por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Magdala
Magdala era o seu nome de guerra. Na verdade, chama-se Magdalena e nascera numa pequena cidade do interior do estado.
Seu pai era mestre de obras e sua mãe cuidava da pequena casa onde viviam. A vida não era muito fácil, já que o casal tinha, além dela, mais quatro filhos, dois homens e mais duas mulheres. Os meninos começaram cedo a trabalhar. Um era mecânico de automóveis, profissão que aprendera com um vizinho da família, que tinha uma pequena oficina. Outro foi trabalhar como empacotador de um supermercado, o primeiro estabelecimento do gênero que se instalara na pequena cidade. A irmã mais velha arrumou um lugar de recepcionista com um dos médicos que tinha consultório no bairro e a do meio era babá na casa de uma das famílias mais tradicionais da região. Só Magdalena, a caçula, apenas estudava e via televisão a tarde inteira.
Foi na televisão que descobriu seus sonhos. Sonhava com as mais belas roupas, sonhava com os automóveis luxuosos, sonhava com cabeleireiros e institutos de beleza, sonhava com a Rua Oscar Freire.
Quando a primeira lan house se instalou na cidade, Magda foi uma das primeiras frequentadoras. Bonita e charmosa, insinuou-se para o dono do lugar e logo ele concluiu que aquela morena poderia ser um excelente chamariz para o seu estabelecimento. Assim, ensinou a ela os mistérios do computador e, em troca da recepção aos clientes que ela fazia todas as tardes e começos de noite, era permitido a ela navegar pela Internet sem pagar.
Foi na Internet que ela acabou conhecendo um rapaz com quem frequentemente conversava num site de relacionamento. E, ingenuamente, contou a ele seus sonhos. Estava meio velha – tinha 17 – para ser modelo, mas sonhava em conseguir um trabalho na capital e subir na vida, poder andar nos carrões que via nas novelas de TV, poder fazer compras no Iguatemi e na Oscar Freire...
Ele – Demóstenes era seu nome, Demo, o apelido – prometeu que, no ano seguinte, quando ela completasse 18 anos, mandaria uma passagem para que ela viesse trabalhar em São Paulo. Ela não era a recepcionista da lan house? Poderia ser recepcionista na empresa dele, que atuava no ramo de entretenimento.
Naquele ano, Magda concluía seu curso de segundo grau. A família fazia discreta pressão para que ela afinal, a exemplo de seus irmãos, conseguisse um emprego. Então ela anunciou que, ao completar 18 anos, em fevereiro, viajaria para São Paulo, onde já conseguira um trabalho e, na capital, se prepararia para prestar vestibular.
Para seus pais, e até para os seus irmãos, era difícil ver partir para a cidade grande, tão cheia de perigos, a caçula da família. Mas, na simplicidade dos seus sentimentos, todos compreendiam que aquela menina era especial, que tinha um destino a cumprir, diferente e talvez mais grandioso do que as felizes rotinas de seus irmãos.
Então, como acontece a tantas moças ingênuas e sonhadoras, um dia Magda desembarcou em São Paulo para descobrir que o emprego que a esperava era o de garota de programa de uma casa sofisticada num bairro nobre da cidade.
Ela, que jamais passara das preliminares do sexo com seus eventuais namoradinhos do interior, sentiu-se traída, vilipendiada, assustada. Mas, diante dos argumentos do patrão, concluiu que, para ela, aquele seria o único caminho possível para uma vida de luxo.
E a vida se tornou mesmo um luxo. Numa única noite, a nova Magdala ganhava duas vezes o que Magdalena ganharia num mês como recepcionista.
Não era muito fácil aguentar as fantasias idiotas dos clientes, a humilhação de algumas práticas, a estupidez de outros. Mas havia também os carinhosos, o bons de cama, os generosos. Recebeu várias propostas para sair da casa e tornar-se a amante oficial de alguns. Ela ria e dizia que sua liberdade não tinha preço.
Foi se sofisticando. Frequentava bons salões de beleza, lojas de alto luxo e era uma das moças mais disputadas da casa. Tudo era encanto. Uma nova bolsa. Um sapato italiano. Um vestido de seda. O ambiente chique e lindo dos salões de beleza, o perfume dos produtos... O preço a pagar por isso parecia até baixo.
Messias
Messias Vito era o nome do rapaz e, como Magdala, ele também tinha um nome de guerra: Kiki Besteira, a maior audiência matinal de uma rádio AM bem colocada no ranking das emissoras paulistanas e com milhões de acessos na Internet.
Kiki, em seu programa, denunciava todas as besteiras cometidas por figuras públicas, nacionais e estrangeiras, em todas as áreas, dos políticos aos atores de novela, passando por nomes da vida cultural e social, celebridades e – o que ele mais gostava – mesmo gênios. “Todo o grande QI tem seu dia de bonobo”, costumava dizer ele.
Naquele dia, saindo da rádio depois de seu programa, subiu até a Avenida Paulista, a pé, para dar uma espiada nos tais enfeites de Natal que, desta vez, estavam atraindo tanta gente que, na noite passada, a polícia tivera que interditar uma das pistas e desviar os automóveis para as alamedas paralelas porque a multidão simplesmente não cabia mais nas calçadas. E olhe que as calçadas da avenida eram enormes!
Não que Messias ligasse para o Natal. Não ligava. Não tinha religião, dizia-se agnóstico e acreditava que as festas natalícias eram uma maravilhosa maneira de girar a economia, incrementar o comércio e usar o nome do tal Deus em vão...
Admirando a suntuosa decoração dos edifícios, pensou em almoçar por ali mesmo, os restaurantes ainda mais lotados do que habitualmente mas, ele percebia, hoje também recebendo pessoas animadas, sorrisos, certamente pela perspectiva do período de festas e, para a maioria, de folga do trabalho.
Messias andava cansado de almoçar sozinho olhando as caras feias nas mesas ao redor. Sozinho, aliás, era a palavra que melhor o definia. Na rádio – seu reino – tinha um séquito de doze pessoas na sua equipe e milhões de ouvintes fiéis. Ali, todas as manhãs, de segunda a sábado, não se sentia só. Mas no resto... Só amizades profissionais, a família toda em Minas, seu estado natal, nenhum amigo, nem do tempo dos estudos, todos casados e, portanto, solteirões como ele (já tinha mais de 40) não eram muito benvindos em círculos de casais com filhos. Quanto às mulheres, apenas aventuras. Quando aparecia uma com quem ele acreditava que pudesse se envolver lá vinha um lamento do tipo “não posso pagar”, fosse por um vestido, um tratamento dentário ou estético.
As mulheres tinham aquela grande ilusão de que todo mundo que estava na mídia, principalmente no comando de um programa de sucesso, como era o caso dele, nadava em dinheiro. A realidade era muito diferente. E mesmo que não fosse, tudo o que ele não precisava era uma mulher interesseira ao seu lado. Mulheres solteiras havia aos baldes. Mas a companheira que ele sonhava... Ah... Nunca aparecera.
Já que era Natal, pensou ele, deveria fazer um pedido a Papai Noel, ao Universo, a Deus, ao que quer que fosse. Mentalmente pediu: – Olha aqui, Deus, Universo ou Papai Noel, vê se consegue pra mim a companheira dos meus sonhos.
Nesse exato momento, seus olhos bateram naquela morena bonita, carregada de pacotes.
...
Magdala, que vinha das compras de Natal, caminhando na Paulista, carregando os presentes que pretendia despachar para a família no interior, percebeu que alguém a seguia. Ou estaria imaginando coisas? Era um quarentão charmoso, nem bem nem mal vestido. Pensou que era coincidência demais ele parar numa vitrine ou numa banca de jornal a cada vez que ela também parava. Não havia tantas vitrines assim na avenida e, algumas vezes, ele teve que passar à frente dela para ter uma vitrine como desculpa para parar. Numa dessas vezes, quando ela ia passando por ele:
– Desculpe-me... – disse aproximando-se dela – Você não é a Beatriz, que foi minha colega no SENAC?
Ela riu. O rapaz tinha uma linda voz e pinta de boa gente.
– Essa cantada é velha...
Ele também riu:
– O que mais eu poderia dizer para me aproximar de uma moça maravilhosa como você?
Foi o começo de uma grande paixão.
Imediatamente começaram a conversar, se entendiam às mil maravilhas e dois dias depois, quando conseguiram afinal passar a tarde fazendo amor no apartamento dele, tiveram certeza de que tinham mesmo nascido um para o outro.
E agora, pensava Magdala, como ter coragem de contar a ele que era uma garota de programa?
Passou a viver angustiada, morrendo de medo que ele descobrisse e tentando driblar seus compromissos profissionais. Por sorte, ele tinha que acordar muito cedo e preservar sua bela voz não estando, portanto, disponível para programas noturnos, que eram o forte na carteira de clientes de Magdala.
Seu grande temor era o próximo sábado. A única noite em que ele poderia sair com ela, dormir tarde, já que no domingo não tinha programa de rádio. Sábado era o dia de maior movimento para Magdala. No anterior ela mentira, dissera que estava menstruada e com dor de cabeça e conseguira uma folga. Mas não poderia mentir eternamente. Resolveu então se enfiar no cabeleireiro, um ótimo lugar para relaxar, fazer confidências e receber conselhos.
– Conte pra ele – dizia o Jean, enquanto penteava o cabelo dela. – Se você está disposta a largar o seu trabalho e mudar radicalmente de vida, melhor contar. Ele vai acabar descobrindo mesmo.
– Ai, Jean, vira essa boca pra lá! – exclamou ela.
– Meu bem – disse ele – não adianta querer viver de ilusão, não é? Se você não abrir o jogo e ele souber, vai ficar muito mordido. Então conta logo. Hoje em dia ‘tá assim de homem que casa com menina de programa. Antigamente, nem pensar! Mas eu até ouvi outro dia um primo meu dizendo que não se casaria com uma pros... ãhn... com uma menina de programa, mas casaria com uma ex menina de programa, entendeu? Aproveite que é Natal e peça logo pro menino Jesus fazer ele te compreender... – e deu uma gargalhada – Menino Jesus é mais poderoso que Santo Antônio, né, minha santa?
Magdala saiu do salão disposta a romper com a vida que levava. Disposta a romper, antes de contar pro Messias. Não acreditava que fosse justo só romper depois que ele estivesse disposto a compreender o seu passado.
– Vou falar agora mesmo com o patrão! – decidiu.
Aquele que Magdala chamava de “patrão” era um dos mais influentes cafetões de luxo da cidade. Tinha uma rede de boites, casas de swing e edifícios chiques para encontros discretos de gente muito rica e/ou muito poderosa. Magdala ganhava muito bem, tinha seu próprio apartamento alugado nos jardins, frequentava os mais badalados estabelecimentos, já conhecera, acompanhando empresários e executivos, muitos lugares da moda em boa parte do planeta.
Aprendera a falar, a se portar, a se vestir, se maquiar. Passaria por uma menina rica. E estava apenas havia quatro anos nessa vida. Até um pouco de inglês já falava e, inteligente, caçava informações de arte, cultura, literatura, geografia, história e o que mais precisasse, na Internet.
Muitas vezes tinha ouvido falar contra o seu “patrão”. Demóstenes Correia já fora até condenado em alguns noticiários de TV, chegara a ser detido, mas tinha as costas largas demais para realmente se dar mal. Diziam que ele explorava os jovens, garotas e garotos de programa, que os escravizava, que ficava com a parte do leão. Magdala não dava ouvidos a nada disso. Achava – como certa vez lhe dissera um cliente – que o Demo administrava muito bem os seus negócios e era um ótimo empregador. Todos os seus “funcionários” tinham assistência médica, benefícios e até um fundo de pensão para a aposentadoria que, nesse ramo, era um tanto precoce.
Fôra acusado de estar metido com drogas, mas Mag sabia que ele não era trouxa. Drogas não entravam em suas casas, nem mesmo uma inocente maconhazinha. Se o cliente consumia drogas, problema dele, mas nunca fora dos aposentos particulares. De fato, tanto Mag quanto a maioria dos garotos que trabalhavam para Demo gostavam dele. A figura do cafetão que explora e maltrata fisicamente suas prostitutas parecia coisa de um passado remoto ou de outro mundo, que nada tinha a ver com o mundo deles. Por tudo isso Mag acreditava que poderia demitir-se, como em qualquer empresa.
Pediu para falar com Demóstenes. Só conseguiu ser recebida por ele, em seu luxuoso escritório, três horas depois. E ficou sabendo que não teria nenhum problema para desligar-se dele, desde que pudesse pagar por tudo o que lhe devia.
– Como assim? – perguntou ela. – Eu não lhe devo nada.
Ele então projetou na grande tela ao seu lado a imagem da planilha que abriu no computador. Lá estavam contabilizadas todas as “dívidas” de Mag: drinks, refeições, roupas de cama, translados, telefonemas... Dia a dia, em quatro anos, somava uma pequena fortuna... Lágrimas vieram aos olhos dela. Compreendera, afinal, porque chamavam Demóstenes Correia de feitor de escravos. Ela era sua escrava. Mas não se daria por vencida.
– Esta bem – disse ela – Se eu parar agora, qual é o prazo que você me dá?
– Querida – respondeu ele com voz doce – não somos uma financiadora. Isso aqui é um negócio. E olhe que não estou lhe cobrando por transformar você, de uma caipirinha ingênua, em uma jovem requintada e viajada. Além do mais, o que vou dizer aos seus clientes? Que você foi embora, que se cansou deles, apenas por que se apaixonou por um radialista metido à besta?
Ela estava havia pouco mais de uma semana com Messias. Como ele...?
– Meu bem – continuou o Demo, adivinhando-lhe o pensamento – nós sempre nos mantemos completamente informados sobre as atividades das nossas anjinhas e anjinhos.
– Veja – disse ele – você é uma das minhas melhores profissionais. Agora vem o Natal. O movimento cai bastante. Vou lhe dar uns dias de folga. Faça compras, vá ao cinema, encontre seu namorado e pense bem se vale a pena jogar tudo para o alto por causa dele. Você pode ter as duas coisas. Pode ter o radialista e seus clientes. Não atrapalhando o seu trabalho, eu não tenho nada contra. Nas suas horas de folga, você pode fazer o que quiser.
Magdala saiu de lá transtornada. Jamais percebera que não era uma mulher livre.
Entardecia. Caminhando pelas avenidas enfeitadas para o Natal, lágrimas escorriam e turvavam sua visão, transformando as luzes e os brilhos dos enfeites em borrões coloridos. Magdalena começou a pensar nos Natais de sua infância, quando toda a família se reunia na casa de seus avós maternos. Cada tia levava um prato típico da ceia. Os enfeites eram simples, ridículos, se comparados ao que existia aqui. A árvore era de plástico e ráfia verde, comprada pela avó muito antes do nascimento daqueles netos, seus primos e irmãos, enfeitada com bolas que quebravam e luzinhas piscantes. A avó tinha orgulho do maravilhoso presépio que montava na varanda de sua casa. Durante anos e anos fora enriquecendo o presépio com mais e mais figuras, trazidas para ela por amigos e parentes, imagens de tamanhos desproporcionais, de lugares distantes, todas ali, reverenciando o menino Deus deitado na manjedoura.
Pensando nisso ela sentia um grande constrangimento, como se o luxo e a sofisticação das decorações de Natal daquela parte nobre da rica metrópole estivessem zombando do orgulho simples com que sua família exibia e admirava o presépio da varanda da casa de sua avó. Pior. Como se a vida luxuosa (e pecaminosa, imaginou o reverendo da matriz a dizer) que ela levava fosse, ela própria, uma grande zombaria aquelas pessoas de sua família que, em seu despojamento, estiveram sempre cheias de amor e carinho para com ela e que lhe mandavam, a cada Natal, presentes simples, ingênuos mesmo, que sempre faziam com que ela se sentisse muito, muito mal. Era a compota de figo, feita pela mãe, uma blusinha de crochê, pelas mãos da vovó... E ela comendo tiramissu nos mais caros restaurantes paulistanos e usando as “blusinhas” de mil reais da Oscar Freire...
Quase sem querer seus passos a levaram ao edifício da rádio, na Rua Augusta. Era quinta feira. Messias lhe dissera que às quintas, à tarde, os comunicadores e os diretores, o artístico e o comercial, se reuniam para avaliar o IBOPE da semana e o desempenho de cada programa, tanto em conteúdo quanto em comercialização. Ele estaria lá. Mag sentou-se na lanchonete do térreo, bem defronte aos elevadores. Se ele estivesse lá, ao sair, a veria. Se não estivesse... Era como um jogo. Estava decidida a contar a ele a sua história, se ele estivesse lá.
Pensava: se não contasse, ele acabaria descobrindo. Se ele descobrisse, se sentiria traído. Se ela contasse e ele também se sentisse enganado, paciência. Pelo menos, contando, havia uma chance de não perdê-lo.
Eram 11 da noite quando Mag e Messias saíram do bistrô aonde tinham se refugiado quando ela lhe disse que precisavam conversar seriamente.
Pensou que choraria, ao contar a ele. Mas não chorou. Na verdade, refletia, não era uma história triste. Fora a sua opção de vida.
Ele não interrompeu a narrativa dela. Lá fora, na calçada do banco que ficava em frente ao bistrô, um coral se apresentava e uma pequena multidão se acotovelava para ouvir as canções de Natal. Messias pensou que parecia uma trilha sonora de novela, servindo de pano de fundo para as palavras dela.
Quanto mais ela falava, mais ele se apaixonava. Quando ela terminou, ele disse apenas:
– O apartamento onde você mora também é do Demóstenes?
– É de uma senhora idosa que ele me apresentou...
– É dele – disse Messias secamente. Deve ter câmera ou escuta.
Mag achou que ele via filmes policiais em excesso.
– Nunca mais pisaremos lá – ele continuou. – Você paga aluguel como? Pelo banco? Na imobiliária?
– Deposito na conta dela, da proprietária.
– Quando vence seu contrato? Tem multa?
Por sorte, vencia em março. Assim resolveram que pagariam os três meses de uma só vez e mandariam entregar as chaves na portaria.
– Mas e o que eu devo ao Demo? – perguntou Mag.
– Você não deve nada. Não se preocupe. Sou jornalista. Também conheço gente importante. Amanhã mesmo, saindo do programa, irei ver um amigo que se encarregará de acalmar o Demo. Eu sei que esse diabo de homem deve dizer a você que não quer perdê-la, que você é uma das suas melhores profissionais. Mas você já está ficando velha pro negócio dele. Não vai ligar muito, não. Em quatro anos você já foi uma mina de ouro.
– E agora? Devo fazer minhas malas e me mudar, então?
– Você não me entendeu. Você nunca mais vai pisar naquele apartamento. Hoje você dorme lá em casa. Amanhã vai comigo para a rádio, mais tarde vamos comprar tudo o que você precisar, roupas, maquiagem, tudo... Na semana do Natal meus programas não serão ao vivo. É a única folga que tenho no ano. Vamos para a casa de seus pais, no interior e você vai me apresentar à sua família como seu namorado e eu vou pedir sua mão em casamento ao seu pai. Vamos passar o Natal com eles.
Mag começou a rir.
– Mas nós nos conhecemos há apenas...
– Não – interrompeu ele – nós sempre nos conhecemos, você é a mulher pela qual eu esperava e eu sou o seu homem. Sempre fui e sempre serei.
– Mas o meu passado, o dinheiro, as coisas que vou perder, a minha suposta dívida... Quanto vai custar tudo isso? Você não é milionário.
– Não interessa. Dinheiro é o de menos. Foi feito pra se gastar. Vai e vem. E, depois do Natal, você também vai procurar emprego, mocinha. Acabou a moleza, certo? Vamos viver a nossa vida, com os nossos recursos e ter um monte de crianças... Agora vamos. Estamos aqui há horas e já passou da hora do neném aqui ir nanar... – disse ele com um sorriso, acariciando o rosto dela.
Mais tarde, depois do amor, na cama dele, antes que ele pegasse no sono ela perguntou:
– Mas como você pode não se importar com o meu passado? Pensei que eu ia te perder...
Ele riu:
– Qualquer dia desses, mocinha, eu te conto a minha história... Afinal, alguém já disse que só quem não tem pecado deve atirar a primeira pedra.
Linhas Tortas - a continuação dessa história, 15 anos depois
Messias e Magdala, abraçados no enorme terraço de seu apartamento, olhavam as estrelas naquela noite clara de véspera de natal.
-- Pena que não decoram mais a Paulista como antigamente – comentou Magdala quando se sentaram à mesa para cear.
-- Mas a avenida continua linda – respondeu Messias – apesar da ciclovia.
E riram os dois.
-- Você se lembra? No ano em que nos conhecemos? Eram tantos os enfeites nos prédios dos bancos, parecia mesmo uma competição. As poucas lojas da avenida também se enfeitavam, até os edifícios residenciais. Era um verdadeiro show – disse ele.
-- Ah! E as árvores iluminadas em todos os parques e edifícios! – Exclamou ela – E os corais! Os bancos promoviam apresentações de corais, tanto na hora do almoço quanto à noite. Era muito lindo.... Eu me lembro que um coral cantava enquanto eu te contei...
-- Sim, quando você me contou que era uma menina de programa, que tinha se apaixonado pelo luxo de São Paulo, da Oscar Freire em particular – e, aqui, riram os dois –vendo tudo na TV, na sua cidadezinha do interior e que caíra na mais velha armadilha dos cafetões – interrompeu ele.
-- Mas nunca me senti ludibriada, enquanto trabalhei para o Demóstenes – você sabe. – Ele era meio cretino, mas nunca me enganou.
-- Como não enganou? – Exclamou Messias – e aquela história de que você devia para ele, quando você quis ir embora...
Magdala teve um sorriso terno e pegou na mão dele, por sobre a mesa:
-- Ora você mesmo me disse que aquilo foi apenas uma tentativa de me manter na casa. Mas eu já era, de fato, meio velha para ele.
-- Sim, ele já tinha explorado você por quatro longos anos! – Disse ele.
-- Não exagere, Messias. Eu topei o esquema que ele me propôs quando cheguei aqui.
-- Estou me lembrando agora – disse Messias – de que, no ano em que nos conhecemos, a CET teve que desviar o trânsito de carros da Paulista para dar espaço aos pedestres que, à noite, vinham ver os enfeites da Avenida e que, naquela noite, não cabiam nas calçadas, foi preciso liberar uma pista de rolagem de automóveis para eles. Em que ano foi mesmo?
Magdala forjou uma cara de brava e deu um tapa na mão dele:
-- Não finja que não sabe!
Ele riu: -- Foi em 2002!
-- Quinze anos! – Disse ela. Quinze anos... E aqui estamos, lutamos para ter esse apartamento, o conforto em que vivemos, para comprar a sua rádio na Internet.... Você lembra como ninguém acreditava?
-- Era preciso ser cego para não acreditar que todos os veículos de comunicação, como nós os conhecemos da metade do século XX à primeira década do XXI se manteriam.... Estava claro que tudo, até a poderosa Rede Globo daquele tempo, acabaria na web.
-- E você saiu na frente!
-- Sempre saí na frente, Mag, desde que era criança.
-- Bem – suspirou ela – Eu te contei a minha história apenas algumas semanas depois de te conhecer e me lembro bem que você me disse: “Um dia te contarei a minha história, afinal alguém já disse que só quem não tem pecado deve atirar a primeira pedra. ” Nunca me esqueci. O tempo passou. Compramos a rádio, o apartamento, demos duro para educar nossa filha, para manda-la estudar no Exterior e mal deu tempo, nesses quinze anos, de voltar ao assunto. Agora que é de novo Natal, como quando nos conhecemos, e estamos só nós dois aqui, você vai me contar? Vai me dizer afinal qual é esse pecado que te impedia de jogar em mim a primeira pedra?
Messias sorriu. E começou a contar.
-- Eu te disse que nasci no interior e fiquei órfão muito cedo. É verdade. Mas eu não te disse que fui criado pelos padres e, menino, fui coroinha. Depois entrei para o seminário e foi lá que eu tive a melhor educação que um garoto pobre pode almejar no Brasil. Estava para me ordenar, era um seminarista de esquerda, inspirado em Leonardo Boff e na teologia da libertação quando, numa greve, na porta da fábrica, percebi que tudo aquilo era uma mentira. Os padres. A Igreja. Até mesmo os sindicatos e a CUT... Tudo não passava de uma luta pelo poder, travestida, como nos casos citados, em altruísmo e amor ao próximo. De fato, todos os que ali estavam, lutavam pela ascensão social e, em última instância, pelo poder. Poder do dinheiro, da riqueza, da posição social. Mal pude dormir naquela noite. Meus pais haviam sido mortos, em circunstâncias nunca bem explicadas, lutando em guerrilhas contra a ditadura militar. Você sabe, eu nasci em 1970 e os padres haviam conseguido impedir que eu fosse mais um filho de militantes políticos “doados” pela repressão a algum casal de militares sem filhos, estéril. Sempre endeusara meus pais, achava que eles eram heróis da resistência. Mas, com o passar do tempo e com a maturidade, percebi que eles estavam tão equivocados, no seu sonho, quanto qualquer um. Era 1989, o muro de Berlim caíra e revelara ao planeta o atraso do mundo socialista, a mentira do mundo socialista, o doping dos atletas, a elite política dominante usufruindo do que a maioria do seu povo nem podia sonhar em usufruir... enfim, tudo aquilo, um mundo de mentira. E eu ia ser padre! Padre de esquerda! Mais um mentiroso num universo de mentirosos ou talvez – digo isso por generosidade – de auto iludidos. Então comecei a refletir. O mundo era realmente dos ricos, dos poderosos. E os poderosos não eram os políticos. Os políticos eram as marionetes dos poderosos. Fiquei uma semana insone. E decidi que não queria, de jeito nenhum, ser padre. Eu queria ser rico. Mas como? O caminho possível para mim era o caminho dos pobres que enriqueciam rapidamente traficando drogas, roubando bancos, era o caminho dos bandidos.
-- Mas..., mas de bandido você nunca teve nada! – Retrucou, assustada, Magdala.
-- Nem Jesus. No entanto, foi crucificado junto a dois ladrões – riu ele. – Mas não me interrompa, senão não conseguirei terminar.
-- Isso foi só um desejo, não é? Você não virou bandido, né?
Messias riu.
-- Você mesma, Mag, teve o desejo dos vestidos e das bolsas da Oscar Freire...
Magdala riu também:
-- E vim para São Paulo ser menina de programa, uma espécie de bandida...
E então Messias contou a ela que, certa tarde, quando ele estava mergulhado naquelas dúvidas e na profunda decepção que se seguira à compreensão de que, afinal, seus pais haviam lutado por nada, estava na Igreja do seminário onde, ajoelhado, tentava recuperar a fé, orando a Deus por um milagre, um sinal, qualquer coisa que lhe indicasse que deveria permanecer no trabalho cristão, que deveria se ordenar. Implorava, na verdade, a Deus que lhe mostrasse serem seus novos pensamentos apenas mais uma tentação e uma máscara do Maligno, quando entrou na nave um homem desesperado, correndo e, vendo Messias ali, se dirigiu a ele:
-- Padre! Padre! Você é a minha última esperança, você precisa me ajudar. Eles estão atrás de mim, eu vou morrer, padre, eles vão me matar.
Messias ia dizer que era apenas um seminarista, mas não disse e tratou de enfiar o homem dentro do primeiro confessionário que viu pela frente. Ficaram então, em posição invertida: ele do lado de fora, o homem do lado onde deveria estar um sacerdote. Foi aí que disse o homem:
-- Padre, já que estou aqui, me ouça em confissão! Se eu morrer, pelo menos, morro em paz com Deus.
O homem então contou a ele que era um dos poucos taxistas independentes que ainda existiam em São Paulo e que, um dia, entrara no carro dele alguém do tráfico de drogas que acabara convidando-o para ser um “taxista limpo”, ou seja, um taxista em que os traficantes pudessem confiar e usar para aquilo que precisassem, fosse transportar alguém que não podia ser reconhecido ou para levar as mulas ao seu destino, como aeroportos e rodoviárias. Pagavam bem. Ele topou. Trabalhou para o tráfico durante alguns anos e esses anos foram suficientes para que ele percebesse seu erro. Os traficantes exigiam lealdade absoluta e a punição para a traição era a morte. Ele estava preso, queria se libertar. Vivia angustiado, tinha pesadelos, sonhava que, ao chegar em casa, encontrava sua mulher e seus filhos mortos, sonhava que a filha virava amante de um deles, que o filho se tornara traficante... enfim, estava vivendo no inferno. Uma noite, ao acordar em plena madrugada, gritando, suando em bicas, a mulher – ah, a Leida é a melhor esposa que alguém pode querer – disse então o homem – a mulher lhe obrigara a contar toda a história e, horrorizada, sugerira que ele procurasse um tio-avô distante que ela tinha e que era coronel do exército. O tal coronel levara o homem até um investigador do DENARC, o departamento de prevenção e repressão ao narcotráfico e ele dera todo o serviço, em troca de proteção policial. A polícia estava providenciando a inclusão de toda a sua família no serviço de proteção à testemunha, nem ele sabia para onde iria se mudar. Mas, há pouco, entrara alguém no seu taxi e dissera a ele: “Os homens já sabem que você dedurou. Você vai morrer. ”
-- Aí – continuou o homem, em soluços desesperados – Aí eu vi essa Igreja e parei o táxi, abri a porta e saí correndo...
-- Bom – disse Messias à Magdala, que o escutava quase sem piscar – Resumo da ópera: peguei o nome do sujeito, o endereço, dei uma batina a ele, mandei ele se esconder numa cela do seminário que estava vaga e fui atrás do táxi. Por sorte, ele abandonara o carro numa viela, no meio fio. Estava aberto, chave no contato. Entrei e saí dirigindo. Rodei uns trinta minutos, estava levando uma passageira pra Mooca quando veio a mensagem pelo rádio:
-- Severino, está na escuta?
Eu respondi: -- Sim.
-- O escritório central quer você lá hoje, às cinco horas.
Respondi: OK.
-- Mas você está ciente do novo endereço?
-- Pode falar.
-- Ele me deu um endereço. Era na periferia, na zona sul. Eu apareci lá às cinco da tarde. Era inverno. Já estava escurecendo. Cercaram o táxi, me tiraram lá de dentro, já na porrada e fazendo um monte de perguntas. Eu convenci eles de que o Severino era meu amigo e que aparecera na minha casa, dizendo que tinha que sumir e que era para eu ficar com o carro e com o trabalho dele. Para encurtar a história, foi assim que eu virei traficante. Nunca mais voltei para o seminário, nunca mais ouviram falar de mim por lá, nunca mais eu soube o que foi feito do Severino e de sua família. No táxi, eles puseram fogo. E eu passei a viver lá, na periferia, trabalhando para eles. Primeiro fazendo trabalho de olheiro, depois pequenas entregas, mas fui galgando posições no grupo até virar o responsável pelos negócios naquele setor. Mudei para um apartamento num bairro chique, tinha tudo do bom e do melhor. As melhores mulheres também.
Aqui Magdala deu um soco, brincalhão, no braço dele.
-- Você também teve alguns melhores homens – riu ele. E continuou: -- Tinha tudo o que eu achara que me faria feliz: dinheiro, poder. Mas, um dia, percebi que não era feliz. Lembrei de uma moça que eu conhecera numa balada e que tinha me dito que eu deveria ser radialista, que tinha uma voz linda, e me dera um cartão da rádio onde ela trabalhava. Fui lá. Fiz um teste. Passei. Deveria começar, no mês seguinte, lendo boletins de notícia nos intervalos dos programas. Saí da rádio e fui atrás dum falsificador que me devia uns favores. Ele me arrumou novos documentos, nova identidade e até um passado bancário. Custou uma nota, mas dinheiro não era problema. Ainda com o dinheiro do tráfico, abri uma conta num banco na Paulista, com meu novo nome. Aluguei aquele apartamento onde eu morava quando nos conhecemos. Comecei a trabalhar na rádio, abandonei tudo o que eu tinha e desapareci sem deixar rastro. Um dia inventei que levara um soco, numa briga e precisara consertar o nariz. Na verdade, foi um cirurgião plástico que tratou de mudar o meu nariz e, aos poucos, fui mudando. Pintei o cabelo, fui fazendo pequenos preenchimentos no rosto, com o cirurgião e, na rádio, fui fazendo carreira. Arranjei patrocínios, acabei conquistando meu próprio programa e, dois anos depois, vi uma moça caminhando pela avenida Paulista...
-- Meu Deus! – Exclamou ela – Isso é verdade, mesmo? Você não está inventando essa história? Nunca pude desconfiar que você foi criado num seminário, que ia ser padre e virou traficante! É uma história inacreditável! Como o tráfico nunca te descobriu? Você numa rádio! Nem pela voz...
-- Minha voz, empostada, é bem diferente, não é? Além disso eles ouvem rádio de pagode, essas coisas. Eu trabalhava numa rádio de elite. Ademais, eu não tinha porque sumir. Todos confiavam em mim. Devo ter sido um mistério. No início, eles devem ter me caçado, tentado me encontrar, imaginando que eu tivesse delatado algum esquema e por isso sumira. Mas eu não delatei ninguém. Ninguém caiu. A polícia não descobriu nenhum carregamento ou mula, a não ser por suas próprias investigações, e eles tem como saber isso, se alguém dedurou. Eles têm gente infiltrada.
-- E o falsificador? Ele sabia em quem você se transformara.
-- O negócio dele é nunca revelar nada a ninguém. Todos sabem que, um dia, podem precisar dele e, se o forçarem a dedurar alguém, podem perder os seus serviços. Aí entra o código de ética da bandidagem. Proteger o falsificador, para poder sempre contar com ele.
-- Que história – suspirou Magdala. – Nem estou acreditando. Mas então eu sou casada com alguém que não existe de verdade. Sou casada com Messias Vito dos Santos Oliveira, um personagem. Como é seu verdadeiro nome?
-- Pedro Paulo Soares Miranda – respondeu ele rindo. – Mas não conte para os padres. Nem para os traficantes!
-- Nem para os vizinhos – riu ela. Imagine se alguém aqui no condomínio desconfiasse que o casal 20 que mora na cobertura, o radialista famoso e badalado, é um ex seminarista e um ex traficante!
Ele sorriu: -- E que a mulher dele é uma ex menina de programa!
-- Mas você nunca foi um bandido de verdade, né? – Indagou ela. Eu nem sei ainda se acredito ou não nessa história. Afinal, você é um profissional super sério e dedicado, seu programa tem um lado social e político importante, você ajuda um montão de gente, de ouvintes, de entidades.... É um trabalho cristão! Você é um excelente marido e tem sido um pai maravilhoso para a nossa filha. Traficantes são cruéis, sem escrúpulos e assassinos. Você não é nada disso!
Ele olhou bem dentro dos olhos dela:
-- Não sou mais. Já fui.
Ela se levantou, nervosa.
-- Não pode ser! Me diga que é mentira! Que você inventou toda essa história!
-- Foi você que pediu para eu contar – respondeu ele calmamente. E até estava rindo há um minuto atrás. O que houve? Vai atirar a primeira pedra?
Ela desabou no sofá e ele veio sentar-se ao lado dela.
-- É que, de repente, eu percebi que da mesma forma que você sumiu do seminário, sumiu do tráfico, um dia pode se cansar e sumir de nós!
Ele caiu na gargalhada e a abraçou:
-- Só se eu fosse louco! Eu amo vocês duas, minha mulher e minha filha. Vocês são tudo o que eu esperava da vida, na verdade. E sou feliz na rádio. Só que nunca parei para pensar que o meu trabalho, como você afirmou há pouco, fosse um trabalho cristão.
-- Mas é – respondeu Magdala – Muito mais cristão do que o meu que sou apenas uma blogueira que diz coisas fúteis sobre moda e beleza na Internet e ajuda as ricaças a se produzirem com classe.
-- Coisa que, afinal – riu ele – você aprendeu com o Demo, no tempo em que era garota de programa.
-- Pois é – disse ela, subitamente séria – E você aprendeu com os padres, a sua atitude cristã vem deles, do seminário.
-- Mas os padres – retrucou ele – também lutam pelo poder, há os que são até pedófilos, outros são alcoolistas e a própria Igreja desvirtuou em muito a palavra de Cristo, em nome dele cometeram assassinatos, injustiças, um horror!
-- Eles são apenas homens – interrompeu ela. – No entanto veja que homem está sentado hoje no trono de Pedro. Um verdadeiro franciscano. Um homem político habilidoso que está, sem revoluções, revolucionando a igreja, tirando a lama do cristal da palavra de Jesus! Os padres, os “seus” padres, são homens que também fazem o bem e que ensinaram a você a filosofia cristã que hoje você pratica mais do que se fosse um deles.
-- Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas, meu amor! -- Disse ele, calando a boca de Mag com um apaixonado beijo.
Lá fora, os sinos da Catedral chamavam os fiéis para mais uma Missa do Galo.
Jesus Cristo nascera de novo!
A Nave de Belém
Então aquela consciência a atingiu como um soco. Como poderia ter vivido mais de cinco décadas sem perceber aquilo? E todos os outros, que estavam a sua volta, que viviam da mesma maneira? Eles também não tinham essa consciência? Se tinham, por que nada faziam a respeito? Por que não tentavam mudar esse estado de coisas? Ou acreditavam-se impotentes para mudar o mundo? Ou simplesmente não se importavam?
Nós, que vivemos no conforto, com acesso a tudo o que tecnologicamente a humanidade conquistou; nós, com nossos carros, TVs, smartphones, mesa farta, bons teatros, bons cinemas, bons restaurantes, viagens, navios, aviões, piscinas... Nós somos a minoria – pensava Magdala. A maioria vive na pobreza. A maioria do planeta não vive como nós. No Brasil mesmo – ela vira o dado recente do IBGE – os 10% mais ricos ganham 17,6 vezes o que ganham os 40% mais pobres. África, países do Oriente, castigados pela guerra e pela fome, nordeste do Brasil... No entanto nós vivemos como se todos vivessem como nós.
Ela lera, algum dia, em algum lugar, que se toda a população do planeta consumisse o que consomem normalmente os países mais ricos, os recursos naturais se esgotariam em menos de um ano... E agora, que a Terra estava claramente pedindo socorro, todo o Ocidente caminhava para um retrocesso político, cansado de obedecer as máximas cretinas dos governos de esquerda, cansado de não poder expressar seus pensamentos em liberdade, amarrados que estavam todos pelas regras medíocres do politicamente correto.
Ela crescera numa família pobre, interiorana. Mas a pobreza de sua infância e adolescência seria considerada riqueza por aqueles que viviam nas precárias condições dos mais pobres do planeta, sem saneamento, sem Medicina, sem acesso às maravilhas da informática. Seu irmão mais velho era da esquerda, filiou-se ao PCB, depois ao PT, para desespero de seus pais, que ainda tinham fresca na memória a tragédia que se abatera sobre os esquerdistas durante a vigência da ditadura militar no Brasil. Ela não o compreendia. Não compreendia a revolta do irmão e muito menos o seu idealismo. Naquele tempo, ela tinha apenas um objetivo: sair de sua cidade, de sua pobreza, triunfar (como afinal, embora por linhas tortas, acabara triunfando) na cidade grande, na metrópole.
Depois de 12 anos no poder, a esquerda brasileira via a direita se eleger e militares ocupando os mais altos cargos da república. Lula, que um dia fôra a grande esperança dos brasileiros que, por duas vezes, o elegeram presidente, afinal se revelara igual a todos os outros políticos que vieram antes dele. Magdalena finalmente sentia-se capaz de compreender os tantos discursos que ouvira da boca de seu irmão mais velho, nos jantares e almoçares de sua infância e juventude. Mas compreendia também que esses sonhos haviam descido pelo ralo, junto com a vã tentativa dos esquerdistas de mudar a sociedade “por decreto”.
Ninguém –pensava ela – deixa de ser racista apenas por correr o risco de ser preso por ser racista. Ninguém deixa de ser machista porque corre o risco de ser preso por ser machista. E assim por diante. O máximo que se consegue, ditando leis do “politicamente correto” à sociedade, é fazer com que as pessoas se calem. E que, caladas, continuem sendo exatamente as mesmas.
-- A única arma que existe para mudar o mundo – disse Messias, seu marido, quando ela lhe revelou esses seus pensamentos – é a educação. E educação não é apenas atingir um grau de escolaridade ou ser treinado, ainda que num curso superior, para uma determinada profissão. A educação é muito mais que isso. Não é atributo das escolas. É da família e de toda a sociedade. Um dia todas as pessoas perceberão que são parte de um grande Todo, que se chama Humanidade. E que a dor de um atinge sim, de uma forma ou de outra, a todos.
-- Isso é uma utopia – protestou Magdala – num mundo cada vez mais individualista.
-- Todas as filosofias realmente humanitárias são utopia – disse ele – Veja o próprio pensamento cristão. Em nome de Cristo, quantas barbaridades foram cometidas pela igreja católica e por outras? As igrejas se fazem poderosas e ostentam sua riqueza e seu poder como forma de se impor aos seus fiéis. Imagine uma igreja pobre, que repartisse tudo o que tem com os mais necessitados, que – como queria Jesus – desse aos pobres tudo o que conseguisse angariar... E deu uma gostosa gargalhada: -- Ninguém, Magda, ninguém mesmo quereria frequentar uma igreja dessas. Só se respeita o luxo, a ostentação.
-- O Papa Francisco – continuou ele -- prega a humildade, a simplicidade, se recusa a viver nos aposentos palacianos e luxuosos que são privilégio do mais alto posto da igreja; quando era bispo, na Argentina, andava de metrô enquanto seus pares desfilavam em mercedes com choferes. Os cardeais – ou grande parte deles, pelo menos-- que o elegeram devem estar se roendo de arrependimento. Um papa amigo dos pobres, das mulheres, dos negros, dos refugiados, dos homossexuais. Um papa tão parecido com Jesus que ameaça a estabilidade da igreja... Não é irônico? A mesma igreja que se fez usando a Sua palavra e distorcendo-a para que se encaixasse na sua doutrina de dominação. A mesma igreja que queimava vivos os que ousassem discordar dela.
-- A Alda, – disse Magdalena – a minha amiga feminista, diz que a igreja passou seiscentos anos queimando mulheres e que, com essas mulheres, viraram cinzas também toda uma cultura e toda uma sabedoria femininas, herdadas das nossas irmãs celtas, que viviam em igualdade com os homens, que conheciam os mistérios da natureza, a arte da cura pelos fitoterápicos, a comunhão dos pensamentos, a internet das árvores e das estrelas..
Messias riu:
-- Que papo é esse de internet das árvores e internet das estrelas?
-- Dizem – e você mesmo já me falou sobre isso – que grande parte da filosofia humanista de Jesus Cristo, que está não só nos evangelhos oficiais mas, principalmente, nos apócrifos, veio dos celtas; Jesus, naquele período da juventude que ninguém sabe onde ele estava e o que fazia, teria ido estudar com os Druidas e com as Magas celtas. Com eles, aprendeu que tudo está interligado – como você mesmo acabou de dizer – e que o que está em cima é igual ao que está embaixo. Os antigos magos sabiam que, no subsolo da terra, existe uma grande rede de comunicação entre as plantas, entre as árvores, por suas raízes e pelos veios d’água, é o que hoje alguns cientistas mais ousados estão pesquisando e chamando de “internet das árvores”. Mas esses mesmos magos sabiam também que todo o conhecimento está escrito no Cosmos, entre as estrelas, que todos os pensamentos de todos os seres vivos do Universo, se cruzam e se trombam na corrente energética que circula no vácuo. Os Rosa-cruzes chamam isso de “registros acásicos” – o registro de tudo o que se pensa e o que já se pensou.
-- É verdade – disse Messias – que, assim como a moda, o conhecimento parece estar “no ar”. Veja como diferentes cientistas de diferentes partes do mundo fazem a mesma descoberta quase que ao mesmo tempo...
-- E aí fica aquela fogueira de vaidades pra saber quem é o dono da ideia... – riu Magdalena.
-- Exatamente – continuou ele. – E veja como as mulheres sabem, intuitivamente, o que está se usando, o que está virando moda...
-- Tem aquela história dos gorilas e dos cestos. Conhece?
E, ante a negativa dele, começou a contar:
-- Pesquisadores ensinaram, nos EUA, um bando de gorilas a tecer cestos de cipó. Quando foram à África, visitar o habitat natural daquela espécie, encontraram gorilas que sabiam tecer cestos.
-- O conhecimento está “no ar” – disse Messias.
-- E na Internet das estrelas – riu ela.-- O que me parece estranho e contraditório – continuou Magdala – é que, em pleno século XXI, com essa incrível democratização da informação, com quase todos, até mesmo os mais pobres, carregando o mundo na palma da mão, nas telas dos celulares, cada vez mais se veja a escuridão avançando. É o preconceito que corre solto, a intolerância religiosa e política, a falta de diálogo, a não aceitação de posições diferentes das suas, a violência contra o que é diferente de você, como se todos devêssemos ser iguais e unânimes, como se alguém fosse, de fato, o dono das verdades.
-- Acontece – disse ele, pensativo – que não basta ser informado para deixar de ser ignorante. A não aceitação das diferenças é típica da arrogância dos ignorantes. Por isso é que eu disse, no começo desse nosso papo, que a única solução é a educação. E educação é muito, muito mais, que simples informação.
-- Tenho visto – respondeu Magdala – muita gente bem-educada dizendo coisas inacreditáveis no Facebook. Gente de esquerda temendo um golpe militar, um retrocesso, uma espécie de idade média do pensamento contemporâneo.
-- Bem – respondeu ele – muitos deles são o que os militares modernos estão chamando de “viúvas da ditadura”, gente que viveu sob a censura e sob o terror da tortura e isso era algo parecido mesmo com a repressão da idade média ou qualquer outra “caça às bruxas”. Mas a evolução da sociedade não é algo linear. Tenho um amigo médico, o Dr. José, que diz que a sociedade vai mudando “por ilhas”, ou seja, grupos de pessoas mais progressistas, mais humanistas, à frente do seu tempo. Mas esses grupos sempre existiram, em todas as culturas, em todas as sociedades humanas.
-- As bruxas dizem que as diferenças estão na quantidade de vidas que uma alma já teve. Quem está vivendo pela primeira vez é mais primitivo e mais violento do que quem já viveu várias outras vidas, encarnações, aqui ou em outros planetas.
-- Você anda bem esotérica! – riu ele.
-- Algumas das minhas clientes pensam dessa forma. A Alda é feminista. A Isabel, escritora, diz que todas as mulheres são bruxas e que desaprendemos, nós mulheres, com a repressão machista, a olhar para dentro de nós, a reconhecer a herança cultural feminina, a usar a nossa proverbial intuição.
Aquela era mais uma noite de véspera de Natal que Messias e Magdala passavam sozinhos, mas nem por isso sem celebrar todos os rituais natalinos a que tinham direito. A casa decorada, a árvore enfeitada, a ceia, a troca de presentes.
Deixaram a mesa, onde estavam tendo essa conversa, e foram ao terraço do apartamento saborear um licor. A noite estava muito estrelada, talvez porque a cidade estivesse atipicamente menos iluminada, talvez porque, a despeito do verão e do aquecimento global, um forte vento frio estivesse soprando e levando para longe a poluição da metrópole. Ou talvez simplesmente porque fosse Natal.
- Já reparou – perguntou ele – como o Natal acaba mudando muito as pessoas, ainda que temporariamente?
-- Sim, é verdade – respondeu ela – e isso tem tudo a ver com o que estávamos conversando há pouco. Parece que existe mesmo, no ar, um “espírito de natal”. São tantas mensagens edificantes, ainda que nem sempre sinceras, são tantas reuniões de confraternização, nas escolas, nas empresas, nos clubes, nas agremiações... E com tantos encontros, tantos pensamentos bons, as pessoas parecem mesmo mais abertas à tolerância e à compreensão... Afinal, Jesus pregava basicamente o amor ao próximo.
Nesse momento, em meio ao céu coalhado de estrelas, viram uma luz mais brilhante, lá longe, quase no horizonte.
-- O que será aquilo? – riu Magdala – Um disco voador?
-- Ah, pode ser muita coisa – respondeu Messias – desde um balão meteorológico, ou um satélite refletindo a luz do sol, ou um helicóptero...
-- Parece mais uma nave espacial – disse ela – Nunca vi um OVNI que ficasse totalmente parado e, de repente, saltasse como um sapo e parasse de novo.
-- É... – disse ele, intrigado – É mesmo estranho. Devem ser eles, os aliens, os anjos, que sempre vem à Terra na época do Natal.
-- A estrela de Belém era uma nave? – perguntou ela.
-- Ah... deveria ser – respondeu ele – Afinal Jesus Cristo era mesmo um camarada de outro planeta.
Naquela noite, Magdala sonhou que estava lá, dentro daquela luz estranha que tinham visto no céu. Estava como na cabine de um avião e via as estrelas por uma larga janela, mas só podia ver as estrelas, não percebia mais ninguém nem sequer via o ambiente, tudo à sua volta parecia mergulhado numa escura nuvem. Percebeu que Messias estava lá também, embora não pudesse vê-lo. Era maravilhoso, estar no Cosmos! Indescritível! Pensou, por analogia, no deslumbramento que deviam sentir os astronautas terrestres nas estações espaciais.
“Nossa! – pensou então – Eles vieram nos buscar para nos mostrar em que maravilha estamos inseridos...” Abriu os olhos na escuridão do quarto e sabia que não fôra um sonho, sabia que sua alma – ou sua consciência – estivera realmente lá, naquela nave que tinham avistado, no meio do céu. Bem, afinal, era Natal e aquela viagem, o seu presente.

(Os dois primeiros contos foram publicados no livro de Natal da Isabel Fomm:
Primeiro Chegam os Anjos", com ilustrações
de Suely Pinotti, Barany Editora, 2013.)
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