por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Guará - o pássaro - Piranga, vermelho. O Guará é um pássaro que nasce preto e vai se tornando vermelho, à medida que cresce.
A Iolanda, manicure das estrelas, morava pra lá de Santo Amaro, nos lados da represa do Guarapiranga. Ela levava, de ônibus, mais de duas horas para ir daqui de casa, na Avenida Paulista, até a sua casa. E olhe que o ônibus, pela Av. Santo Amaro, anda mais depressa que os carros porque vai pelo corredor exclusivo.
O trânsito é uma absoluta insensatez. Eu só voto em candidato que se comprometer a fazer novas linhas de metrô e a melhorar o transporte público. Hoje pouco uso meu carro. Passei a odiar automóveis. Procuro andar o máximo a pé ou de metrô. Carro é cafona. É ultrapassado. Egoísta. Poluidor.
Mas nem sempre foi assim.
Na verdade, o carro era o centro da vida de muita gente, há décadas passadas.
Particularmente, eu adorava meus carros. Ganhei um gordini quando fiz 18 anos (chii... faz tempo!!! rs...) e tive uma coleção de fuskas, de várias cores, modelos...
No comecinho dos anos 1980 eu trabalhava numa agência de publicidade que ficava ali em frente à cinemateca, no largo Raul Cardoso, quase no Ibirapuera. E frequentava um clube na represa do Guarapiranga, o Clube de Campo do Castelo, onde eu passara, inclusive, parte da minha infância. Bom, era um clube de campo, porque, quando ele foi criado, a região em torno da represa era “campo” e não cidade, como é hoje.
Então, na minha hora de almoço, eu pegava o meu fuska e ia até o clube. O marinheiro já sabia que, quando estava sol, nós iríamos esquiar naquela hora. Botava os barcos na água. Meu primo Eduardo Zocchi, eu e outros amigos, aparecíamos. Esquiávamos. Tomávamos banho. E voltávamos para as nossas atividades profissionais. Tudo isso no curto espaço das nossas duas horas de almoço.
Bom, pra fazer isso hoje, nós levaríamos duas horas para ir, duas para voltar e, é claro, seria impossível. Mas, naquele tempo, não havia trânsito e a gente ia em 15 minutos. Afinal, são apenas 10 km do Ibirapuera à represa. E é francamente ridículo levar duas horas para percorrer 10 km.
Quando eu ando a pé, em 1h20’ faço 5 km...
Meu pai, no entanto, levava duas horas para ir do centro da cidade, onde morava, à represa do Guarapiranga, na década de 1930. Mas isto porque as ruas não eram asfaltadas, não havia avenidas, e os velhos automóveis andavam devagar, quanto mais na lama...
Em 1937, meu pai esteve no Castelo, que ainda não era um clube mas sim a residência de um alemão, diretor da cervejaria Brahma. Ele havia construído uma réplica de um castelo europeu, no alto de uma colina que desabava às margens da represa. Meu pai e alguns amigos acamparam lá e filmaram.
Vinte e dois anos depois, um grupo de diretores do Clube Piratininga (que na década de 1950 era o máximo!) resolveram fundar o Clube de Campo do Castelo. Meu pai adorou! Ele tinha gostado muito do lugar quando estivera lá no passado. Comprou logo um título e foi diretor de patrimônio do clube durante muitos anos. Eu me lembro dele inspecionado cada detalhe. Nem os trincos das portas escapavam de seu olho clínico.
Eu tinha apenas oito anos de idade quando comecei a freqüentar o Castelo.
Quando eu tinha dez, um dia vejo uma enorme caixa no escritório do meu pai. Tinha um desenho esquisito, de alguma máquina que eu nem podia imaginar o que fosse. Era um motor de popa que seria instalado num barco de madeira que o Flório construíra para nós. O Flório era o dono de um estaleiro que ficava ali ao lado da barragem da Guarapiranga. Meu pai construíra o barco em segredo. Era uma surpresa para nós.
Então todos nós, a família inteira, aprendemos a esquiar.
A Represa do Guarapiranga começou a ser construída em 1906 e foi inaugurada há mais de cem anos, em 1908. Ela foi concebida para atender as necessidades de produção de energia elétrica na Usina de Parnaíba e foi construída pela companhia inglesa Light que, por décadas, foi a empresa responsável pelo fornecimento de eletricidade em São Paulo, até ser substituída pela Eletropaulo.
Vinte anos depois de inaugurada, em 1928 a represa passou a servir como reservatório de água potável.
Chama-se “do Guarapiranga” e não simplesmente Guarapiranga, porque este é o nome do rio principal que a abastece. É um termo indígena e significa Guará Vermelho.
A criação da represa, há um século, trouxe uma nova vitalidade para o povoado de Santo Amaro, criado em meados do século XVI no bairro da capela do Socorro por indígenas descendentes do cacique Caiubí.
A partir de 1827, Santo Amaro recebeu colonos imigrantes da Alemanha. Por isso, há meio século, era comum encontrar em Santo Amaro tipos caboclos com olhos azuis.
Nos anos 1920 a represa do Guarapiranga se tornou um recanto turístico. Belas casas foram construídas às suas margens, principalmente na baía da Riviera, que levou este nome em alusão à famosa Riviera francesa. Famílias de industriais paulistanos, então chamados de novos-ricos, ali passavam os seus fins de semana. Foram surgindo também clubes. Dos mais tradicionais, nasceram os grandes campeões brasileiros de Vela. E bairros foram sendo criados ao redor da represa: Veleiros, Rio Bonito, Interlagos, todos com nomes alusivos às coisas náuticas.
Uma legião de primos e eu nos divertimos muitíssimo na represa nos anos 1960. Mas, em 1971, meu pai ficou muito bravo com seus companheiros de diretoria do Castelo porque eles cismaram de construir uma casa de barcos exatamente no ponto onde a represa, em tempos de seca, ficava sem água.
O Velho Vasco ficou uma fera. Vendeu o barco e o título do clube.
Mas oito anos depois comprou outro título para mim. Vinha eu de uma vida de boemia, de bar em bar na noite paulistana e estava querendo mudar tudo: fazer esporte, viver de dia e não mais à noite. Voltei a freqüentar o clube no final dos anos 70 e fiquei lá mais um cinco anos, até começar a trabalhar na TV, casar com um sujeito maravilhoso mas que tem medo de água... enfim...
Hoje Santo Amaro e adjacências têm a maior população nordestina de São Paulo, mas, na parte central do bairro e também em Interlagos, ainda residem muitas famílias descendentes dos primeiros imigrantes alemães.
A partir dos anos 1980 as margens da represa foram sendo densamente povoadas, em alguns casos em áreas preservadas, portanto com loteamentos ilegais. Os esgotos correm para a represa.
A poluição faz surgir algas sobre as águas da Guarapiranga
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E isso acontece há mais de 20 anos porque eu mesma me lembro de, numa manhã de sol, chegar ao clube e encontrar a água da represa completamente parada, coberta por uma camada de gelatina verde. Água parada é o sonho dourado dos esquiadores que, ao contrário dos velejadores, praguejam contra o vento que ondula a superfície. É uma delícia deslizar em águas paradas. Naquele dia, o leque d'água levantado por nossos esquis era também verde.
Fato é que a represa do Guarapiranga faz parte da minha vida e é um pedaço importante dela.
Hoje eu não voltaria para lá. Ficou muito longe e muito feio, comparado ao que era antes. Meu primo Eduardo (um dos que aprendeu a esquiar com meu pai) ainda frequenta a represa e ensinou seus filhos a esquiar, todos curtem. Eles me chamam para ir com eles mas eu não sinto nenhuma atração pela volta ao meu passado. Gosto da memória, mas não sou saudosista.
Agora, nessa história toda tem um detalhe engraçado. São as coincidências da vida.
Nos anos 1920 a família Von Bullow, fundadora da cervejaria Antártica construiu sua casa de campo na margem esquerda da represa. Do outro lado, Robert Kutschat, diretor da Brahma, construiu o Castelo, que virou o clube em 25 de agosto de 1959. Robert morrera em 1948, sem nunca deixar de morar no Castelo e a propriedade então mudou de dono, comprada por Luis Romero Sanson, o criador do bairro de Interlagos. Ele alugou o Castelo para uma missionária escocesa que instalou ali um colégio interno feminino, o Saint Georg. Durou uns poucos anos porque Sanson, endividado, entregou a propriedade ao banco AE Carvalho que acabou, com o pessoal do clube Piratininga, criando ali o clube.
No começo dos anos 1950 a Cia. Cinematográfica Vera Cruz fez um filme de mistério no Castelo. Era estrelado por Eliane Lage, Procópio Ferreira e Mário Sérgio.
Alguns anos depois, quando o Castelo já era clube, meu pai, meu irmão Alvan, meu primo Sergio Marques e o então desconhecido Jô Soares, cogitaram de criar lá uma série de TV: o Castelo seria (como já tinha sido de fato) um colégio de moças e ambientaria a série. Para estrela, escolheram a Regina Duarte, uma mocinha iniciante na carreira de atriz. Muito engraçado. Pena que nunca se concretizou.
Pois bem, a Antártica e a Brahma foram, por décadas, as duas maiores cervejarias brasileiras. Uniram-se nos anos 1990 para formar a AmBev.
Mas lutaram sempre entre si pelo domínio do mercado.
Quando eu deixei o clube Castelo e me afastei das lembranças de Kutschat e da Brahma, que ali viviam, foi exatamente no ano – 1985 – em que viemos morar no edifício Paulicéia, na Avenida Paulista, onde estamos até hoje.
Só alguns anos depois, em 1991, quando pesquisei a história da avenida para fazer o filme comemorativo dos 100 anos de fundação dela, é que descobri que o prédio onde moro fora erguido no terreno onde originalmente estava a casa da família Von Bullow, dona da Antártica.
Passei quase toda a minha vida, portanto, em lugares onde habita a memória das duas ilustres famílias cervejeiras do Brasil. E casei com um sujeito que foi, por anos, diretor da associação de revendedores Brahma, depois, Ambev. (Não é a toa que, quando se trata de cerveja, sou muito boa de copo...).
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