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João Gancho

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 1 de abr.
  • 3 min de leitura

ou A Mensagem da Forma

(publicado na Revista "Cá Entre Nós", de Carlos Leite Ribeiro, em Portugal)


por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


Makysim Iaramenko, Enganchado
Makysim Iaramenko, Enganchado

Meu nome é João Gancho.

Um dia, quando ainda pequeno, cansei de olhar só pra cara da miséria.


O rádio do vizinho (naquele tempo não tinha TV e muito menos internet) falava de coisas e coisas que eu jamais teria, nem sabia como eram. Olhei bem pra cara da minha mãe e disse:

-- Velha, vou cair no mundo. 


A velha era linda. Gasta, acabada, esbodegada pela vida dura que tinha, mas linda. O pai sempre bêbado, a perder seu salário inteiro nos cassinos brilhantes, jogando com quem podia e o velho não podia...Mas o vício é danado. Não escolhe condição.


Eu tinha 9 ou 10 anos. E andava mesmo cheio de ver meus irmãos (eram seis) passando necessidade. Naquele tempo, no Brasil, a gente era pobre, mas não era miserável. Se meu velho não jogasse, somando o que ele ganhava com o que a velha fazia lavando roupa dos outros, daria pra viver com decência. Mas eu, na ingenuidade da infância, acreditava que, com uma boca a menos pra alimentar, a minha família ia viver melhor. E eu poderia conhecer a cidade, o mundo, as tais coisas das quais os rádios falavam.

 

Minha mãe ficou olhando, como quem não tinha entendido:

-- Vai aonde, o menino?

-- Cair na vida, minha mãe. Sair por aí.

A velha sorriu um sorriso de sábia:

-- Não chegue tarde pro jantar, que hoje tem sopa.


Juntei tudo o que eu precisava, ou achava que precisaria, para a grande aventura. A velha me olhava com o rabo do olho, sem dizer nada. Ela jamais impedia a gente de concretizar um plano importante. Era uma velha sábia como poucas. Ficou só me observando. E senti que lhe devia lealdade. Então, quando a trouxa com as coisas ficou pronta, me cheguei muito manso mas muito sério pro lado dela:

-- Não me espera pra jantar não, tá?

-- E amanhã?

-- Não sei quando, mãe. Vou tentar a sorte na cidade.

-- Vai com Deus, Joãozinho.

E me sapecou um beijo na testa. 


Isto foi há mais de 60 anos. Nunca voltei. 


A cidade era dura e cruel, mas eu tinha bom jogo de cintura. Montei minha caixa de engraxate, trabalhei duro no armazém, enfrentei bandos por um ponto onde pudesse ganhar a vida engraxando o sapato dos ricos. Vendi bilhetes da loteria federal. E aprendi tudo o que sei nas ruas de São Paulo.


Estudei, também, Deus sabe como. E venci a cidade. Fiquei rico, respeitado, estudei no Exterior, na condição de bolsista, arrumei emprego numa empresa multinacional e fui subindo, subindo, subindo. Até deputado virei.


Tudo por uma paciência infinita e uma inacreditável habilidade para engolir e digerir sapos. 


Pouca gente poderia reconhecer em mim, importante personagem da pantomina nacional, o menino João Gancho.


Nem eu mesmo entendo o que foi feito dele, em tantos me tornei: Doutor João. Deputado João. Comendador João. Presidente João. 


Só  sei que, na calada da noite, ele volta, o menino João. O que fugiu de casa antes do jantar.

O mesmo menino que carregava consigo, aonde fosse, um velho gancho de carga, tirado do lixo, como se fosse uma joia. 


O gancho que me valeu o apelido e a vida porque foi olhando pra ele, conversando com ele como se fosse um amigo, nas longas madrugadas geladas da minha infância solitária da cidade, que eu percebi a mensagem da forma: enganchar.


Foi isso o que fiz então ao longo da minha trajetória: enganchei-me a toda e qualquer pessoa, a toda e qualquer ideia, a tudo, enfim, que eu acreditava estar no caminho da ascensão social e financeira.


Nunca fui leal, a não ser aos vencedores, aos que podiam me arrastar, enganchado, em direção ao sucesso. 


Não. Minto. Leal eu fui à minha mãe, quando lhe disse que não voltaria para o jantar. 


Antonio Neto Gostei da estética generosa, mesmo para uma sociedade enganchada de forma mesquinha há tantas décadas


Antonio Carvalho do Nascimento -  Bel.  Lindo, simples, despojado, verdadeiro!


 António  de Andrade Albuquerque - Cara Isabel: Naturalmente, mais um conto seu realçando espírito de observação profundo de uma forma singular e objectiva. Uma fotografia de um dos muitos milhares de «perdidos» que navegam nos caminhos sinuosos da vida, perdendo--se na sua maioria, vencendo na minoria e... muitas vezes esquecendo-se do «caminho amargo» percorrido e recusando a mão que um semelhante lhe pede...

Um abraço,  António

 


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