O Olhar da Minha Mãe e as Células-Tronco
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 28 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 29 de dez. de 2024
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Escaneando fotos antigas foi que reparei nos olhos da minha mãe. Eles tinham um brilho, uma alegria, que eu não conheci.
Em 1951, quando nasci, os olhos dela ainda brilhavam, mas não tinham mais essa labareda de alegria que aparece claramente nas fotos mais antigas. Daí, até sua morte, nunca mais tiveram.
Ah, sim, ela era dona de um sorriso maravilhoso e a sinceridade evidente de seu rosto conquistava a tudo e a todos, com aquela coisa fácil de puxar conversa fácil, de encantar seu interlocutor. Todos, de clientes a vizinhos, passando pelos feirantes, garçons e motoristas de táxi, todos se encantavam com o jeito dela.
Mas eu não sabia que seus olhos haviam perdido, pelo caminho, essa incrível chama da alegria.
Foi a doença de meu irmão mais velho que tirou dos olhos dela essa maravilha que ora descubro nas fotografias muito antigas.
O sofrimento de ver o seu primogênito incapacitado para a vida intelectual, ele, que além de lindo, era (e foi até a morte) tão organizado, tão dandy, gavetas sempre em ordem, bonés guardados em ordem degrade de cores, lápis bem apontados, barba bem feita, perfume.
Me lembro dele, entrando aqui em casa, há uns quinze anos e dizendo com ar repreendedor, olhando para o tapete que acabara de chegar da lavanderia:
- Isabel, este seu tapete está sujo!
Meu irmão Alfredinho foi vítima de uma lesão cerebral causada por uma encefalite (literalmente: inflamação no encéfalo) que que só foi diagnosticada quinze anos depois de acontecer. Uma febre altíssima aos cinco anos de idade e, de repente, o menino lindo passou a desenvolver uma carinha meio boba, não conseguia juntar as letras em sílabas, não conseguia acompanhar os estudos. Tornou-se um jovem agressivo, meus pais o levaram a médicos, curandeiros, sacerdotes, doutores e mais doutores. Só com o eletroencefalograma no começo dos anos 1950 é que se descobriu o que havia de errado com ele.
A doença dele foi responsável por alguns abortos da minha mãe. Naqueles tempos pré-pílula não havia outro jeito e ela temia que nascesse outro igual a ele. Só quando soube que não era de nascença se deu o direito de me deixar nascer. Sou quinze anos mais nova que Alvan, meu irmão mais novo.
Alfredinho passou a vida indo e vindo dos hospitais psiquiátricos e clínicas que meus pais procuravam, desesperadamente, para ele. Tiveram a felicidade de encontrar alguns que não eram depósitos de loucos. Nos hospitais, outros doentes perguntavam se ele era doutor. Por causa de suas maneiras naturalmente finas e polidas, porque ele sabia nomes de políticos e fatos históricos. Mas era um verdadeiro samba do criolo doido: Getúlio Dornelles Vargas conversava com o Imperador D.Pedro II e Juscelino casava-se com a Conceição da Costa Neves.
Três anos depois da morte de meu pai, minha mãe conseguiu conservar o Alfredinho em casa pelo mais longo período de sua vida adulta: quinze anos. Mas, quando ela já estava com 93 anos, acabou me pedindo para voltar a interná-lo porque ela não conseguia mais discipliná-lo. Nessa época, minha mãe morava só com ele e com as empregadas malcriadas que ela conseguia arranjar. Meu irmão Alvan, que também morava com ela nos últimos anos, também morrera e tudo se tornou muito difícil.
Mauro e eu quase enlouquecemos à procura de alguma instituição que pudesse aceitá-lo, nesses tempos de neurose antimanicomial. Acabamos conseguindo encontrar uma clínica para dependentes químicos no interior de São Paulo, uma clinica que já fora meu anunciante no programa de TV.
Ironicamente, um enfarte fulminante matou o Alfredinho, no dia 6 de maio de 2007, antes dele completar 73 anos de idade.
Minha mãe morreu 40 dias depois. Ela já estava bastante debilitada e o psiquiatra me aconselhou a não contar a ela sobre a morte dele. Mas, de alguma maneira, ela soube. Porque no dia em que voltamos do enterro dele, esbodegados, depois de um dia estafante, de estrada e burocracias e desaforos feitos por uma das minhas primas, o telefone tocou a uma hora da manhã. Era da casa da minha mãe, do residencial de velhinhos onde ela morava. Ela estava muito mal. Só morreu 40 dias depois porque as modernas técnicas da Medicina tendem a prolongar inutilmente a vida de quem já está na hora de partir.
Depois que ela se foi, eu descobri um lindo caderno com capa de cetim, papel muito fino e ilustrações muito lindas, no meio das coisas dele. Era um Diário do Bebê que ela fizera para o Alfredinho, quando ele nasceu em 1934.
Num futuro não muito distante as células tronco serão capazes de recuperar as lesões cerebrais e ninguém mais, nascido com uma alma brilhante como a dele, passará uma vida condenado à ignorância intelectual. E os olhos das mães não precisarão se apagar.


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