Aurora Sufragista
- SAUDE&LIVROS Fomm
- há 3 dias
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por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
Assista vídeo onde conto essa história (As Bruxas, TV Paradise)

Aurora nascera junto com o século XX e agora, aos 14 anos, era considerada uma menina-problema na família. Dotada de uma inteligência fora do comum e de uma curiosidade que, julgavam, beirava a loucura, ela sempre dava um jeito de estar muito bem informada sobre tudo o que acontecia no mundo. Quando fora a Paris, no ano anterior, trocara endereços com meia dúzia de pessoas e estas somavam-se agora aos correspondentes que ela mantinha nos Estados Unidos, no Canadá e em Portugal. Lia e escrevia em francês e inglês, como se fossem essas as suas línguas pátrias e surpreendia quando se metia, sem cerimônia, nas conversas dos adultos, pelo acerto das opiniões que emitia, pela maturidade que revelava.
Graças a um de seus correspondentes franceses, Aurora ficara sabendo que, no começo de junho daquele ano de 1914, no Clube Londrino de Engenharia, Archibald Low apresentara uma invenção sua, numa conferência. Tratava-se de uma máquina capaz de receber até 1500 imagens por minuto, como se fosse um rádio, só que com figuras. Ninguém se importou muito, dissera seu correspondente, porque a máquina era caríssima e, por isso, não viam futuro para ela. Mas Aurora achou o invento genial e ficou uma semana falando que a televisão (era assim que se chamava) ainda dominaria o mundo, tal qual o cinema estava dominando hoje. E mais, dizia ela, o cinema ainda terá falas e cheiros, no futuro. Vai ser igual ou melhor que o teatro.
A família ria-se daquela menina, tão diferente das garotas de então, cheia de ideias, interessada pelo conhecimento, pela ciência e, pior, pela política. Os pais se preocupavam com o futuro dela e tentavam interessá-la por coisas de mulher, ao que ela regia sempre falando nas sufragistas, principalmente em Emmeline Pankhust, que conseguira recentemente sair da cadeia, na Inglaterra, depois de uma greve de fome. Em julho daquele ano, quando Edu Chaves conseguiu afinal fazer a travessia Rio – São Paulo num aeroplano, Aurora ficou muito entusiasmada e disse que gostaria de aprender a voar. Foi durante o jantar e o pai, desta vez, perdeu a paciência:
- Meta-se com as coisas do seu sexo, menina! Já estou cansado de ouvir asneiras à mesa. Trate de aprender a ser uma boa mulher, para poder criar os seus filhos com dignidade e ser uma boa esposa. Que homem iria querer casar-se com uma aventureira que só pensa em dirigir aviões, quer saber como funcionam os automóveis e se interessa por máquinas? Minha filha, essas coisas não foram feitas para as mulheres.
- Não vejo por que não, senhor meu pai. As mulheres não são diferentes dos homens, são tão capazes quanto eles!
- Aí é que você se engana – retrucou o pai, munindo-se de toda a paciência que era capaz – As mulheres foram feitas para zelar pela paz de seus lares, para educar as crianças e administrar suas casas, de maneira que os homens tenham um porto seguro para voltar depois das batalhas do dia a dia. Devem ser serenas, submissas e prover tranquilidade ao espírito inquieto dos homens.
Como você faria tudo isso se estivesse também se aventurando com essas máquinas modernas? Onde estaria quando seu marido chegasse em casa? Quem cuidaria de suas crianças, com você, a mãe delas, metida no mundo dos homens e pensando em política, em voto e outras coisas que não foram feitas para a delicadeza feminina? A propósito – continuou ele – eu não queria falar nisso ainda, mas sua mãe e eu já decidimos que, no ano que vem, vamos mandar você para uma escola de moças na Suíça, para ver se, lá, conseguem enfiar algum juízo nessa sua cabecinha.
Aurora gelou. Viver trancada com um monte de meninas ignorantes num internato suíço? Nem pensar! Ela enlouqueceria.
Mas foi salva pela guerra, deflagrada em meados de 1914, tornando o mundo inseguro demais até para se mandar uma filha estudar na Suíça.
Assim, 1915 despontou com Aurora ainda no Brasil e mais curiosa do que nunca. Tinha mandado vir da Europa alguns livros de psiquiatria, pois ficara fascinada pela transcrição da conferência do Dr. Franco da Rocha que trouxera ao país as teorias de Freud. Ela lera tudo numa edição de O Estado de São Paulo e desde então ansiava saber mais sobre esses mistérios da mente humana.
Os livros, ansiosamente aguardados, porém, também não chegavam nunca, por causa da irregularidade do tráfico marítimo, agora ameaçado pelas batalhas navais.
No começo daquele ano, outra tempestade familiar desabou. Os pais esperavam que ela, até o término dos seis anos que duravam o curso ginasial, já estivesse noiva ou mesmo casada e já se falava em nomes de pretendentes para um casamento que fosse também uma saudável união de forças econômicas, o único destino possível para meninas de sua classe social. Aurora não queria ser esposa. Queria ser cientista e brigou com a mãe, ameaçou escrever uma carta para os jornais paulistanos protestando contra aquele absurdo de estarem querendo impedir a sua formação e afirmando que, nos Estados Unidos, já existia até um curso de Medicina para mulheres, criado por iniciativa da primeira mulher formada médica, em 1848, Elisabeth Blackwell.
- 1848. Fazem mais de 50 anos e eu, aqui no Brasil, só posso ser uma mulherzinha besta!
- Chega, Aurora – explodiu a mãe, diante da cantilena da filha. – Pelo seu pai você nem continuaria os estudos. Ele acha que ginasial completo já é demais para quem vai educar crianças e cuidar dos jantares e das festas da casa. Eu é que disse a ele que você deveria prosseguir nos estudos porque você gosta da escola, é uma moça curiosa e inteligente. Se ele pegar você falando essas coisas vai resolver que você não precisa mais de escola nenhuma!
O pai de Aurora, porém, era uma exceção naquele mundo provinciano da cidade de São Paulo de 1915. Fruto de uma família tradicional e muito rica, dona de fábricas e fazendas no interior e na capital, estudara nos Estados Unidos e não na Europa, como era de praxe com os ricos herdeiros. Viera da América do Norte com a cabeça transformada pelo surto de progresso e riqueza que via acontecer lá. Vira também, de perto, o espírito empreendedor que já dominava aquele país e entendera que, neste século, muitas mudanças sociais importantes ocorreriam, como consequência das modificações trazidas pelas novas invenções que pululavam pelo mundo, as máquinas seriam o futuro dos homens sobre a terra! Mais do que isso: dos homens e das mulheres, pois ele percebia que as mulheres iriam lutar, como já lutavam no Europa e na América, não só pela cidadania plena mas também pelo controle de sua prole e de seu corpo. Por isso, essa filha completamente fora dos padrões não o assustava tanto quanto ele fazia parecer. Sabia que Aurora, como ele, estava imbuída do espírito do progresso, que dominava aquele começo de século.
Numa tarde de outono, no começo do mês de maio, Aurora voltava das aulas quando o carro da família foi bloqueado, no centro da cidade, por uma multidão de operários, em passeata, que protestavam contra a guerra.
Causara muita comoção em Aurora o fato de os alemães, há cerca de um mês, terem usado um gás contra os aliados da Frente Ocidental, que matou muitos soldados por hemorragia. Ela acreditava que esta fora uma atitude covarde, assim como covarde também fora, na sua opinião, o uso de aeroplanos, pelo governo brasileiro, contra os rebeldes do Contestado. Aliás, ela já ouvira falar que Santos Dummont também não estava nada satisfeito com a sua invenção sendo usada como arma. Aurora sabia que havia pouco mais de 70 mil operários em São Paulo, seu pai mesmo lhe dera o número, (“devem estar todos aqui” –pensou, fitando a imensa massa que tomava a rua) e sabia também que muitos deles, principalmente na indústria têxtil, eram mulheres. Quando viu que a multidão carregava cartazes com o nome da Confederação Operária Brasileira, mandou o chofer encostar o carro.
O motorista, que estava cansado de conhecer o perigo que Aurora significava, respondeu:
- Senhorita, não posso fazer isso. Serei despedido se permitir que a senhorita se junte a essa multidão.
- Como sabe, Orestes, que eu vou fazer isso?
- Eu a conheço, dona Aurora.
- Pois se você não parar esse carro, descerei com ele em movimento mesmo – gritou ela, já com a mão no trinco.
Orestes freou. E desceu, abrindo a porta para ela:
- Mas eu vou com a senhorita, para protegê-la.
Aurora era fascinada pelos operários, dos quais muito pouco sabia. Mas sabia, por exemplo, que eles tinham força, tanta força que haviam obrigado, em outubro do ano anterior, o presidente Hermes da Fonseca a declarar estado de sítio no Rio de Janeiro para tentar contê-los. Sabia também que eram, na sua maioria, anarco-sindicalistas e tinha certeza que, entre eles, deveria haver muitas mulheres que pensassem como ela, que quisessem muito mais do que sua mãe e sua família anteviam como um futuro digno para uma mulher de sua classe social.
Diante da multidão, porém, agradeceu em pensamento a Orestes, por estar com ela. A força, a energia que emanava daqueles homens e mulheres em marcha, aos gritos, era algo que, em toda a sua vida, jamais presenciara. Agarrou-se ao braço do chofer, quase em pânico.
- Vamos para casa, agora, senhorita? – perguntou ele, sentindo que ela tremia.
- Sim, vamos – capitulou ela.
Enquanto o carro saía do centro, Aurora perguntou:
- Orestes, você tem família?
- Tenho sim, senhorita. Uma esposa, Maria das Graças, e três filhos pequenos.
- Mas você mora lá em casa, nos aposentos dos empregados!
- Sim, dona Aurora, mas tenho folga uma semana aos sábados e outra semana aos domingos. Aí posso ver minha família.
- A sua mulher não reclama?
- Ela não gosta muito, mas o que se há de fazer? Ela também trabalha, na fábrica de tecidos, e chega em casa muito cansada, ainda tem coisas para providenciar, ficar um pouco com as crianças...
- Se ela trabalha, quem cuida das crianças?
- A nona, quer dizer, a avó, minha sogra.
- Vocês são italianos, não são?
- Nasci aqui mesmo, dona Aurora. Vim da Itália, de navio, na barriga da minha falecida mãe, mas nasci aqui no estado de São Paulo. Minha mulher nasceu nas Minas Gerais, mas veio jovem, com a mãe, para cá. A mãe dela era empregada numa casa de ricos e foi lá que a minha mulher aprendeu a ler e a escrever, mesmo assim só conseguiu esse trabalho, na Tecelagem Santana, lá no Brás.
Assim, Aurora ficou sabendo que Orestes era filho de uma das mais de 40 mil famílias de imigrantes italianos que haviam chegado ao Brasil no final do século XIX e que seus pais tinham ido, como tantos outros, para o trabalho nas lavouras das fazendas de café. Com muito custo, tinham conseguido escapar daquele regime de semi-escravidão e, instalando-se na cidade, seu pai conseguira um emprego num dos poucos estúdios de fotografia que começavam a surgir em São Paulo. Mas, de tanto lidar com os banhos químicos de revelação das fotos, acabara ficando muito doente dos pulmões e a pele se escalavrara e ele morrera, por fim, muito moço. Orestes havia tido o privilégio de aprender a manejar automóveis porque o patrão do pai fora um dos primeiros proprietários dessas máquinas importadas e, desde menino, cabia a ele lustrar e manter em ordem o automóvel. Por fim, acabara conseguindo aquele emprego, na casa dos pais de Aurora.
- Eu me lembro de você desde que era uma criancinha! – disse a moça.
- Já estou há dez anos com a sua família, senhorita.
- E nunca pensou em fazer outra coisa?
- Na verdade, estava juntando algum dinheiro e pensava em me estabelecer como fotógrafo, aprendi alguma coisa sobre a arte da fotografia, mas sempre acontece qualquer coisa, uma criança doente, um imprevisto e lá se vai o dinheiro! – disse ele, já rindo.
- Na sua próxima folga – perguntou Aurora quando entravam pelo suntuoso portão de sua casa – você me leva para conhecer a sua família?
- Ficaríamos muito honrados, senhorita. Mas seus pais jamais permitiriam.
- Não vamos contar a eles.
- Por favor, dona Aurora. Eu posso perder o meu emprego. E, além disso, a senhorita me desculpe a franqueza, mas lá onde eu moro não é lugar para uma dama da sua classe. É um lugar de pobre, dona Aurora. A senhorita nem poderia imaginar como é.
- Eu sei muito bem como é, Orestes. Por acaso não vejo as casas dos colonos e a senzala quando vou à fazenda?
- Mas um cortiço como o Scoppeta é muito diferente. Olha, dona Aurora, a senhora é muito moça e não percebe que existem vários mundos. O seu é um, o nosso é outro.
- Você vive nos dois! Por que eu não posso?
Orestes já estava ficando meio ofendido, achando que a curiosidade da menina em saber como sua família vivia era uma coisa meio cruel, meio mórbida. Por sorte, ela calou-se.
No fim de semana, quando foi para casa, Orestes contou à mulher sobre a curiosidade de Aurora.
- Mas o que é que essa menina rica e fútil ia querer com a gente? – perguntou Maria das Graças.
- Bom, eu não sei. Mas ela não é fútil. Anda interessada nos movimentos operários, fala nas sufragistas de outros países, é uma menina diferente das outras de sua classe social.
Foi assim que Orestes, por insistência de Maria das Graças, acabou levando, às escondidas, para
Aurora alguns exemplares antigos de jornais femininos com a revista Anima Vita, de Ernestina Lésina e alguns amarelados números de A Mensageira, de Prisciliana Duarte de Almeida.
Aurora ficou ainda mais entusiasmada com a luta das mulheres ao perceber que, aqui no Brasil, também existiam, além de Deolinda Daltro que, ela sabia, fundara uma agremiação de mulheres no Rio de Janeiro, representantes femininas de todas as classes discutindo a condição social das mulheres e lutando para ampliar seus direitos políticos.
Escreveu uma delicada carta à mulher de Orestes, agradecendo a ela por ter lhe enviado as publicações e, por fim, conseguiu descobrir que uma das colaboradoras da revista A Mensageira, que fora publicada no final do século anterior, ainda estava na ativa, sendo uma das poucas mulheres que escreviam regularmente para jornais de vários estados brasileiros. Começou com essa mulher uma correspondência que durou mais de dez anos e, por influência dela, antes de completar 16 anos de idade
Aurora era também, sob o pseudônimo de A Libertadora, colaboradora regular de vários órgãos da imprensa. Seus artigos falavam de Clara Zetkin – a socialista que propusera, em 1910, a criação do Dia Internacional da Mulher; Margaret Sanger, a enfermeira que estava sendo perseguida nos Estados Unidos porque propunha a divulgação de métodos do controle da natalidade e, ainda, de sufragistas que se tornavam famosas pelo mundo, como Alice Paul, Elizabeth Stanton, Lucrecia Mott e outras.
Sua família nem sonhava com essas atividades da moça e houve mesmo comentários sobre os artigos da tal misteriosa Libertadora num jantar em sua casa.
Em 1916, Aurora conheceu Armando. E se apaixonou perdidamente por ele. Filho de uma abastada família de industriais que tinham negócios com o pai dela, o rapaz não ficou indiferente à graça e à perspicácia daquela jovem. Interessou-se também por ela e as famílias se entusiasmaram. Nada como um bom casamento que uniria os interesses de ambos os clãs e certamente acalmariam as ideias meio malucas de Aurora. A Armando, porém, as ideias avançadas de Aurora não assustavam tanto assim. Cursando o último ano da Faculdade de Direito ele também tinha lá suas ideias avançadas e simpatizava mesmo com as causas sociais, ainda que estas contrariassem frontalmente os interesses de sua própria fortuna.
O casamento foi um dos mais comentados naquele ano de 1917 na provinciana cidade de São Paulo. Os jornais publicaram extensas coberturas, todos comentavam os trajes dos ilustres convidados, o que foi servido, o que se disse, que músicas foram tocadas, enfim, todos os detalhes de uma festa que durou um dia inteiro e mobilizou centenas de pessoas, de confeiteiras a cabeleireiros e modistas e gerou suspiros de admiração e sonho nas mocinhas casadoiras das classes inferiores.
E só não durou muito a comoção porque a cidade foi sacudida pela maior greve operária de sua história, na semana seguinte. Um mês antes, outras greves menores já sacudiam a cidade e, em 9 de julho, um operário, Martinez, foi morto em confronto com a polícia. No dia 12, o enterro dele foi a senha para que se deflagrasse a greve geral. Mais de 70 mil operários cruzaram os braços e começou então uma semana de conflitos entre as forças policiais e os grevistas. No Brás e na Mooca os operários ergueram barricadas e houve saques e tiroteios. Só com a mediação dos jornalistas é que foi reestabelecida a ordem, depois de fechado um acordo entre patrões e operários que, a bem da verdade, contemplava muito pouco da lista de reivindicações dos trabalhadores.
Aurora, que estava em lua de mel em Paris, lamentou ter perdido o espetáculo. Enquanto São Paulo era palco de uma verdadeira guerra proletária, ela trocava ideias feministas nos elegantes salões de chá da capital francesa.
Embora encontrasse eco nas classes operárias de todo o mundo, o movimento sufragista era composto também por mulheres das classes mais abastadas que se encarregavam, inclusive, de dar maior visibilidade à causa. Naquele começo de século, quando os operários de todo o mundo, lutavam ainda pelos mais básicos direitos, a causa feminista era vista por muitos como secundária.
Aquele foi o ano da revolução bolchevique e de grandes discussões entre anarquistas e socialistas, todos certos de que o capitalismo estava à beira da falência.
Armando fora contaminado pelos ideais socializantes das muitas discussões e movimentos que ocorriam na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e, a despeito de sua posição social privilegiada, comungava das ideias de sua jovem e excêntrica esposa. Por isso, embora tenha ficado magoado por ela ter demorado tanto a compartilhar seu segredo, sentiu um certo orgulho quando Aurora finalmente lhe confessou que ela era a misteriosa “Libertadora” que inflamava mulheres pelo Brasil todo, publicando seus artigos em jornais de várias capitais e cidades importantes.
- Mas como você conseguiu isso, sem que sua família sequer desconfiasse? – perguntou ele então.
- Sabe o Orestes, o motorista? Ele é quem leva a correspondência para os correios e eu, desde menina, tenho correspondentes em vários países, então, no meio da inocente correspondência familiar, iam os meus artigos para os jornais. Sempre pude contar com a lealdade dele – ria ela, toda coquete.
Mas a alegria duraria pouco. Quando o jovem casal retornou da lua de mel, Aurora já estava grávida e não gostou nem um pouco da ideia. Armando era um amante experiente, frequentador das melhores casas de mulheres da cidade e não acreditava, como a maioria de seus amigos, que as esposas devessem ser privadas da alegria do sexo. Conduziu a inexperiente Aurora pelos caminhos do prazer e ela achou ótimo. Mas achou também uma injustiça que o preço a pagar fossem seguidas gravidezes que lhe deformariam o corpo e fariam dela mais uma matrona, cheia de pimpolhos, respeitada apenas por sua capacidade de gerar e educar crianças e não por outras atividades que pudesse ter. Conseguiu, de sua correspondente americana, alguns dos famosos folhetos de Margaret Sanger, que ensinava as mulheres como se prevenir das indesejadas e frequentes gravidezes. Escreveu um longo artigo sobre isso para os jornais. Até então, escrevera sempre sobre o direito das mulheres, igualdade de direitos, com relação ao voto e à propriedade.
Mas quando tocou na ferida do controle da natalidade, começou a sofrer a perseguição da Igreja.
Alguns dias depois da publicação de seu artigo, começou a receber cartas de todos os jornais cancelando a sua colaboração. Semanas mais tarde estava num jantar onde se reunia a fina flor da sociedade paulistana quando o arcebispo paulista se aproximou dela:
- Senhora Aurora, vejo que em breve seus pais terão a felicidade de ver nascer um primeiro neto.
- Oh, bispo – exclamou ela – não imaginava que já dava para notar...
- De fato, a senhora continua muito elegante, mas sua mãe comentou comigo. Espero que o milagre do nascimento mude a sua maneira de pensar.
Aurora, que mal conhecia o bispo, olhou para ele espantada:
- Como assim, bispo?
- Nós, da Igreja, costumamos prestar muita atenção ao que ocorre em nossa sociedade. Não nos passou despercebida a publicação, em vários jornais, de artigo de sua autoria sobre as ideias nefastas daquela enfermeira americana.
- Mas...
- Há muito tempo acompanho seus artigos, embora a senhora não tenha coragem de assiná-los e esconda-se atrás de um pseudônimo. Será benvinda se quiser frequentar a Igreja e aprofundar alguns ensinamentos da fé cristã para afastar certas ideias equivocadas com as quais a senhora comunga – disse o bispo com um sorriso e já estendendo a mão para o prefeito, que viera cumprimentá-lo.
Aurora ficou plantada, atônita. Então aquela velha raposa católica a chamara de covarde?
Começou a compreender o porque de tantos jornais terem recentemente cancelado a sua colaboração.
No domingo seguinte, na missa, o padre fez um sermão sobre o papel da mulher na preservação dos valores da família, pregando a submissão feminina aos seus maridos e condenando abertamente as modernas ideias de liberdade, voto e controle da natalidade que algumas senhoras andavam abraçando.
Causou furor a saída de Aurora da Igreja, de braço com o marido, no meio do serviço religioso.
Na semana seguinte, Armando chegou em casa nervoso. Todos os bancos estavam lhe negando as operações normais de crédito que sua fábrica sempre praticara sem problemas para a compra de matéria prima. As coisas já não andavam boas nos negócios e agora essa inexplicável recusa.
- Mas não temos dinheiro? – perguntou Aurora assustada.
- Temos. Mas se eu colocar na fábrica o dinheiro que os bancos não querem me emprestar, estarei arriscando tudo o que tenho.
- Mas o que você investe, não volta com lucro? Não é assim que consegue pagar o banco?
- É. Mas se eu mobilizar todos os meus recursos apenas para financiar a fábrica, não vai sobrar nada para investir em outros negócios e, mal ou bem, acabo sempre fazendo bons investimentos aqui e ali e, se a fábrica não dá tanto lucro num ano, por exemplo, sempre se pode renegociar com os bancos e vai-se levando. Já não bastasse a greve que me deu um belo prejuízo, agora essa recusa de me financiar significa que também enfrentarei outros problemas em outros negócios, Aurora. De repente, somos malditos em nosso meio.
- Mas por quê?
- Porque temos coragem. Você, de escrever o que pensa. Eu, de não concordar com as atitudes da maioria dos nossos industriais no que diz respeito às relações entre capital e trabalho.
- E o que você vai fazer?
- Não sei.
- Seu pai é tão rico, o meu também, eles não poderiam ajudar?
- A fábrica é o meu negócio, Aurora. Eu comprei, eu a fiz crescer e é a minha obrigação mantê-la funcionando e dando lucro. Sustentamos mais de 700 famílias, você sabia? É a minha responsabilidade.
- E vai jogar todo o dinheiro lá? E se o Brasil entrar na guerra? E se houver uma greve pior do que a última?
- Esses são os riscos. Mas vamos ter que encarar isso.
- E se voltássemos à Igreja? Se fingíssemos que estamos arrependidos?
- Você enlouqueceu, Aurora! Prefiro a miséria. Você voltaria atrás nas suas ideias de igualdade para as mulheres? Eu faria meus operários voltarem a trabalhar 12 ou 14 horas por dia?
- Nunca pensei que pagaríamos um preço tão alto por ter ideais.
Se Aurora já andava meio cabisbaixa com a gravidez indesejada, a situação de Armando só contribuiu para deprimi-la ainda mais.
Aconteceu, porém, que, certa tarde, ela pegou Ana, uma arrumadeira que era sobrinha de Orestes, o motorista, lendo um dos panfletos de Margaret Sanger que ela estava traduzindo.
Achou um desaforo a moça estar a ler documentos seus, mas logo concluiu que a curiosidade feminina sobre o assunto era até boa coisa. Por isso perguntou:
- Interessada em controle da natalidade, Ana?
A moça corou.
- Desculpe, dona Aurora. Eu sei que não é da minha conta o que a senhora escreve, mas o assunto... Bati os olhos e me interessei.
- Você é casada?
- Sou sim senhora. Mas não vou ter filhos tão cedo, porque ainda preciso trabalhar para ajudar meu marido.
- Então é bom mesmo que você leia isso.
- Mas a gente que é pobre, a senhora sabe, quando engravida, sempre pode dar um jeito.
- Que jeito, Ana? Só tem jeito antes, não depois.
- Dona Aurora, as mulheres lá do meu bairro, a senhora sabe, todo mundo é pobre e não pode ter um filho atrás do outro... quando elas engravidam e não está na hora, sempre podem usar as ervas...
- Ervas? Que ervas?
- Ah, tem umas que, misturadas, dão sempre resultado.
- Você acha que eu poderia usar essas ervas, Ana?
- Poder pode, dona Aurora. A minha avó mesmo sabe um receita infalível. Quando a senhora ficar grávida e não quiser...
- Já estou grávida. De três meses.
- É... três meses ainda dá tempo, sim, dona Aurora.
- Ana, me arranje essas ervas. Peça a sua avó. Eu pago bem.
E foi assim que Aurora conheceu Francisca, famosa curandeira, avó de Ana e de Maria das Graças, mestre na manipulação de ervas. A velha – que parecia ter cem anos, pensou Aurora ao vê-la – foi a sua casa numa tarde de sol e preparou uma mistura de ervas num caldeirão. Era um líquido muito vermelho e Francisca recomendou à Aurora que o deixasse exposto ao sereno da noite e só bebesse na manhã seguinte.
Armando e toda a família de Aurora lamentaram muitíssimo quando, em meio a cólicas dolorosíssimas, na tarde seguinte, a moça perdeu o bebê. A parteira da família foi chamada e também o médico.
- Será que tem alguma coisa errada com ela, doutor? – perguntou aflito o jovem Armando.
- Aparentemente não. Ela estava forte e ainda está. Mas a natureza às vezes rejeita os fetos. Sinceramente não sei o que possa ter causado esse aborto. Ela fez algum esforço incomum nesses últimos dias?
Só a parteira, que examinara Aurora, olhou desconfiada para ela, mas nada disse.
O médico recomendou repouso e Armando, depois do jantar, foi vê-la:
- Não se preocupe, querida. Ainda teremos muitos e muitos filhos.
Aurora estremeceu ante a perspectiva.
O Brasil entrou na guerra no final daquele ano, mas a economia em quase nada se abalou e Armando exportou toda a sua produção para os países vizinhos, obtendo um lucro ainda maior do que se vendesse localmente. Os bancos voltaram a oferecer-lhe crédito e seus negócios iam bem.
Aurora voltou a escrever para alguns jornais que, antes, haviam recusado sua colaboração, mas desta vez assinando seu próprio nome, para escândalo de sua família que não comungava seus ideais sufragistas.
Só Armando vivia preocupado porque a mulher não engravidava. Procurou o médico, admitindo, a contragosto, que o problema pudesse ser dele. Mas nada havia, pelo menos aparentemente, de errado com o casal.
Aurora, no entanto, continuava pagando a Francisca para que a velha lhe ensinasse suas artes.
Plantou ervas no quintal, ante o olhar espantado dos empregados que achavam indigno da senhora aquela febril atividade nos canteiros. Mas ela descobria um inacreditável prazer em ver crescer as plantinhas e sempre tomava o cuidado de ir cuidar dos canteiros usando enormes e elegantes chapéus que protegiam do sol a sua alva pele.
Pressionados pelos amigos, voltaram a frequentar a Igreja no final de 1918. No entanto, Aurora já lera livros e livros que, cada vez mais, a afastaram de sua antiga fé católica e considerava a missa, aos domingos, apenas uma aborrecida obrigação social.
Quando, em agosto de 1920, as americanas finalmente conquistaram o direito de votar, Aurora ofereceu um chá para as amigas. Mas, às cinco da tarde, só três mulheres estavam presentes à enorme mesa montada, no jardim, para vinte pessoas. Algumas telefonaram, inventando desculpas para a sua ausência, mas a maioria realmente não apareceu.
Aurora pensava que a maior parte das mulheres que conhecia realmente merecia depender dos maridos, ser consideradas fracas de espírito e de corpo, umas coitadas, completamente tuteladas e sem direitos. Elas, pensava a jovem, faziam por merecer. Mas, passado o momento de raiva, refletia que anos e anos de dominação é que haviam tornado as mulheres aquelas moscas mortas.
Começavam os anos 1920, a década que mudaria o perfil do mundo, a década das contestações artísticas e culturais e Aurora sabia que suas ideias encontrariam eco. São Paulo crescia e, embora houvesse menos de dois mil automóveis em circulação na cidade, Henry Ford ousara abrir uma montadora de Ford modelo T, chamados “de bigode” em plena Rua Florêncio de Abreu. As americanas haviam conquistado o voto. Anésia Pacheco voava. Tarsila do Amaral começava a se destacar nas artes. Aurora sentia um frêmito de excitação ao pensar no que o futuro reservava para o seu sexo.
Em 1921, Armando, cansado de ouvir insinuações sobre a sua masculinidade, já que o casal não tinha filhos, a chamou para uma conversa. Com muito jeito, explicou à Aurora que precisava realmente construir uma família e, por isso, contratara uma mulher de vida fácil para ter um filho dele. Quando nascesse, ele traria para ser criado em sua casa. Explicou ainda que, se Aurora assim desejasse, poderia simular uma gravidez e ninguém saberia que o filho não era dela.
Aurora fitou o marido, atônita.
- Você vai me trair com essa rapariga, Armando? – perguntou, quase histérica.
Não se tratava de traição, explicava ele. Era apenas um acordo comercial. Já que com Aurora não conseguia ter filhos, ia tê-los com uma mulher que seria regiamente paga para isso. Nada demais.
Aurora pensou nas suas lavagens de mostarda e na sua mistura vermelha de ervas e concluiu que, se quisesse manter o marido, teria que deixar acontecer uma gravidez. Imagine, ela que se recusava a gerar, ser condenada agora a criar o filho de Armando com outra mulher!
- Eu não vou criar o filho de ninguém! – explodiu ela, para espanto de Armando que, embora conhecesse a vontade férrea de sua esposa, jamais a vira ter explosões de temperamento.
- Mas, Aurora – tentou ele, solícito – seria como se fosse o nosso próprio filho.
- Se é o que você quer, eu darei o filho a você, não é preciso pagar a ninguém.
E foi assim que Armando ficou sabendo que sua esposa vinha evitando propositalmente a gravidez e até mesmo a interrompendo, graças aos seus recentes conhecimentos da utilidade variada das ervas.
O que Aurora não podia prever, quando contou tudo ao marido, é que este ficaria extremamente chocado e profundamente magoado. Afinal, pensava ele, ela sabia que ele queria muito uma família grande e a casa cheia de herdeiros.
Ela chegara mesmo a pensar em deixá-lo, quando ele propôs que criasse o filho de outra, mas resolvera fazer o sacrifício da maternidade para manter o casamento e o amor de Armando.
O amor nunca mais foi o mesmo. Algo se quebrara dentro dele e já não podia olhar para ela sem pensar que, por todos aqueles anos, ela o enganou. Era pior do que se o tivesse traído. E, agora que ela estava disposta a não evitar mais os filhos, era Armando quem a evitava e, em breve, começaram a brigar por pequenas coisas. A vida em comum foi se transformando num inferno e, algumas semanas depois, Aurora fez as malas e viajou para a Europa.
Estava em Londres, com suas amigas feministas, quando recebeu a carta do advogado de Armando, que pedia a separação e alegava “abandono do lar” o que, pelas leis brasileiras, faria com que ela perdesse o direito à sua parte no que o casal possuía. Imediatamente, aconselhada por Christabel Pankhurst, em casa de quem estava hospedada, providenciou sua volta ao Brasil. Mas, quando seu navio finalmente aportou em Santos, Orestes, que fora buscá-la, disse-lhe que Armando tinha vendido a casa onde moravam e para onde ela pretendia voltar, descaracterizando a alegação do marido que a acusava de abandonar o lar.
Foi um processo e tanto, onde ela dizia que jamais abandonara o lar, que fora apenas ver suas amigas em Londres e que o marido vendera a casa sem lhe comunicar. Mas os juízes não estavam nem um pouco propensos a apoiar uma mulher, ainda mais uma mulher que comungava das ideias sufragistas e tinha a ousadia de publicar suas ideias em jornais. E era nos jornais que a separação de um dos mais famosos casais da alta sociedade paulistana tinha ido parar, aguçando a curiosidade e a crueldade daqueles que antes os invejavam.
Publicamente humilhada, Aurora consolava-se pensando nas muitas prisões e vexames aos quais tinham sido, e ainda estavam sendo, expostas as mulheres lutadoras do mundo. Ela mesma ouvira, da boca de Emmeline Pankhurst, o relato do quanto sofrera em 12 prisões antes que as inglesas (mas apenas as maiores de 30 anos) conquistassem o direito de eleger seus governantes.
Também na casa paterna não se sentia bem-vinda. Os empregados gostavam dela, mas pareciam ser os únicos. Os irmãos, casados ou não, a desprezavam, o pai pouca atenção dava a ela e as cunhadas trocavam risinhos pelas suas costas. Cada vez mais, o ambiente fazia com que ela se sentisse culpada. Mas do que?, perguntava-se.
Distraía-se plantando suas ervas no quintal e mergulhada nos livros.
Foi se tornando cada vez mais solitária. Nem a Semana de 22, com a polêmica que gerou, conseguiu fazer com que ela recuperasse a velha chama que lhe ardera no peito, antes do processo de separação. Tinha consciência que, se não houvesse sofrido tanta humilhação, estaria nos teatros e nas exposições, defendendo os modernistas. Mas defendendo para quem, pensava ela, se todos os que um dia se disseram seus amigos se esquivavam, se de repente sua companhia passou a ser maldita? Uma mulher não era nada sem um marido, concluía. E ainda mais uma mulher que ousara contestar o papel que a ela era reservado na sociedade. Comentava-se, com escândalo, detalhes do processo. Armando alegara que, além de abandonar o lar, ela se recusara a dar-lhe filhos, obrigação sagrada de uma boa esposa.
Enfastiada com tanto provincianismo, decidiu que voltaria para a Europa e que se danasse o processo! Se ela perdesse tudo o que tinha direito no casamento, ainda assim continuaria rica, pois tinha a sua parte na herança do pai. A família suspirou aliviada ao vê-la partir. Assim logo todos a esqueceriam.
Desta vez foi para a França e logo começou a frequentar as rodas intelectuais e boêmias de Paris. Dona de um gosto apurado e uma educação primorosa, um dia escreveu sobre a obra de um amigo seu, pintor moderno e de pouca aceitação, em início de carreira. Mas, um outro amigo, jornalista, gostou tanto do texto que ela acabou virando crítica de arte num importante jornal. Mandou alguns exemplares do jornal para a sua família e, em breve, diante do seu sucesso na cidade luz, os provincianos paulistanos estavam dispostos a esquecer o escândalo de sua separação. Mas ela nunca mais voltou. Alguns anos mais tarde, mandou buscar Orestes e a família e os empregou em sua casa, importante reduto da intelectualidade francesa. Teve vários amantes, nenhum filho, e viajou para Londres para o enterro de Emmeline Pankhurst, em 1928, duas semanas depois de conquistado o voto para todas as inglesas.
Em 1929, sua família sofreu os reflexos do crack da bolsa americana e o dinheiro diminuiu consideravelmente. Mas Aurora tinha feito seus próprios investimentos e auferia uma renda razoável com a sua, então grande, colaboração para os jornais franceses.
Muitas mulheres devem muito a ela, que influenciou gerações, com suas ideias de igualdade.
Morreu em seu apartamento, em Paris, em 1951, vítima do diabetes, ela que jamais soube renunciar aos prazeres de uma boa mesa.



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