por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

"Quase ninguém para pra pensar nisso, mas a Avenida Paulista não surgiu como simples consequência da expansão da cidade. Ela foi um empreendimento muito bem planejado, calculado e executado."
O Nascimento da Avenida Símbolo de São Paulo
Inaugurada em 8 de dezembro de 1891, foi concebida pelo engenheiro Joaquim Eugênio de Lima para ser um boulevard, como os de Paris, que abrigasse a fina flor da elite paulistana.
Já nasceu sob o signo do dinheiro e, embora tenha mudado completamente sua face em mais de um século de existência, continua sendo o maior PIB por metro quadrado do país, já que as milionárias residências foram substituídas por milionários prédios de grandes bancos e corporações.
O engraçado é que Joaquim Eugênio de Lima queria unir a Consolação ao Paraíso e tinha um pequeno problema no meio do caminho: o vale onde hoje está a Av. 9 de julho. Hoje talvez, para conseguir uma reta entre os dois bairros, ele construísse um viaduto. Mas, na última década do século XIX, a melhor solução era aterrar. Assim, ele “tapou” a depressão que havia no meio do caminho e acabou obrigando o prefeito Prestes Maia, quase meio século depois, a abrir um túnel debaixo do aterro para construir a Avenida 9 de Julho.
O MASP e o Parque do Trianon repousam sobre o aterro do Joaquim.
O criador da Avenida Paulista, além de grande empreendedor, era também barão. Nascera no Uruguai mas se naturalizara brasileiro e escolheu investir em São Paulo parte da sua fortuna, porque acreditava que essa seria a cidade do futuro e por isso criou outros empreendimentos além da Paulista.
Antes de Joaquim Eugênio de Lima, a região era chamada de alto do Caaguaçu e abrigava algumas chácaras. O nosso empreendedor comprou todas, aterrou o vale e construiu a avenida, tendo o cuidado de reservar uma área para criar um parque onde se preservaria toda a vegetação nativa. E assim nasceu o hoje Parque Siqueira Campos, que todo mundo chama de Trianon. O projeto paisagístico foi de Paul Villon.
Imagine, Eugênio de Lima era tão moderno que já pensava em preservação da natureza em 1890!
A Avenida Paulista foi oficialmente inaugurada no dia 8 de dezembro de 1891.
Uma lei municipal proibiu o trânsito das boiadas, que iam para o matadouro da Vila Clementino (onde hoje funciona a Cinemateca, ali no largo Raul Cardoso) e regulamentou os loteamentos.
Logo os ricos paulistanos começaram a construir enormes mansões de gosto duvidoso (que a arquitetura chamou de “ecléticas”, numa tentativa de disfarçar a salada de estilos) e a larga avenida, calçada de pedras brancas, foi se enfeitando.
De Abrigo das Elites Paulistanas à Passarela do Povo
A primeira casa construída na avenida pertencia a Von Bullow, dono da cervejaria Antartica. Projetada pelo arquiteto Augusto Fried, ficava no terreno onde hoje está o edifício Paulicéia, um dos poucos prédios residenciais que restam na Paulista e que é, curiosamente, o edificio mais filmado do país, uma vez que todas as televisões, há décadas, vêm fazer enquetes de rua bem em frente ao Paulicéia. Meu marido e eu moramos neste edifício desde 1985 e gostamos muito. Ao lado dele está o prédio da Fundação Casper Líbero, que abriga as rádio e TV Gazeta, o cursinho Objetivo e ostenta em seu topo a famosa antena da Rede Globo de TV.
Em 1896 foi construída a residência do Conde Alexandre Siciliano, projetada pelo arquiteto Ramos de Azevedo, que mais tarde seria responsável pela construção da Casa das Rosas, uma das poucas que está de pé até hoje e virou centro cultural. É deste ano também a casa do Conde Francisco Matarazzo, projetada pelos italianos Giulio Saltini e Luigi Mancini. Quase cem anos depois da construção, Luiza Erundina, então prefeita de São Paulo, queria fazer com que a casa dos Matarazzo fosse tombada para virar o Museu do Trabalhador .
Como monumento arquitetônico a casa realmente não tinha lá grande valor e isto me soava mais ou menos como uma vingança socialista. A casa do grande patrão do começo do seculo XX seria tomada pelos trabalhadores. Por algum tempo, a polícia foi colocada para dentro dos muros da mansão e eu, que tinha escritório no prédio em frente, das janelas podia ver os policiais se divertindo, brincando de dar cavalos-de-pau com as velhas viaturas no enorme gramado em frente à casa. Não me lembro muito bem o que aconteceu, mas, alguns meses depois, fomos acordados pelo estrondo de uma explosão: uma bomba fora colocada na casa e destruíra completamente a mansão. Isto foi no final dos anos 1980 e, por tres décadas o terreno da casa continuou sendo apenas um estacionamento, numa avenida cujo metro quadrado vale mais de 10 mil dólares. Agora, onde estava a casa foi erguido um Shopping Center.
Nos anos 1950 as mansões da Paulista começaram a ser derrubadas para dar lugar aos imponentes edifícios, comerciais e residenciais.
Trinta anos depois, quase nada restava das originais mansões. E começou a onda de tombamentos. Quer dizer: as famílias que ainda não tinham vendido os terrenos de suas casas para a construção de edifícios estavam correndo o sério risco de ver parte de sua herança ir pelo ralo. Ou seja, em vez de 10 mil dólares o metro quadrado, o terreno e a casa tombada passariam a valer quase nada. Seguindo o exemplo da casa dos Matarazzo, a velha casa que ocupava o terreno onde hoje está o moderníssimo prédio do City Bank, também foi pelos ares. Cheguei ao escritório numa manhã e a secretária me disse: - Dona Isabel, já viu a casa?
Casa? Que casa?
Pela janela eu vi então que a velha casa, onde uma senhora de cabelos brancos ainda pendurava lençóis nos varais do quintal, tinha sido cortada verticalmente pela metade e se podia ver os cômodos dos dois andares por dentro...
Curiosamente, hoje existem ainda alguns mistérios na Paulista. Talvez sejam imóveis que estejam sob demandas judiciais.
No número 1919 está uma casa construída em 1905 por Joaquim Franco de Melo. A casa está em ruínas e ocupa um terreno muito grande, chegando a fazer esquina com a Alameda Ministro Rocha Azevedo. Existe também, quase vizinho ao Museu de Arte, o Masp, um pequeno prédio residencial, art-noveau, muito bonitinho, cheio de sacadas simpáticas, que está totalmente abandonado e literalmente caindo aos pedaços.*
Memória preservada apenas na Casa das Rosas (que foi construída em 1935), tombada em 1986 e mais tarde transformada em Centro Cultural; uma mansão também tombada onde funciona, curiosamente, uma lanchonete do Mac Donald; o colégio Rodrigues Alves, de 1919; o Instituto Pasteur e parte do prédio do Hospital Santa Catarina, construído em 1909.
A mania de sediar as grandes comemorações populares na avenida é mais recente do que se pensa. E tudo acontece ou em frente ao MASP ou debaixo das nossas janelas, aqui em frente ao prédio da Gazeta e ao Paulicéia.
O primeiro grande evento da avenida aconteceu em 1924, na primeira corrida de São Silvestre.
Mas, nas décadas de 1910 e 1920, a avenida já fora palco de outro tipo de corrida: a dos velhos automóveis e, nos carnavais, era cenário dos velhos corsos, desfiles de carros abertos onde as famílias se divertiam com serpentinas, confetes, lança perfumes e fantasias.
Daqui da minha janela, já pude apreciar muitas e muitas comemorações, passeatas e eventos. Luiza Erunidna, quando eleita prefeita de S.Paulo, fez a festa aqui em frente. O mesmo aconteceu quando Lula foi eleito presidente, em 2002. Vi desfilarem aqui os estudantes do Fora Collor. Vi inúmeras comemorações de times vencedores de campeonatos de futebol. Enormes passeatas de protesto e desfiles de multidões de evangélicos.
Há também as manifestações mais modestas, que ocupam apenas uma faixa do leito da avenida e há as grandes festas oficiais como a do reveillon e a tradicional Passeata LGBT do Orgulho Gay, quando a avenida vira um enorme espaço de lazer. Também vi (e participei) as comemorações do centenário da avenida, em 1991.
Mas esse negócio de todo mundo vir dar os seus gritos de protesto ou de comemoração aqui na avenida começou mesmo em 1977 quando o Corinthians finalmente venceu o campeonato de futebol, coisa que não acontecia havia 20 anos.
Muitos prefeitos paulistanos estiveram querendo acabar com essa tradição de comemorações e protestos na Paulista. Acho lamentável. Tem muita gente que fala contra isso, que diz que o trânsito é prejudicado, que é um absurdo porque a Paulista é o corredor também das ambulâncias, já que muitos hospitais importantes estão nas imediações. Penso que o argumento seja frágil. Ambulâncias sempre abrem caminho e o trânsito é completamente infernal na cidade inteira, com ou sem passeatas.
Os estatísticos calculam que 1 milhão e 200 mil pessoas circulam diariamente pela avenida. Além de bancos e escritórios e algumas residências, a Paulista tem restaurantes, galerias comerciais, cinemas, teatros, museus, centros culturais, escolas e até um hospital. É uma verdadeira amostra do mundo.
Joaquim Eugênio de Lima morreu em 1902, muito provavelmente sem calcular a beleza e o motivo de orgulho que seria a avenida que idealizou e construiu e que hoje, muito apropriadamente, é o símbolo da cidade de São Paulo. Por isso eu resolvi transforma-lo em Fantasma e o fiz voar de década em década, de 1891 a 2050, no meu livro mais queridinho: "O Fantasma da Paulista" .
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