A Maldição do Segundo Anterior
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 3 de mai.
- 4 min de leitura
por José Reynaldo Walther de Almeida
Uma tarde, era sábado. Eu descia uma rua e atrás, no carro estava a Gabriella, minha filha, então com uns 6 anos. O sinal estava vermelho e eu vi e pensei... vermelho? Pode passar. E, passei. No meio do cruzamento me dei conta do erro. Não vinha ninguém... nao precisei frear. Só ouvi a Gabi dizer...papai, você passou no vermelho. Um segundo antes, inconscientemente, sabe-se lá como é porque, a decisão já estava tomada. Benjamin Libet levantou essa lebre há uns 25 anos. Então, escrevi o post. Espero que gostem. Fiz uma analogia com um filme. Gostei.

Pense na diferença fundamental entre uma fotografia e um filme. A foto captura um instante congelado, um momento estático. O filme, por outro lado, é movimento, é fluxo, é uma sucessão de quadros onde cada um só ganha sentido e continuidade em relação ao anterior. Qual deles representa melhor a experiência de viver?
Instintivamente, sentimos que a vida é um filme. E a neurociência moderna confirma essa intuição de uma maneira profunda: o que percebemos e como agimos no quadro “atual” da nossa vida é inextricavelmente ligado ao quadro que veio imediatamente antes, aquele que é quase imperceptivelmente diferente do atual, mas que carrega todo o impulso e contexto. E, além do mais, não pode ser apagado, pois é passado, e o passado está inevitavelmente cristalizado. Um estranho e maravilhoso emaranhamento entre passado e presente.
No começo do nosso filme pessoal, existe um roteiro base: nossa herança genética. Ela define o sexo, os traços iniciais do protagonista (nós), o cenário fundamental. É a estrutura narrativa primordial.
Mas nenhum filme é apenas o roteiro. A direção – que aqui representa a influência do ambiente, das nossas experiências, do aprendizado – modula como cada cena é filmada. A epigenética seria como ajustes de iluminação ou foco que o diretor faz em tempo real: certos genes (partes do roteiro) são mais enfatizados ou obscurecidos, adaptando a performance à situação. Essas são edições feitas nesta exibição do filme, geralmente não alterando o roteiro mestre que será passado adiante, diferente das mutações, que são reescritas no próprio roteiro e transmitidas para as próximas gerações.
Agora, para que o filme seja exibido, precisamos do projetor: nosso cérebro. E como todo projetor, ele não é instantâneo. Leva um tempo mínimo, mas real, para processar e exibir cada quadro na tela da nossa consciência. Existe um pequeno “delay”.
E aqui entra uma observação desafiadora e maravilhosa: não existe filme se não existir uma sucessão de quadros, sendo que o quadro atual depende de todos os quadros, inclusive daquele último. A sensação de movimento, a lógica da cena, a própria percepção do “agora” dependem vitalmente do quadro anterior. Aquela ação automática, o reflexo, a palavra impensada – são como a continuidade natural do movimento capturada entre um quadro e o seguinte. O cérebro, para manter a fluidez do filme, utiliza a informação do quadro anterior para preparar e exibir o atual de forma quase instantânea do ponto de vista da experiência, mesmo que a preparação tenha começado “nos bastidores” (inconscientemente) um pouco antes, baseada no que acabou de acontecer. O comando interno no sinal do transito “Vermelho, passe!” embora totalmente errado é a consequência direta da cena que estava se desenrolando no quadro anterior, e no anterior, e no anterior. Certo ou errado depende de muitos eventos passados que se manifestam no presente efêmero, que rapidamente se transforma no quadro anterior, passado, imutável.
O que isso significa para nós, os protagonistas e, simultaneamente, a audiência do nosso próprio filme? Significa que a sensação de estarmos escolhendo e agindo puramente neste quadro pode ser parte da magia do cinema da mente. Estamos imersos na cena atual, mas ela é impulsionada pelo fluxo que a precede. Nossa agência, talvez, não resida tanto em controlar cada quadro isoladamente (o que seria como tentar mudar um filme frame a frame enquanto ele está rodando), mas em entender a narrativa, refletir sobre as cenas passadas e, com essa consciência, tentar influenciar o roteiro das cenas futuras, o arco geral do nosso filme.
A ciência nos oferece as ferramentas para sermos melhores “críticos” e “historiadores” do nosso próprio filme. Ela nos ajuda a entender o roteiro genético, as técnicas de direção (ambiente, epigenética), a mecânica do projetor cerebral e, crucialmente, a importância da continuidade entre os quadros.
Portanto, celebremos a natureza cinematográfica da sua existência. Nós não somos uma foto estática. Somos um filme em constante exibição, onde cada momento se apoia no anterior. O “quadro anterior” não é necessariamente uma maldição, mas a garantia da fluidez, da história, da própria vida. Entender isso é apreciar ainda mais a complexidade e a beleza de ser essa narrativa em movimento, consciente de que cada instante, por mais fugaz, é parte essencial da sua extraordinária produção. E talvez, ao nos tornarmos mais conscientes de como nosso filme é feito, possamos participar mais ativamente da direção das cenas que ainda virão.
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