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INVASÃO

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 22 de abr.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 23 de abr.

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano





Lilian Rosa, 2009, Indígenas
Lilian Rosa, 2009, Indígenas

Idalina nasceu no dia 22 de abril de 1970. Seus pais sempre, nas comemorações dos aniversários dela, diziam: “Ah, filha, você nasceu no dia do descobrimento do Brasil!”

 

A menina, porém, à medida em que foi crescendo e aprendendo, começou a preferir dizer que nascera no Dia da Terra. Afinal, entendera ela, o descobrimento do Brasil não fôra bem isso... E nem era assim tão digno de marcar a data, mais uma vez, de sua chegada ao nosso Planeta.

 

Ela chegara no dia em que o senador americano, Gaylord Nelson (1916-2005) promovera um protesto, que reunira 20 milhões de pessoas, contra o tratamento que os humanos estavam dando à sua casa natal. E esse dia acabara se tornando, com o reconhecimento da ONU, o Dia da Terra.

 

Idalina, desde que que se entendera por gente, sentira a sua forte ligação com a terra. Nem poderia ser de outra forma se era taurina, nascida no primeiro dia do signo zodíaco que a identificava.

 

Quando ela cursava o ensino básico, em plena ditadura militar, a versão histórica sobre a efeméride de 22 de abril, era aquela velha lenda de Pedro Álvares Cabral chegando às costas brasileiras por acaso. No entanto, à medida que seus estudos prosseguiam e, depois do advento da Internet, Idalina passou a ter certeza de que o Brasil não fôra “descoberto” pela expedição marítima de Pedro Álvares Cabral, porque a viagem dele teria sido intencional, já que existiam muitos relatos sobre a existência dessas terras, ainda pouquíssimo exploradas, mas alcançadas por Colombo anos antes, em 1492, e por outros navegadores.

 

Assim, Idalina se convencera de não ter nascido “no dia do Descobrimento do Brasil”, mas sim no “dia da Invasão do Brasil” pelos europeus que visavam explorar as riquezas que porventura houvessem do outro lado do Atlântico.

 

Seu nascimento, nesse caso, marcado por um ato similar aos atos de guerra, era apenas coincidente em dia e mês. Já, em se tratando do Dia da Terra, era completamente coincidente: dia, mês e ano, 22 de abril de 1970.

 

Passara toda a sua infância e juventude sem muita consciência do que ocorria em seu próprio país, como, aliás, acontecia com a maior parte da população brasileira, ocupados, todos, que estavam com a ilusão do chamado “milagre” forjado economicamente pelos militares, que diziam ser esse o país do futuro, a terra abençoada por Deus e bonita por natureza, um país para se amar ou então, deixar... E a censura a todos os meios de comunicação existentes à época (a Internet só apareceria duas décadas depois) garantia mesmo que pouquíssimas pessoas tivessem consciência da arbitrariedade do regime militar, da tortura, da morte e do sumiço impostos aos opositores da situação política.

 

Idalina tinha 15 anos quando aconteceu a Abertura e, finalmente, depois de 21 anos vivendo sob as botas militares, os civis teriam a oportunidade alcançar o poder. E, aos poucos, com o passar do tempo, foi descobrindo que vivera dentro de uma grande mentira.

 

Lembrava-se, por exemplo, de seu pai, entusiasta do regime dos milicos, a dizer, quando ela ainda era bem criança, que a rodovia Transamazônica, que começara a ser aberta em 1972, significava o avanço da civilização sobre a barbárie, da unificação do resto do país com sua floresta inexplorada, levando desenvolvimento e o progresso tecnológico aos povos que ali se encontravam, garantindo a demarcação de nossas fronteiras, evitando que estrangeiros viessem a explorar, sem controle, as nossas riquezas naturais e outras pérolas semelhantes, divulgadas grandemente pela propaganda oficial.

 

Ora, hoje – reflete Idalina – se sabe que o primeiro dano da rodovia foi à própria floresta, o desmatamento, que derrubava árvores de mais de 50m de altura e com centenas de anos de vida, criando ilhas isoladas de vegetação, destruindo o ecossistema, levando à mortalidade das espécies e à redução da diversidade genética. Isso sem contar o grande impacto causado às populações indígenas.


E para que? O tal “desenvolvimento” que a obra levaria à região resultou em pífios benefícios, se comparados aos grandes malefícios de tal empreitada.

 

Não bastasse a invasão portuguesa (e de outros povos europeus), iniciada naquele 22 de abril de 1500, que dizimou a maior parte das aldeias indígenas, pela matança consciente, pela tentativa frustrada de escravizar os povos originários e pela matança inconsciente, através de exposição do povo nativo a vírus para os quais eles não possuíam defesas (como o do sarampo, por exemplo), não bastassem todas essas tristezas que o chamado “progresso” impunha à Terra, a maldita estrada proporcionara a presença, na floresta, dos garimpeiros, dos mateiros, dos traficantes de minério e madeira que, até hoje, continuam atuantes, destruindo imensas áreas florestais na Amazônia, modificando o curso dos rios aéreos, que regulam as chuvas para muito além das matas onde são gerados, agravando ainda mais as mudanças climáticas que já nos castigam com os “desastres naturais” (como são eufemisticamente chamados, sendo que são, de fato, desastres causados pelos seres humanos e sua exploração desmedida e inconsequente dos recursos  do planeta).

 

Por tudo isso – e muito mais – Idalina não quer ter o seu aniversário associado ao dia do início da invasão europeia no Brasil. Mas, antes, orgulha-se de ter nascido no mesmíssimo dia em que se criou o “Dia da Terra”, há 55 anos passados.

 

Agora, recém aposentada do funcionalismo público, onde atuou mais de 30 anos como professora e diretora de escolas do ensino médio, Idalina, no Dia da Terra, assume a Presidência da ONG Brasil Verde, que ajudara a criar havia mais de duas décadas. Nessa condição, participará da COP 30, a Conferência do Clima, que se realizará, desta vez, no Brasil, em Belém do Pará, em plena Amazônia.

 

Consciente de que esses encontros internacionais se transformam em praticamente nada no sentido de estabelecer políticas eficientes para combater a destruição do planeta, muito blá-blá-blá e pouca resolução, prepara-se para a reunião como quem se prepara para a guerra.

 

Profundamente triste pelo desaparecimento de Francisco, o Papa da Paz, da Ecologia, da Reforma da Igreja Católica, um espírito daqueles que raramente se vê nascer na Terra, pensando no santo cujo nome ele adotara, aquele hippie da Idade Média, que amava os bichos e a natureza e também a simplicidade, como o pontífice que perdêramos... Justo agora – lamentava Idalina – quando a direita retrógrada, negacionista da ciência e da cultura, avança politicamente em todo o mundo.

 

Idalina, porém, era como Clara, a versão feminina de Francisco. Ela também renunciara às suas origens burguesas e vivia com simplicidade, consumindo o mínimo, economizando água e energia, reciclando o lixo, cultivando árvores e plantas em seu pequeno apartamento, distribuindo mudas, nos fins de semana, aos transeuntes das avenidas da metrópole onde residia e passara a vida ensinando aos seus alunos todas as práticas sustentáveis, tentando plantar nos jovens a semente da consciência ecológica.

 

Nunca desanimara, apesar da grande oposição que tivera de enfrentar em suas atividades profissionais e até na própria ONG onde militava. Sabia, porém, no fundo de sua alma, que lutava contra a corrente, uma corrente cada vez mais forte e mais brava, amparada hoje pela grande divulgação que obtinha nas redes sociais.

 

Mas... fazer o que? Para isso tinha vindo ao mundo. Para lutar por uma vida mais sadia, mais feliz, mais em comunhão com todos os seus irmãos da Natureza. Chamava-se Idalina e, só depois de já madura, descobrira no Google o significado de seu próprio nome: “nascida na floresta”. E na criação do Dia da Terra.

 

Na noite de seu aniversário de 55 anos, Idalina, que jamais tivera tempo para ter seus próprios filhos (“meus alunos são meus filhos”, costumava dizer) e cujas atividades diárias intensas não lhe deixavam brecha para criar os sempre desejados pets, sonhou que das muitas plantas, que mantinha em seu quarto, brotavam filhotes de pássaros, bugios, onças pintadas, lagartos, jabutis, cobras e outros bichos, todos subindo pelas cobertas de sua cama, aconchegando-se a ela, como se aconchegariam às suas próprias mães.


Acordou, no meio da madrugada, sorrindo, aquecida e em paz. Antes de se virar na cama, percebeu pela janela, a luz delicada da lua minguante. E voltou a dormir o sono dos justos.


Bel, 2025, abril, 22.

 

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