Belina e o Abrigo das Elites
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 21 de mar.
- 10 min de leitura
Atualizado: 22 de mar.
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
(do livro "O Fantasma da Paulista")

- O homem era um empreendedor de gênio – suspirou Belina quando a porta do elevador se abriu.
- Que homem? – perguntou o jovem executivo ao seu lado.
- Como?! Você não ouviu nada do que eu disse desde que saímos da sua sala!
João Camata sorriu o seu mais aliciante sorriso. Belina amainou o rosto e quase sorriu também. Diabo de menino irresistível esse – pensou.
A velha raposa imobiliária, como era conhecida no mercado, a legendária figura de Belina Marinelli, capitulava ante os encantos do mais novo e bem-sucedido executivo da família Camata.
Há mais de três gerações crescendo em vários ramos indústrias, essa família alagoana conseguira impor-se (lentamente, é verdade, pensava ela) à melhor sociedade paulistana. Belina lembra-se de quando o pai de João, Mário Camata, unira-se, no início dos anos sessenta, a um jovem quatrocentão sem vintém para montar uma modesta revista. Hoje, trinta anos depois, possuíam uma das mais importantes editoras de magazines do país. O jovem João, porém, dedicava-se à parte industrial, tocando o parque gráfico próprio da empresa. O outro filho de Mário cuidava das metalúrgicas, origem de toda a fortuna familiar.
A ascensão dos Camata acontecera apenas uma geração à frente da ascensão dos próprios Marinelli, reflete Belina. Mas ela, quando jovem, julgava-se rica desde sempre e tinha um certo sentimento de superioridade com relação aos Camata. Bobagens de jovem, riu de si mesma, ainda bem que cresci.
- Belina?
Ela percebeu que estancara defronte à porta do carro que o chofer lhe abrira. Sorriu pro jovem:
- Sinto muito, João. Estava distraída pensando na história da sua família.
- Espero que seja uma história de “happy end”. Mas a que homem você se referia ao sairmos do elevador? Quem era o gênio?
Belina ajeitou-se no banco do luxuoso automóvel:
- Sobre o que conversávamos depois da reunião?
- Sobre o preço do metro quadrado na Paulista não ter caído apesar da criação de novas concentrações de importantes escritórios como na Berrini ou mesmo na Faria Lima.
- E quem seria o gênio? Quem criou este empreendimento chamado Avenida Paulista?
João, sempre tão seguro, pareceu hesitar:
- Ora...sempre achei que simplesmente acontecera...
- Nada disso – interrompeu ela, entusiasmada – simplesmente não aconteceu. Foi pensada, criada, bolada e até mesmo construída.
- Era um loteamento, então?
- Mais do que isso. Era o sonho de um empreendedor, um homem de visão e de lucros. Queria unir os bairros do Paraíso e da Consolação pelo espigão do morro do Caaguaçu. Entre os bairros havia o vale e nele, chácaras. Muita mata também. O empreendedor teve que aterrar uma parte do vale para unir o morro numa faixa suficiente para construir uma avenida plana e que ia diretamente de um bairro a outro. Loteou e vendeu para as mais ricas famílias do estado. A elite tinha que morar no ponto mais alto da cidade de então. Isso tudo foi na última década do século dezenove, lembre-se. A Avenida Paulista foi um empreendimento planejado para ser exatamente o que é até hoje, 102 anos depois de inaugurada: o abrigo das elites.
- E quem era esse gênio? Ramos de Azevedo? – perguntou João.
- Joaquim Eugênio de Lima.
- Ah, é verdade! Assisti algumas matérias de TV quando a avenida comemorou o centenário. 1991, não é isso?
- 8 de dezembro de 1891 é a data da inauguração.
O carro acabara de entrar na Rua Joaquim Eugênio de Lima, vindo da rua dos Franceses, subindo em direção à Paulista. João brincou:
- Belina, estamos na rua do gênio.
- Ganhei muito dinheiro graças a ele, disse ela, sempre fiz ótimos negócios imobiliários na Paulista. – e resumiu dois ou três, a título de exemplo.
Viraram à direita na São Carlos do Pinhal e o carro parou no Maksoud, onde João tinha um encontro. Descendo do carro, ele brindou Belina com outro sorriso:
- Obrigada pela consciência histórica! – disse. E se foi.
Belina, que ia para a sua casa no Pacaembu, ordenou ao chofer:
- José, vá pela Paulista.
O homem obedeceu de má vontade (velha chata, só pra me fazer pegar ainda mais trânsito! -- pensou) e virou à esquerda na Pamplona.
Belina afundou-se no banco, deitou a cabeça e, pela janela, pôs-se a admirar o estranho e dinâmico painel de reflexos luminosos que se formava nas grandes torres de vidro. A avenida das luzes e dos reflexos. O símbolo da cidade. O berço da riqueza, da manifestação política, das comemorações.
De repente sentiu uma presença ao seu lado e voltou à cabeça, empertigando-se no banco do carro.
O que será isso, pensou, alguma espécie de truque de mágico? Uma projeção? Ao seu lado estava sentado um João Camata vestido como no século passado e... transparente!
Ela disse em voz alta:
- João, que brincadeira é essa?
- Não se assuste, minha senhora. Não sou de brincadeira e o meu nome não é João. Sou apenas um Fantasma.
- Ah, fantasma...sei. Moço, conte essa história para outro.
Decidida, ela apertou o botão do comunicador:
- José, pare imediatamente esse carro.
A voz do chofer veio arrastada:
- Estamos parados no congestionamento há três minutos, senhora.
- Se eu a incomodo... – ia dizendo o Fantasma.
- Não, não, tudo bem – disse ela, assustada com a própria reação, ela, a de reações sempre muitíssimo bem controladas. O senhor me assustou mesmo com essa aparência translúcida.
Apertou novamente o botão:
- José, você não viu esse homem entrar no carro?
- Em que carro, madame?
- José, esse homem que está aqui ao meu lado, nesse carro, é claro!
- Madame não há ninguém no carro com a senhora, disse ele voltando-se e fitando-a diretamente através do vidro interior que os separava.
Nesse momento o trânsito andou, lentamente, alguns metros.
- Essa é boa – resmungou Belina – depois de velha, também louca!
- Vejo que a senhora não pode simplesmente aceitar a minha existência, como o fazem tantas pessoas.
- Já notei que só eu o vejo e que estamos falando em pensamento.
- O pensamento, aprendi nessas últimas semanas, é a única instância onde podem existir fantasmas.
- O senhor é a cara escrita e escarrada do meu jovem amigo, João Camata.
- Talvez haja algum parentesco, entre nós, minha senhora. Afinal, morri em 1902 e, se não me engano, estamos em 1993. Posso ter descendentes em qualquer família.
- O senhor não sabe, então?
- Desde que morri vivo sendo jogado de um ano a outro, sempre aqui na minha avenida.
- Como sua avenida?
- Ah, não me apresentei. Eu sou o fantasma de Joaquim Eugênio de Lima.
- O senhor não morre mais! Acabei de falar no senhor!
- Já morri, minha senhora. Eu já morri.
- Mas por que diabos veio parar dentro do carro dos Camata?
- Não sei. E a senhora?
- Eu estou apenas pegando uma carona pra casa já que emprestei meu chofer a minha neta nesta tarde e fechei um ótimo negócio com os Camata.
- O que mais me tem impressionado, nessa minha jornada como fantasma, é o fato de que só me tem sido dado conversar com mulheres absolutamente surpreendentes.
- Não tenho nada de surpreendente, moço. Eu diria que o senhor é bem mais surpreendente que eu.
- Sua história é muito incomum, Dona Belina. A senhora nasceu numa família de industriais. Foi atraída pelo trabalho nas fábricas e a sua família jamais permitiria que uma mulher ocupasse postos de poder.
- Chiii... Que história mais antiga, seu fantasma! Mandei-os todos pro inferno quando tinha 20 e poucos anos. Fui trabalhar como corretora de imóveis. Fiz carreira, tenho meu próprio negócio e, individualmente, ganho mais que meus irmãos e primos que ainda estão nas velhas fábricas. E como são velhas! Agora, depois do Collor e da abertura, eles estão comendo um doze pra atualizar as fábricas, a maioria sucateada e ineficiente. Só com o fim das restrições às importações foi que esses trogloditas da empresa privada nacional perceberam sua defasagem no tempo.
- Seu julgamento é deveras severo. Tivemos industriais maravilhosos em São Paulo, ou estou enganado? Eu mesmo me detive horas e horas na sede da FIESP, observando reuniões, lendo antigos documentos. A senhora sabe, na maioria das vezes ninguém toma conhecimento da presença dos fantasmas. Pude acompanhar um pouco da história de iniciativas humanísticas na indústria paulista.
- Bah! -disse ela mordendo um cigarro que acabara de acender- Isso foi antes de começarem a copiar os modelos americanos e predadores. Isso foi antes da televisão e da Ditadura transformarem o nosso povo nesse gado sem personalidade, nesse monte de cobra mandada, em guerra por status e posição social. Somos um monte de merda, seu fantasma. Garotos como o João Camata (tão parecido com o senhor!!!) são grandes exceções na atividade econômica. A maioria é de emergentes, novos ricos, o senhor sabe, né? -- Emergentes sem nenhuma consciência social, sem nenhuma formação cultural. Eles simplesmente não percebem que, sem o seu próprio passado, sem a História, eles seriam apenas bichos no mato. Esse pessoal é arrivista, ignorante, não tem o menor respeito pelo que veio antes e, pra eles, empregado é gado mesmo. O senhor pensa que eles acham que os empregados são gente? Eles têm ódio da pobreza, já que estão por demais próximos dela em sua origem.
- Seu julgamento é excessivamente severo, minha senhora.
- Eles é que são excessivamente sem-vergonha, seu fantasma. É tudo homem. Homem grosso. Porque a elite culta e sensível, desapareceu. O que resta dela hoje é muito, muito pouco e com muito pouco poder. Os humanistas empobreceram, na roda da fortuna. E as mulheres desses caras novos, então?! Meu Deus. Burras, loiras e peruas plastificadas. Dá pra contar nos dedos as esposas de verdade, o senhor sabe, aquelas maravilhosas mulheres que seguravam a barra dos seus maridos, que contribuíam com o lado sensível e humano não só dentro do lar, mas opinando e discutindo com seus homens o melhor rumo para os seus negócios, atividades e relações humanas. Hoje as mulheres regrediram muitíssimo, se comparadas às mulheres da minha geração e da geração dos anos sessenta. Assumiram o sexo como moeda. Elas acreditam que já que o homem quer mesmo delas é sexo então precisam cobrar caro, muito caro. Dão pra eles na cama, mas querem mesmo é a grana, o carro, a mansão. E depois, pra essas famílias cuja única base é a monetária, sobra apenas o caminho das drogas lícitas ou ilícitas.
- Não entendo, disse o Fantasma abanando a cabeça. O dinheiro pelo dinheiro é o que a senhora está dizendo.
- O senhor mesmo, já nasceu endinheirado lá na estância uruguaia de sua família. Não sabe e nunca soube o que é ser pobre e, de repente, ter dinheiro e poder.
- Mas pelo pouco que pude absorver da história do século XX, isto ficou bem claro com a ascensão do proletariado na extinta União Soviética...
- Os russos! Eles criaram apenas uma nova classe, uma nova elite. Dilas já tinha observado isso e antevisto o furo, nos anos cinqüenta, quando escreveu “A Nova Classe”.
- A senhora então compreende essa elite que a senhora mesmo denigre.
- Psicologicamente compreendo mesmo. Mas nada me obriga a gostar deles, não é?
- Negocia com eles.
- Por isso os conheço bem e posso falar o que penso.
O trânsito estancara no quarteirão antes da Augusta.
- Minha senhora, essa conversa está maravilhosa, mas se o seu carro prosseguir e entrar nesse buraco, rumo à Dr. Arnaldo ou à Rebouças, eu serei jogado, mesmo contra a minha vontade, para fora desse momento. Por isso, acho melhor ir me despedindo pois a qualquer instante poderei sumir e não gostaria de ter alguém como a senhora dizendo que sou mal-educado e parto sem dizer adeus.
- Ah, senhor Fantasma! O senhor é uma pérola de gente! Um amor, mesmo. Além disso, devo-lhe muito. Se o senhor não tivesse construído essa avenida eu seria alguns milhares de dólares mais pobre.
- Mas, antes de ir, devo aplacar a sua indignação. Tenho evitado falar do futuro para as pessoas de qualquer tempo. No entanto, devo dizer-lhe que os filhos da peruas e dos empresários predatórios serão ótimos cidadãos, daqui a muito pouco tempo. Esses jovens dos anos noventa crescerão com uma mentalidade muito melhor e, ironicamente, mais humanizada pelas modernas máquinas da comunicação, como a TV ou o computador. Além disso, aqui no Brasil, terão, em poucos anos, uma enorme surpresa, um presidente que aproximará, de maneira inédita, capital e trabalho.
- Deus o ouça, Sr. De Lima. Deus o ouça. Porque a mim ele nem ouve mais.
Nesse instante o trânsito andou e o carro começou a aproximar-se do fim da Avenida Paulista.
Belina Marinelli viu o fantasma sair voando através do vidro do carro e entrar no imenso prédio também todo envidraçado, por uma das janelas. Notou, enquanto o carro lentamente se afastava, que entre aquele mosaico de formas e cores que tanto admirava no reflexo do reflexo nos imensos vidros da Paulista, havia também o reflexo dos seres humanos, de dentro e de fora. E uma visão terrível tomou conta de sua imaginação: aquelas torres de vidro e concreto implodindo, caindo sobre si mesmas, deixando, em poucos minutos, apenas montanhas e montanhas de entulho sobre a avenida.
Foi uma visão rápida e irritou profundamente a velha senhora, sempre tão prática e racional e nada inclinada a acreditar em fantasmas e/ou em visões apocalípticas. Amassou com raiva o esquecido cigarro que acabara apagando entre seus dedos:
- Só falta agora esses calhordas detonarem uma terceira guerra.
O carro entrava no acesso subterrâneo. Belina olhou para trás, para a majestosa avenida e suas luzes. Quase sem querer, sorriu.
Naquela noite sonhou que a Avenida Paulista vinha abaixo, exatamente como em sua visão depois da visita do Fantasma, por bombardeio nuclear onde os prédios implodiam em vez de explodir. Ela olhava, horrorizada, da janela de um escritório no prédio do conjunto Nacional. Toda a Paulista ruía ante seus olhos, os prédios caindo, um a um, como pedras de dominó. Ao invés do pânico que seria natural, havia em seu peito uma grande paz. Chegou a hora da morte, ela sabia em sonhos. Mais uma fração de segundo e a onda explosiva atingiria o Conjunto Nacional. Pensou na história vindo abaixo. Lembrou-se das muitas tardes no Fasano, nos anos 50 e 60, ouvindo os planos de dois jovens playboys que se transformariam em grandes empresários na comunicação. Pensou nas muitas manhãs de sábado em que, ali mesmo, no térreo do Conjunto Nacional, ouvira intelectuais de três gerações discutindo os rumos do Brasil nas mesinhas da Livraria Cultura. Pensou com carinho na jovem Diná, sua amiga, dos anos sessenta e na mulher sofrida em que ela se transformara em sua luta pela libertação feminina. Pensou na filha de Diná, Marina, que desde menina queria ser jornalista. Viu e sentiu e pensou tudo isso em menos de uma fração de segundo.
“Sempre ouvi dizer que é assim, um filme enorme e instantâneo que rola na cabeça da gente no momento da morte...”, pensou ela. Então sentiu o imenso vidro do prédio estourando, uma coisa a agarrá-la pela cintura e percebeu que, ao mesmo tempo em que o prédio do Conjunto Nacional desabava, ela estava sendo levada, pelos ares, para longe, muito longe dali. Voava pelos céus de São Paulo a reboque de um enorme pássaro branco.
Olhou em torno e viu que essas imensas aves estavam realmente salvando pessoas do desastre da Paulista. Uma felicidade inexplicável tomou conta de seu coração, embora, lá embaixo, o quadro fosse dantesco. Bairros inteiros desmoronavam como castelos de areia e o ar se tornava denso, de tanto pó. Tanto pó, tanto pó...
Acordou assustada. E sem fôlego. Tudo era calma, no entanto, em seu amplo quarto. Tudo estava em seu devido lugar. Mas, pela primeira vez, Belina lamentou a ausência de um companheiro ali, ao seu lado, no leito. Tinha em si uma estranha urgência de abraços.
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