por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano, com Luiz Fernando Walther de Almeida.


Essa é a história de vida desse Capitão, hoje Coronel. Suas origens, sua família e as consequências de seu ato de rebeldia.
Um Passado de Presente (O Capitão Rebelde de Apucarana), editora Soul, 2022.
Capítulo 5 – A Família Pagou o Pato
Do seu apartamento na cobertura, da rua Sá Ferreira, em Copacabana, o Cel. Walther, sem a vista para o mar, descobriu um achado maravilho, “o céu é mais bonito que o mar”... descontou. Impossível não pensar em seu irmão Zé Reynaldo, o médico neurologista e astrônomo amador, que faz lindas fotos dos corpos celestes, com seu telescópio acoplado ao computador. Zé aprendera a amar as estrelas olhando para elas por um outro telescópio, muito mais antigo, que pertencia ao seu tio, e padrinho, Alfredo, nos natais da infância em São Paulo.
O Coronel reflete: dos três irmãos homens, filhos de Therezinha e José (que também tinham duas meninas, Beatriz e Ana), só o Zé escapara da vida militar. Seu outro irmão, Tunico, o Antônio Augusto, fora Coronel Aviador, piloto de caça, o segundo colocado da sua turma, brilhante carreira na aeronáutica. Seu pai foi um patriota e não permitia, dentro de sua casa, que se ouvisse o Hino Nacional, senão em pé e de forma respeitosa, durante os jogos oficiais das seleções nacionais, no rádio ou na TV. Pelo lado da família do seu pai, teve os três primos: Ivan, Osmar e César, filhos de tia Maria e tio Osvaldo, Oficiais de Infantaria do nosso Exército, formados no CPOR de Belo Horizonte. O Coronel Walther encerrou a carreira como Tenente-coronel. Poderia ter ido além na carreira de Oficial de Estado-maior, não fosse ter herdado esse temperamento bravo e justo de seu avô Walther. Aquele episódio de 1987, em Apucarana, atrasara as promoções. No entanto, nenhum arrependimento.
Embora muitos dos seus superiores, à época, julgassem que a insurreição que ela comandara tivesse sido algo planejado com antecedência e calma, não foi nada disso. Puro rompante “walthiniano”, decisão de momento, diante de uma situação injusta, que se encontravam as tropas do Exército, naqueles dias... Por que diabos tinham que ser todos tão punitivos? Nas palavras de seu irmão Zé Reynaldo: “Engoliram a casca e jogaram fora a banana...”, por ocasião da leitura da sentença condenatória de três anos de prisão e exclusão do Exército, proferida após o primeiro julgamento na Justiça Militar do Paraná. A lembrança da revolução (ou o golpe, como a esquerda gosta de dizer) de 1964 ainda estava fresca e traumática na sociedade e no Exército. Por essa razão, aquele protesto do rebelde “Capitão de Apucarana” parecia coisa de um “filhote da ditadura”.
Terminado o Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais, em 1986, o Capitão Walther escolheu servir no 30º Batalhão de Infantaria Motorizado, na cidade de Apucarana, no norte do Paraná.
Naquele ano, o Capitão Jair Messias Bolsonaro, seu companheiro de turma, num ato de muita coragem, se manifestara publicamente contra os baixos salários dos militares brasileiros. Sofreu severa punição disciplinar.
Alguns Capitães, alunos da Escola de Aperfeiçoamento, protestavam através de manifestações das suas esposas com bateção de panelas, na Vila Militar. Walther sempre dizia que bateção de panelas “é coisa de mulher de presidiário”. E mais ... “temos fuzis e tiramos o governo... protesto de militar é com munição real”.
O, então, Ministro do Exército, apelidado de “Sabonetão”, quase foi vaiado na cerimônia de formatura... “coisa que eu jamais faria e compraria briga com quem ousasse fazer”.
Em 1986, já se sabia que os uniformes seriam mudados e que, portanto, não se mandasse fazer novos com modelo antigo. Isso gerou um desconforto inaceitável no brio da oficialidade. O Capitão Walther não gosta de relembrar aquele período. Baixo padrão de vida, baixo poder aquisitivo em relação ao restante do funcionalismo público, sem falar da iniciativa privada. Muitos Oficiais deixaram o Exército para buscar salários decentes. Muitos Chefes Militares, daquela época, sabiam cuidar muito bem das suas viagens a serviço com recebimento de diárias e da disciplina, mas não cuidaram da tropa e das condições de vida digna compatível com a posição social, especialmente dos Capitães e Tenentes, sem falar dos Praças.
Cretinos, carreiristas e covardes. Era esse sentimento que habitava o neto de José Leme Walther.
No início de 1987, passando uns dias em Ribeirão Preto, Walther se encontrava na varanda do apartamento da sua irmã Beatriz, ao lado do pai e do amigo Major Faccioli, quando enunciou pela primeira vez: “Não aceito isso! Penso em fazer uma merda grande”. Ouviu do seu pai: “Não faça isso, pois só sua família vai pagar o preço”. Não deu outra.
O regime militar brasileiro durara 21 anos. Em 1985, numa transição pacífica, os militares devolveram o poder aos civis, que elegeram Tancredo Neves como presidente, mas quem acabara governando mesmo fora seu vice, José Sarney, porque Tancredo adoecera gravemente antes mesmo de colocar no peito a faixa presidencial e morrera depois de uma lenta agonia televisionada diariamente da porta dos hospitais.
O Brasil sofria de uma doença tão grave quanto a de seu primeiro presidente civil pós-1964: a inflação galopante, que chegou a atingir picos de 80% ao mês, e, desde que os civis subiram ao poder, os militares viam seu soldo cada vez mais desvalorizado pela inflação e não tinham tido, ainda, um aumento que se equiparasse a essas perdas.
Naquela manhã de 22 de outubro de 1987, no quartel de Apucarana, cidade do norte paranaense, ao saber que a família de um colega falecido não tinha sequer condições de pagar-lhe o enterro e que, para piorar a situação da tropa, teriam sua assistência médica cortada, o espírito de seu avô Walther, que morava dentro dele e às vezes, saía, resolveu liderar uma tomada de assalto à sede da prefeitura da cidade para protestar e comunicar ao país, pela imprensa, a verdadeira penúria que os Soldados estavam vivendo sem reajustes dignos em seu soldo.
Foram cerca de 50 militares do 30º Batalhão de Infantaria Motorizado (hoje BIMec), liderados pelo então Capitão Walther, a “invadir” o gabinete do Prefeito. Walther gosta de dizer que adentrara apenas para perguntar o valor do IPTU.
Outros sinais de insatisfação aconteciam em outros quartéis brasileiros, um deles na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, onde estudava a maioria da turma de 1977 e o já famoso Capitão Jair Messias Bolsonaro, que deixaria a carreira militar para passar 27 anos no Câmara dos Deputados e seria eleito, por voto direto e livre, em 2018, Presidente da República. Em 1988, Walther e Bolsonaro trocaram cartas. Numa delas, Bolsonaro disse: “não teremos como continuar nossas carreiras no Exército, temos que ir para a política”. Walther se recusou e Bolsonaro fica bravo até hoje por essa decisão dele.
O, então, Capitão Luiz Fernando Walther de Almeida, a partir de 1987, ficou conhecido como o “Walthinho de Apucarana”.
Para a imprensa, foi uma festa. Eram especulações de todo o tipo e teorias conspiratórias das mais tímidas às mais esdrúxulas. Especulava-se se aquele episódio, em Apucarana, seria o estopim para um retrocesso, um novo fechamento das instituições democráticas, enfim, a volta do regime militar. Até altas patentes do Exército acreditaram que o gesto de Luiz Fernando fora arquitetado como parte de algo maior.
“Só que não!”, ria ele, com as estrelas despencando pelo céu como se fossem bombas explodindo, agora, em 22 de outubro de 2020, relembrando aquele momento de 1987; fora apenas o seu avô Walther, que, indignado, saltara de seu peito exigindo justiça para os seus comandados.
O que ele fizera fora mais ou menos o que fez aquele motorista de ônibus, demitido da sua companhia por se recusar a pilotar um veículo com problema nos freios.
Coincidência ou não, o fato é que, após Apucarana, o esperado aumento para os militares de todas as armas saiu naquela mesma noite, um reajuste de 25%, tendo sido amplamente anunciado pelo Presidente da República, José Sarney.
Como resultado de Apucarana, o Cel. Walther, então, Capitão, amargara alguns meses na cadeia e depois continuou sua carreira, sempre com o mesmo amor pela farda.
Seu tio-avô, Mario Walther, fora voluntário na Revolução Constitucionalista de 1932. Queria ver o Brasil governado por leis e não por decretos ditados pelo capricho de um presidente golpista. Getúlio Vargas tomara o poder dois anos antes, impedindo a posse do presidente eleito, Júlio Prestes, e decretando o fim da política café-com-leite que vigorara até então, sempre alternando um presidente de Minas Gerais (leite) a um presidente de São Paulo (café).
“Mais uma vez, fora a tal da vingança”, reflete o Cel. Walther. Getúlio nomeava interventores “outsiders” para a governança nos estados e São Paulo, a locomotiva do Brasil, não estava disposto a engolir um desaforo desses. Mario Walther alistara-se pelo bem do Brasil e do seu Estado. Perdera a vida na luta. E o menino Luiz Fernando, desde que ouviu, em família, ainda criança, essa história de seu tio avô herói morrendo por um bem maior, se deixou fascinar pela coragem e pela ousadia dos que pegam em armas para defender a causa que creem justa.
Relembrando... Quando o Coronel Walther nasceu, em 1953, seu tio, irmão de sua mãe, Luiz estava indo prestar o Serviço Militar Obrigatório numa Companhia da Polícia do Exército em, Campo Grande, no Mato Grosso, e ali ele permaneceu por alguns anos. Quando retornou para sua própria casa, em Altinópolis, trouxe com ele alguns equipamentos militares, capacete, cinto guarnição, enfim, peças de fardamento, “compradas” por ele, que foram guardadas em um guarda-roupas. O menino Luiz Fernando foi lá revirar os objetos todos desse armário, fascinado e, da mesma forma que as meninas calçam os sapatos de salto alto de suas mães, o menino pequeno fardou-se com as peças grandes e jamais se esqueceu da emoção que isso lhe causou. Um dia, “fardado”, no portão da casa da avó materna, ouviu: “Entra que o guarda está vindo!” Picou a correr...
Mais tarde, já cursando o Ginasial (segunda parte do hoje chamado Ensino Básico), entre 1965 e 1969, Fernando, ou Priva, realizou muitos trabalhos escolares sobre a Campanha do Paraguai, já que se comemorava o centenário daquela guerra, que durou de 1865 a 1870, ficou cada vez mais fascinado pela vida militar e pelo verde-oliva dos fardamentos.
Agora, uma vida inteira depois, nesse 33º aniversário do episódio de Apucarana, observando o céu carioca, o avô Walther pensa quando o uniforme verde oliva ingressou, definitivamente, em sua alma. Está de bermudas, camiseta, sandálias, mas sente-se fardado, como sempre. Sabe o que é. Sabe que é um Soldado.
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