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O Amor me Esperava em África

Foto do escritor: SAUDE&LIVROS FommSAUDE&LIVROS Fomm

Atualizado: 12 de jan.

(por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano, com Luciene Almeida de Figueiredo)



Capítulo 18 - Veneno de Abelha (trecho)


Luanda estudara – e ainda estudava – desde criança a arte da manipulação das muitas substâncias que existiam nas plantas e também as que eram produzidas por insetos e outros animais.


Eram segredos guardados há séculos pelos curandeiros e bruxos africanos e, na história da humanidade, haviam sido posse apenas de alguns povos da Antiguidade e da Idade Média, como alguns egípcios e alguns celtas.


Segredos que possivelmente estariam hoje enfurnados nas prateleiras secretas da Biblioteca do Vaticano, segredos que faziam parte de um conhecimento que não cabia e que nem era conveniente que coubesse no rol do que se convencionara chamar de ciência.


Luanda ria: ciência limitada, branca, ocidental, capitalista e cristã.


Mas o mundo não era feito apenas desses itens. O mundo era África. O mundo era Amazônia. O mundo era Oriente. E muitas eram as técnicas e tecnologias excluídas dessa cultura dominante, orquestrada pelos países economicamente desenvolvidos que, na visão de Luanda, eram também subdesenvolvidos holística e magicamente.


Um mundo que pensava poder aprisionar a realidade em caixinhas estanques, um mundo que pensava – com sua tecnologia baseada apenas no lado racional – poder classificar e dominar a natureza, ignorando que havia muito mais, na vida do planeta, do que os olhos e a razão conseguiam enxergar. O mundo dos bobos – julgava ela.


O mundo dos padres que vieram para esse continente “catequizar” e escravizar seu povo, classificando-os de selvagens e passando por cima de sua sabedoria, ignorando arrogantemente que existia essa sabedoria...


Luanda casara-se com Aravan sem saber que ele pertencia, de corpo e alma, ao mundo ocidental, ao mundo “branco”, como ela o chamava. Ela não. Era negra. Por fora e por dentro, com muito orgulho.


E, assim como se casara com ele por interesse, na tentativa de recuperar um pouco do conforto financeiro com o qual fora criada, seria também capaz de mata-lo por interesse. Só não podia ser descoberta. Por isso o induzira ao sono e ao acidente. Mas existiam poderes ainda maiores. Esses poderes, no entanto, ela sabia, tinham um preço a cobrar, proporcional à sua grandeza. Um preço que ela, nem de longe, estaria disposta a pagar.


Capítulo 19 - Cor de Laranja (trecho)


Tudo para ser feliz.


Exceto naqueles mornas tardes de verão em que a paisagem evocava África. E o vento nas árvores, e o céu cor de laranja, todo o entorno, parecia chama-la de volta à África, como se ela jamais, depois que vivera lá, pudesse se livrar do terror, da magia e da beleza daquele continente ancestral.


Adelaide sentia no peito a vibração dos inaudíveis tambores das aldeias que visitara, via, no céu alaranjado do crepúsculo, refletida a sua angústia, uma angústia aparentemente inexplicável, sem razão de ser, como se todos os feiticeiros, lá do outro lado do oceano, conspirassem para leva-la de volta.


Capítulo 14 - Até no Inferno (trecho)


Adel se lembrava de quilômetros de praias desertas, poucas construções. Tudo mudara. Até a maresia tinha outro cheiro. Mas não se desgostou do que viu. Salvador continuava linda. E tinha ares de modernidade, progresso. O hotel era maravilhoso e nada devia a qualquer cinco estrelas do mundo.


Nos dois primeiros dias, enquanto Beth ia cobrir o tal evento, se deixou ficar na piscina do hotel, um grande deck sobre a praia, leu muito, nadou muito e pouco saíram, as duas, à noite.


Ambas cansadas. Adelaide, fisicamente, e Beth, moralmente. Reclamava muito dos discursos femininos que ela julgava ultrapassados.


— Mas você sempre foi declaradamente feminista! Sempre trabalhou pela igualdade das mulheres e de outras minorias discriminadas! — Protestou Adel ao ouvir as queixas de Beth.


— Meu Deus, Adel! — Exclamou a amiga — Você não percebe que já estamos num pós-feminismo? Não vê que as mulheres do mundo estão se negando a enfrentar essa tal de dupla jornada de trabalho e aderindo a atividades que lhes permitam ser produtivas em suas próprias casas, com seus filhos, seu universo tão feminino, que passa pela magia da manipulação da matéria...


— Magia da manipulação da matéria?


— Sim, a cozinha! A cozinha, a horta, as plantas ornamentais, tudo isso é alquimia, Adelaide! Alquimia do universo feminino! As mulheres estão redescobrindo o lado bruxa que a fogueira da Inquisição católica roubou delas. Não dou dez anos para que o computador, a informática enfim, transforme muitos lares em “home offices” liberando as mulheres e os homens de um trabalho insano, que passa por um deslocamento insano num tráfego insano. Tudo vai mudar, Adel! Uma nova geração já não quererá saber de trancar-se por oito horas num escritório impessoal. Veja o que já acontece nos Estados Unidos, nas empresas do Vale do Silício, onde cada funcionário faz seu horário, sua carga de trabalho, muitos se deslocam de bicicleta e abandonaram os trajes formais. Esse é o futuro próximo. Nesse futuro as mulheres participarão da vida produtiva como já o fazem hoje, mas sem a angústia de se verem divididas entre a vida profissional e o cuidado dos filhos. Veja quantas mulheres estão se tornando empresárias dentro da sua própria casa, montando oficinas profissionais de costura ou de cozinha ou de artesanato e sendo bem-sucedidas, trabalhando em casa. E, no entanto, eu estou aqui, em pleno século XXI, cobrindo uma reunião de mulheres supostamente empreendedoras que praticam o discurso de suas mães e avós feministas dos anos 1960. Não dá!


— Você vai escrever tudo isso? — Perguntou Adelaide.


— Vou — respondeu Beth — Mas tenho certeza que meu editor vai cortar a metade. A revista dele está comprometida com alguns anunciantes que tem interesse nessa organização de mulheres chamadas “de negócios”, cuja matriz, é claro, está nos Estados Unidos. Além disso, as poucas mulheres políticas brasileiras, principalmente as de esquerda, endossam esse discurso feminista e ultrapassado. O pior é que essas mulheres que estão aqui reunidas se acham muito avançadas por terem incorporado em sua briga, pelo o que elas chamam de “empoderamento feminino”, alguns itens feministas. Todas estão cegas, atrasadas, enganadas! O caminho é bem outro! Mas, enfim, melhor mudar de assunto.E retomando seu ar zombeteiro perguntou à Adelaide:

— Ainda teremos um dia para ficar em Salvador depois do término do evento, que será no almoço de amanhã. Você nem saiu do hotel, quer ir a um desses centros de candomblé que são abertos aos turistas?


Adel sentiu os pelos do braço se arrepiarem:

— Você pirou, Beth? Fugi da África, massacrada pela feitiçaria, e você quer me levar de volta a ela, aqui no Brasil?


— O Brasil é muito mais africano do que os brasileiros admitem. Esses “contentinhos” de agora vivem indo pra Miami e Nova Iorque gastar dólares em bugigangas, mas dentro da alma deles estão todas as raízes da nossa história e a nossa história tem as duas pernas e o braço direito mergulhados em África.


— É, pode ser — disse Adel, já rindo dos exageros e da veemência da amiga — mas eu prefiro o Brasil americanizado. Vamos a um shopping qualquer e depois vamos comer num restaurante baiano. Uma boa comida dos orixás.


— Está vendo? — Disse Beth, com um tapa na mesa — Orixás!E riram as duas.



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