época em que os fantasmas domésticos que, pelo o outono e o inverno, substituíam a presença das jovens gerações, tinham o poder de perturbá-la. Depois aprendera a conviver com eles. Aprendera a conviver com seu próprio mundo. Por fim, dera-se bem consigo mesma.
Cinquenta anos se haviam passado e Ana Luiza esquecera até mesmo aquele rosto decidido, aquela presença morena que tanto amor lhe despertara. Fora um longo trabalho, o do esquecimento. Irônico. Agora ei-lo de volta, ali, revivido no corpo da neta. O mesmo cabelo escuro e brilhante, o mesmo olhar de mil espelhos, o mesmo sorriso branco, franco.
Um risinho irônico brinca nos lábios da velha senhora. Comemora seu bem guardado segredo.
"Ah... que belo escândalo teria sido..."
Orgulha-se de ter sido capaz de silenciar. Naquelas circunstâncias - era tão jovem - bem poderia ter-se deixado dominar pelo desespero e teria sido o fim do reinado da menina Jason, Sra. Fonseca Gonzalez, benemérita figura, dama ilustre da sociedade local. Não teria hoje o aconchego da brisa de abril... Melhor nem imaginar o tanto que não teria... Ainda agora, tanto tempo depois, lhe passa um leve tremor ao relembrar a ansiedade e a agonia dos longos meses de gravidez. O marido - "pobre Gonzalez... que Deus o tenha..." - ficara tão feliz. As colunas sociais do pequeno jornal anunciavam (o daguerreóptico do casal Jason-Gonzales em seu - magnífico jardim de Eden) o esperado "fructo da unnião de duas das mais illustres familias locais”.
Então viera aquela esquisita mistura de sonho e pesadelo.
Os dias da Mansão dos Gonzales eram coloridos, a casa ganhava aos poucos nova vida à espera do novo ser. Mas à noite, entre o linho dos lençois, enquanto o marido roncava seus planos e sua alegria para o tão esperado herdeiro, Ana Luiza sofria em vigília o pesadelo da dúvida, o pavor de imaginar que aquele pequenino ser em seu ventre pudesse, afinal, traí-la.
Na venerável árvore genealógica dos Jason, nenhum mísero galho justificaria, pelo capricho dos gens, um filho negro. Sozinha com o peso de um corpo magoado, Ana Luiza sofreu calada. A alegria espalhafatosa do marido (que ela amava com a dedicação submissa e conformada das mulheres de seu tempo e de sua classe) vinha apenas agravar-lhe a dor e, maior a dor, maior também a certeza de que Ignácio, somente Ignácio e seu amor animal, pudessem fazer brotar a vida em seu corpo pálido.
Ignácio era forte e quente, como a terra.
No último instante, quando as dores eram quase insuportáveis, pensou em dividir com a parteira - uma polaca forte como um touro— sua aflição. Calou-se. Pouco depois abrigava em seus braços uma linda menina. Alva, impressionantemente alva, a quem chamaram Elisa para que seu nome lembrasse sua mãe. E sua mãe, entre riso e choro, tentava rezar agradecendo a Deus, ou a quem quer que fosse, por ter poupado ao marido a tristeza... Gonzalez já não parecia tão eufórico... Desejara tanto um varão, um moleque, um herdeiro, a quem chamaria Daniel.
Não tiveram mais filhos.
O tempo tratou de amparar Ana Luiza e o cotidiano, aos poucos, apagou em seu corpo a lembrança do corpo dele, o homem negro e terno, o homem da cor da terra. Assim, foi possível a ela cumprir sem deslizes o papel que lhe cabia: esposa, mãe, senhora e invejada anfitriã, famosa e festejada tanto por seus brancos aristocracismos quanto por seus discretos atos de benevolência.
Foi timidamente, talvez no princípio mesmo inconscientemente, que Ana Luiza estabeleceu uma atrevida relação entre os cabelos cacheados e escuros da filha de sua filha e aquela adormecida lembrança a duras penas, por longos anos, sufocada.
De sua poltrona de inaválida, à luz da tarde de abril, Ana Luiza observa cuidadosamente a neta. Novamente debate-se entre aquela dúvida, tão antiga.
"Ora... Sonhos, delírios de uma velhota solitária e esclerosada..."
Elisa, sua filha, era indubitavelmente branca, nórdica... Filha legítima de seu falecido esposo, legítima Jason Fonseca y Gonzalez. Lógico... Pele clara, corpo esguio, olhos verdes e o castanho dos cabelos eram per feitamente justificados pela própria origem ibérica de Gonzalez. Se bem que Ignácio não se parecesse a um verdadeiro negro africano. Tinha os mesmos traços finos de Elisa, por exemplo; traços que não acusavam sua condição de mestiço... Mulato*, como mulatos eram a maioria dos colonos de então...
De sua poltrona de inválida, Ana Luiza observa Marina, a filha de sua filha. A pele morena da menina fora logo explicada por "esse hábito moderno de deixar as crianças passarem a metade da vida na praia". E, por todas as suas férias escolares, ano após ano, Ana Luiza recebia a neta em sua casa de verão. E, vendo sem ver, viu Marina crescer, a correr - pés descalços na praia, corpo úmido de mar, cabelos brilhando em sal e areia, colorida em sol. Tornou-se mulher. Mulher de corpo rijo, moreno, exalando saúde. O sorriso branco, o olhar de mil estrelas, os gestos brejeiros e nenhuma semelhança com os empoeirados retratos de família deram, por fim, à Ana Luiza a certeza.
Benvinda certeza. Aquela pele clara, a fragilidade de Elisa não poderiam mesmo ser nada mais que outro dos muitos disfraces do preto Ignácio, eterno brincalhão.
Sob um velho carvalho, entre a brisa de abril, Ana Luiza observa a figura alegre de Marina. Talvez gostasse de contar à neta, recordar para ela toda a beleza daquele avô desconhecido, ignorado, talvez desprezado. Mas nesse momento basta-lhe a certeza. Benvinda certeza. Como se, lá do outro lado da vida, o preto Ignácio, com seus alvos dentes e sorriso de espuma do mar, zombateiro e amoroso, estivesse a pregar-lhe a derradeira peça.
4 de abril de 1976
*Obs, em 2024: Em 1976 a palavra "mulato" ainda não era considerada ofensiva.
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