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A Casa, o Vestido e a Felicidade

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 13 de set.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 22 de set.

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano



O Vestido, 1916
O Vestido, 1916

Mariana e Turíbio se conheceram no dia em que a Avenida Paulista completava 115 anos, num evento na Casa das Rosas, em 8 de dezembro de 2006. Foi amor à primeira vista. Aliás, não! –julgava ela – Reconhecimento à primeira vista, porque Mariana soubera, assim que o vira, que ele fôra seu amor também em outras vidas passadas, se não em outras, pelo menos em uma outra vida, quando ela se chamava Maria Amália e ele, Antonio Luiz Turíbio G de Carvalho.

 

Hoje, quase vinte anos depois desse encontro na Casa das Rosas, Mariana ainda treme com a lembrança de sua Casa e do Vestido.


Acontecera tudo em 2003, quando ela se mudara para um antigo apartamento no centro da cidade de São Paulo – aquela cobertura na Avenida São Luiz – e lá encontrara um velho baú cheio de álbuns de fotos e de cadernos com preciosas anotações domésticas e... aquele vestido de seda, negro, lindo, perfeitamente conservado, um vestido do começo do século XX.

 

Fôra assim que ela descobrira toda a história de Maria Amália, dias depois completada pelo próprio filho dessa, um senhor de mais de oitenta anos, que ela encontrara, por acaso, na agência do banco onde trabalhava, então como assistente da Diretoria. Acaso?

 

Hoje, Mariana sabe que o acaso é uma intenção da vida. Hoje é uma das diretoras do banco e abandonara completamente aquele seu orgulho de ser uma mulher racional. Hoje ela sabe, graças a história da Casa e o Vestido, que o mundo tem muitos mais mistérios do que sonha a nossa pobre razão e compreende que, não só ela, mas todas as mulheres, tem esse lado bruxa, adivinha, intuitiva, visionária...

 

Maria Amália, a dona do vestido e do baú, morara naquela cobertura de 1945 a 1954, ano em que morrera. Mariana descobriu o vestido e o baú, portanto, quase cinquenta anos depois. E descobriu também que Maria Amália fôra uma mulher de grande coragem e que se atrevera a ser “a outra” de Antonio Luiz, que era casado, e que tivera quatro filhos com ele – Desdemuna, Ariosto, Rosmunda e Turíbio. – Desafiando assim os muitos preconceitos, do tempo em que vivera, contra amantes e bastardos.

 

Isso e muito mais acontecera naqueles primeiros dias em que ela se mudara para o apartamento, tão grande e amplo, que ela o chamava de “a casa”. Os sonhos com Maria Amalia, com a Fazenda Azul, azaleias florescendo em novembro, visão da Avenida São Luiz como era em 1954... Toda essa sucessão de coisas estranhas e intrigantes acabaram por convencer a racional Mariana de que ela fôra Maria Amália, na anterior encarnação de sua alma.

 

O vestido que Mariana encontrara – inexplicavelmente limpo – servira nela própria como uma luva e quando Antonio Luiz, o filho, fôra buscar o baú com as coisas de sua família, insistiu para que Mariana ficasse com o vestido que lhe servira tão bem. Por isso, no dia em que conheceu o jovem engenheiro Turíbio, no evento de comemoração aos 115 anos da Paulista, Mariana estava usando aquele vestido.

 

E foi ele, o vestido, que servira de pretexto para o jovem Turíbio abordá-la:

-- Desculpe-me! Mas estou encantado com o tecido desse seu vestido! Onde é que, nos dias de hoje, se vê tal seda pura?

 

E eles se apaixonaram. Para ela, estava claro: ele era a reencarnação de Antonio Luiz Turíbio G de Carvalho e ela, a reencarnação de Maria Amália. Só que, nessa vida de agora, estavam livres para viver plenamente a felicidade.

 

“E, de fato, a vivemos”, pensa ela, debruçada na amurada de sua cobertura da Avenida São Luiz, naquele começo de noite de 1 de julho de 2025. Ela estava exausta, acabara de chegar de cerimônia de cremação de Turíbio. Fôra uma morte súbita, a dele. Um infarto, daqueles fulminantes, o tirara novamente da vida dela. E – Refletia – se o trabalho seria uma distração e um consolo para o seu luto de agora, daqui a uns poucos meses ela também o perderia: chegaria a hora de se aposentar e ocupar, no máximo, uma cadeira no conselho do banco, onde hoje, era diretora.

 

Agora, olhando a avenida lá embaixo, pela primeira vez em toda a sua vida, sentia-se desamparada. Seu amor se fôra! Seu trabalho se iria... E o que seria dela nesse futuro próximo?


Tinha a casa, que ela amava, e tinha, ainda, aquele vestido, que talvez já contasse mais de 100 anos e continuava lindo e brilhante, como se tivesse sido confeccionado ontem... Mariana pensava... Para aquele vestido o tempo não existia. Mas para ela, sim. Tinham sido 19 anos de uma relação feliz com Turíbio, muito embora, logo depois que se conheceram, quando ela contara a ele a história da casa, do vestido e de Maria Amália, a reação dele lhe parecera muito estranha... e injusta!

 

Ele dissera:

-- Mariana, você tem uma imaginação de escritora! Deveria escrever um livro, viraria best seller – e rira – e você ganharia muito mais do que ganha no banco!

 

-- Não. Não foi imaginação! – respondeu ela, um tanto indignada.

 

-- Foi sonho, então! – retrucou ele, claramente incapaz de acreditar na história que ela de fato vivera.

 

Assim, como ela se recusava a deixar sua casa, ele acabara concordando em ir viver lá, com ela. Mas com uma condição: que jamais ela voltasse a se referir àquela coisa maluca de vestido de Maria Amália, de reencarnação, de sonhos com Fazendas Azuis, onde pássaros brotavam das árvores como se fossem frutos, ou de visões com o ano de 1954.

 

Mariana, apaixonada, concedeu.

 

E, de fato, foram 19 longos anos de absoluta felicidade. A sua carreira, só ascendente, no banco, o sucesso do escritório de engenharia dele, as viagens pelo mundo que tinham feito juntos e apaixonados... E agora... ele se fôra.

 

Não tiveram filhos, mas Mariana tinha sobrinhos. E um deles, quando ligou para ela, apresentando suas condolências pela morte do “tio Turíbio”, perguntara:

 

-- Tia, com todo o respeito pela sua dor e por seu luto, você não consegue pensar, pelo menos, no que será melhor em sua vida sem ele?

 

Ela não pôde imaginar coisa alguma, diante da pergunta. No entanto, agora, fitando a Avenida e lembrando-se daquela sua distante visão da mesma avenida em 1954, um ousado pensamento invade a sua mente: Afinal, se ela renunciara, por amor ao Turíbio, a toda aquela experiência (Mística? Sobrenatural?) que vivera naquela casa e que, ironicamente, fôra essa mesma experiência que acabara por leva-la a conhece-lo, já que ele não estava mais ali, poderia reviver o estranho e inquietante episódio? Poderia voltar a sonhar com a Fazenda Azul? Com sua outra vida, como Maria Amália? As visões – tão claras, meu Deus! – com o passado de sua própria cidade?  Ah... Seria um consolo, um alento, uma nova esperança para esse futuro que se mostrava tão pleno em perdas...

 

Seis dias depois, sonhou. Estava na Fazenda Azul, mas a mulher que usava aquele vestido preto, não era mais Maria Amália, mas era ela própria! Os pássaros, nascidos das árvores, pousavam, todos, em seus ombros, em seus braços, em sua cabeça, e ela ria, de pura felicidade, admirando lhes o bater das asas, a beleza de suas penas coloridas, a deliciosa sensação de suas pequenas patas a fazer coceiras em seu couro cabeludo! Aspirava, deliciada, o perfume adocicado das azaleias das grandes touceiras... Afinal, ali, naquela Fazenda, era sempre julho e as azaleias floriam sem parar! De repente, ouviu a voz de Maria Amália: -- O amor sempre nos cobra um preço. Para ter um, é preciso renunciar a alguma coisa!


Assim, duas décadas depois de ter renunciado aos sonhos e à história de Maria Amália, a primeira moradora daquela "casa", apartamento, onde ela fôra tão feliz com o seu amor reencontrado, a reencarnação do amante de Amália, o homem que negava peremptoriamente a louca experiência que ela tivera com A Casa e o Vestido, Mariana começou a recuperar todo aquele clima de misticismo e mistério que ficara enterrado em seu passado... "Da mesma maneira que o vestido de Maria Amália passara meio século enterrado e esquecido no baú abandonado no quarto de empregada do seu (delas) apartamento" -- pensou então.


O vestido ainda estava lá, incrivelmente preservado, em seu armário. E na manhã seguinte ao sonho com a Fazenda Azul, que voltara, afinal, depois de tanto tempo, Mariana acordou pensando que aquele era o sétimo dia da morte de seu amor e que a empresa de engenharia que ele próprio fundara, decidira mandar rezar uma missa, na Catedral da Sé, para ele. Assim, ela resolveu que iria à missa com o vestido antigo de Maria Amália. E foi.


Voltou para casa, direto da celebração religiosa, ao entardecer, e foi novamente debruçar-se à amurada do terraço onde, 20 e tantos anos antes, ela tivera a visão da Avenida como era em 1954. Dali se avistava grande parte da cidade que ficava maravilhosa sob as luzes avermelhadas do pôr do sol. Apoiou os cotovelos no cimento do murinho e ouviu o tecido rasgar-se. Olhou. As mangas do velho vestido rasgaram-se nos locais onde ela as esfregara contra o muro. Levou a mão direita ao ombro, para poder ver o estrago. Mas, ao fazer isso, a costura da manga direita rompeu-se. Mariana resolveu voltar ao quarto e tirar o vestido, pensando se alguma costureira conseguiria recuperar aqueles rasgões. Quando o tirou, pela cabeça, o vestido de desfez em inúmeras tiras de pano, que caíram todas aos seus pés.


Com lágrimas descendo-lhe pela face, Mariana olhou para o restos do vestido e disse apenas: "Adeus".


Daquele dia em diante, os sonhos voltaram. E, com eles, as visões.


Por isso, ao ouvir uma amiga falando da bruxa Circe, a mais sofisticada -- e rica -- bruxa de São Paulo, resolveu marcar uma consulta com ela. Como acontecia com todos os clientes de Circe, Mariana também ficou deslumbrada com os jardins que cercavam a grande casa onde a bruxa atendia e morava. A consulta durou muito mais do que o tempo regulamentar de uma hora, para a impaciência e o desconforto dos clientes que esperavam a sua vez. Mas Circe quis ouvir toda a história de Maria Amália e seu vestido de seda preto. Mariana levara a foto antiga e contou tudo, desde o dia em que comprara aquele apartamento (a casa) até o momento recente em que o vestido, misteriosamente preservado por tantas décadas, de desfizera em tiras como, se de repente, sofresse, em alguns segundos, todo o efeito devastador que tem o tempo sobre tudo o que existe na Terra.


Quando se aposentou, Mariana foi trabalhar com Circe. As duas tinham se tornado muito amigas. Mariana passou a ouvir também os clientes de Circe e a poderosa intuição, que ela desenvolvera nos últimos tempos, completava a leitura das cartas e da bola de cristal da bruxa Circe, dando caminhos e soluções acertadas aos que as procuravam.


Foi Mariana a escolhida para ser a madrinha de casamento da filha de Circe, Morgana, que era cadeirante, mas não inválida para o sexo.

 

Mariana ainda viveu mais dez anos naquela sua maravilhosa cobertura, sempre trabalhando na casa de Circe. Sempre encontrando uma grande alegria em ajudar aos que precisavam de seus conselhos. Sempre alentada pelos muitos e deliciosos sonhos com a Fazenda Azul. Por fim, morreu dormindo, enquanto sonhava que Maria Amália a esperava ao fim de um longo túnel de luz e que seus corpos se fundiam num único corpo porque, mal ou bem, elas sempre tinham sido uma mesma alma.

 

Bel, 2025 setembro, 13 e 16


 

 


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