OVNI (ou o Homem-Pássaro)
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 4 de mai.
- 4 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
publicado no Jornal "O Diário Popular"

Quando o menino Janjão percebeu que aqueles calombos em suas costas não seriam exatamente o problema que ele previa, tratou de esconder bem seu segredo. Roubou da casa da Cidinha, a mais famosa puta local, um espelhinho desses de feira e escondeu-o num canto de praia, entre umas pedras. Era para lá que ia, na maré vazante, esperar o desenvolvimento das asas. Janjão sabia que teria problemas se os outros soubessem de sua deformidade (ou de sua benção).
Besta não era, o menino Janjão: vira até na TV uma história de um homem com asas, um homem ligado a passarinhos e com uma serie de grilos na cabeça. Assim, não se assustou.
Na pequena cidade onde vivia, os riscos, para alguém como ele, seriam terríveis. Seus pais mesmo- Janjão era um garoto racional- não vacilariam em vendê-lo ao primeiro dono de circo mambembe que aparecesse. Afinal, eram sete irmãos e pouco peixe trazia do mar seu pai.
Por essas e outras, guardava o seu difícil segredo. O fato de ter consciência de não ser o único ser humano a ter asas (e aqui Janjão reconheceria, mais tarde, o valor da TV) fazia-o encarar com
naturalidade maior essa estranha exceção. No entanto, como escondê-la da família? Da mãe, por exemplo. A mãe sempre a resmungar que aquele menino, debaixo de um sol de melar coco, não tirava nunca o casaco, andava meio torto, encurvado para trás, uma loucura, um disparate, precisava levá-lo a um doutor de cabeça.
Para a sorte de Janjão, seus outros seis irmãos e as lidas de casa, não deixavam tempo suficiente para que mãe Ernestina dispensasse uma atenção especial ao que ela própria classificava como as "esquisitices desse menino".
Naquela tarde, porém, quase um ano após o aparecimento das primeiras penas, Janjão percebeu que não poderia esconder por muito mais tempo o seu segredo. Trocara as penas naquelas últimas semanas e, afastando-se do pequeno espelho, tinha uma visão parcial das grandes proporções que seu problema vinha assumindo.
Percebeu que podia mover com naturalidade as asas, como movia os braços. Abriu-as. Voltando a cabeça por sobre os ombros, sentiu o peito inflar-se de orgulho. Que belas asas ele possuía! Macias como seda, coloridas como os mais belos crepúsculos.
Durou, no entanto, pouco, a sua alegria. Mesmo amarradas com cordões que desciam, em espiral, até a altura dos quadris, as asas agora constituíam indisfarçável volume, ainda que debaixo do mais longo casaco.
Escondido entre as pedras, Janjão chorava. De repente tivera consciência do que seria sua vida dali para a frente. Primeiro, o circo, o repúdio das mulheres, o medo, a estranheza estampada nos olhos, nos rostos de todas as pessoas. Os voos entre os estreitos limites da lona... Ele, que mesmo antes da primeira tentativa, já se sentia capaz de dominar grandes, incomensuráveis espaços... E, por fim, talvez mesmo ser exibido como atração naquele ridículo programa dos domingos à noite, aquele programa de TV especializado em aberrações. Mas não. Janjão não se sentia como uma aberração. Sentia-se mais como um ser abençoado. Que coisa... Poderia até ser útil – julgava—um homem capaz de voar.
E, examinando as possibilidades práticas da prestação de serviços à comunidade, Janjão concluiu que parca seria sua utilidade. Aviões e helicópteros eram mais eficientes, exceto em algumas poucas e raras situações de emergência; ainda mais em seu limitado mundo, em sua pequena cidade onde não aconteciam catástrofes dignas de super heróis ou incêndios colossais. Penas são altamente inflamáveis.
Qual! Nem pra super herói ele serviria. Seu destino seria mesmo o de coisa rara, atração de circo e TV, para, depois, certamente, virar objeto de estudo de algum laboratório asséptico de cientistas frios e terminar – tudo é possível – seus dias em algum zoológico infecto e degradante, onde crianças lhe atirariam amendoins, pipocas e coisas menos agradáveis.
O que fazer?
Absorto em seus problemas, não percebeu passos mansos aproximando-se dele por sobre as pedras. Assustado, despertou de seus pensamentos sob uma torrente de palavras femininas irritadas:
-- Seu moleque de uma figa! Bem que eu desconfiava que espelhinhos não têm pernas!
Cidinha calou-se de súbito ao perceber as asas de Janjão.
Esse, em pânico, pôs-se a chorar.
Mas a moça, vivida e esperta, percebendo rapidamente a extensão do problema do garoto, sentou-se a seu lado, entre perplexa e maravilhada, ficou longo tempo a acariciar-lhe as penas e a murmurar-lhe palavras de consolo aos ouvidos.
Acontecia quando, pela primeira vez, Janjão possuiu uma mulher.
Na pequena cidade, o fato causou indignação: o primogênito da Dona Ernestina e do pescador Manuel estava a viver agora na casa das putas. Um rancho afastado. A mãe tentou ir lá, falar com o garoto, descobrir seus motivos, compreendê-lo, perdoá-lo... Mas o pai declarou simplesmente que não tinha mais filho, Janjão, para ele, estava morto e pronto.
Assim, amado e protegido pelas moças do rancho da Cidinha, Janjão foi vivendo uma vida tranquila. Ajudava as mulheres nos trabalhos da casa, plantou legumes e verduras no quintal e ninguém nunca mais o viu. Escondia-se dos clientes, passava desapercebido e foi facilmente apagado de memória dos que o tinham conhecido.
À noite é que Janjão era feliz. Enquanto dormiam os comuns mortais, saía a voar. Fez-se companheiro das estrelas, dos fantasmas e das aves noturnas. Viu terras outras. Outras gentes. Outros mundos. E, ao amanhecer, voltando para o rancho, era o mais doce e sábio dos companheiros para aquelas moças de vida solitária e difícil.
Assim, o mundo não soube da existência desse homem-pássaro e as emissoras de TV perderam a oportunidade de cobrar fortunas pela transmissão de comerciais numa apresentação que seria tão sensacional. Quanto aos cientistas, certamente pouco perderam. Afinal, a ciência pouco sabe ainda de poesia.
O único registro que Janjão deixou para a historiadores homens foi o de, certa noite de verão, ter sido citado, num relatório confidencial da FAB, como mais um Objeto Voador Não Identificado.
E, pelo o que se sabe, nenhuma das crianças, até hoje, nascidas no rancho da Cidinha, possui qualquer tipo de anormalidade física.
Bel, 1979, fevereiro, 10.
Comments