Chapéu de Sol
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 13 de set.
- 5 min de leitura
Atualizado: 24 de set.
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
para ler ou ver antes: Bulímica

Nesse 2025, Emília completaria 40 anos. Uma idade em que mulheres de outros séculos, passados, já eram velhas e avós. E ela nem tivera ainda o seu primeiro filho! Encontrara o grande amor ainda muito jovem, aos 18 anos de idade e ele era 15 anos mais velho que ela, fôra seu professor na faculdade, e, pouco tempo depois de se conhecerem, já estavam morando juntos. Tiveram que esperar dois anos até o divórcio, litigioso e complicado, dele, afinal, saísse e só então se casaram. Não que Emília achasse importante o casamento formal. Eram felizes juntos e isso lhe bastava. Mas ele, Luiz Carlos, argumentara:
-- Sou mais velho que você. Vou morrer antes. E me aposentarei com salário integral, já que sou funcionário público. Você tem que ficar com os meus rendimentos, ganho mais que você! Mesmo que você consiga provar a nossa união estável, será complicado. Vamos nos casar e o problema estará resolvido.
Emília rira:
-- Você não sabe, se até lá, eu não estarei ganhando mais que você. Sou uma promissora advogada e logo-logo, tenho certeza, os bambambãs do escritório vão me oferecer uma parte na sociedade. Além disso, do jeito que eu tratei o meu corpo na adolescência, com tanta anfetamina pra emagrecer, misturada com whisky, talvez eu é que morra antes!
-- Não foi por muito tempo – respondeu ele. – Lembro-me de que a conheci justamente numa conversa na cantina da universidade, sobre a necessidade de você assumir o tratamento proposto pelo seu psiquiatra – E riu – Você achava que tomar antidepressivos era coisa pra gente louca... Bobinha! Pois foram os remédios que resolveram, para sempre, os seus transtornos alimentares.
-- O meu consolo – comentou ela – é que a Lady Di também foi bulímica!
-- E anoréxica! Como você também. – Completou ele. —Mas você se livrou! E continua, até hoje, magra e linda!
Essa conversa acontecera, lembra-se Emília, havia 17 anos, em 2008.
De lá para cá, eles viviam um casamento feliz. Ela realmente se tornara sócia do escritório de advocacia e ele só ascendera na carreira acadêmica. Estavam juntos há duas décadas e Emília passara todos esses anos desconversando quando ele falava em ter filhos. “Pra que? – pensava ela – Somos tão felizes juntos, somos tão bem sucedidos profissionalmente... Crianças só irão atrapalhar a nossa vida!”
Mas agora, às vésperas de completar 40 anos, Emília pensava: “agora ou nunca” – estava na idade limite para uma primeira gestação, na verdade, segundo seu médico, já passara da idade...Luiz Carlos seria pai aos 55? Não... muito tarde... – ponderava ela.
Havia dois anos que o casal se mudara do apartamento onde viviam para a velha casa da família, na qual Emília crescera. Filha única, com a morte de sua mãe, Elvira, herdara a propriedade. Fôra, afinal, a Eunice, a empregada mais velha da casa, que fazia as vezes de governanta mesmo, quando da morte de sua mãe, que dissera a ela, em tom de intimação:
-- Emilinha, agora que a sua mãe se foi, você precisa vir morar aqui! Você tem que dar continuidade à mágica relação que a D. Elvira teve sempre com esse jardim magnífico! E lembre-se que sua mãe a chamou de Emília por causa do Sítio do Pica-pau Amarelo! A sua obrigação agora é cuidar do jardim dela!
Emília riu:
-- Mas, Eunice, eu não sei nada sobre plantas! E nem tenho tempo para isso!
-- Tempo se arranja – respondera Eunice – E, nesses anos todos, trabalhando aqui, eu também aprendi muito com a sua mãe. Vou ensinando você. Mas é sua obrigação manter vivo e lindo esse jardim!
A princípio, Emília achou que Eunice estava extrapolando as suas próprias atribuições, mas, depois, refletindo, achou que deveria mesmo isso à sua mãe. E lembrava-se, ainda, de como o jardim fôra importante, na sua juventude, para o processo de cura de seus transtornos alimentares. Lá, em companhia de Elvira, ela encontrara um refúgio tranquilo. Lembrava-se dos fins de tarde em que se sentavam, ela e a mãe, sob o Chapéu de Sol, naquele banco de madeira que seu pai instalara ali anos antes de morrer, para devorar seus romances prediletos, e de como a árvore parecia transmitir uma paz, uma tranquilidade, requisitos imprescindíveis para que ela pudesse superar aquelas angústias da juventude, aquela sua obsessão pela busca do tal “corpo perfeito”, fato que hoje ela reconhecia como uma injusta e cruel imposição social.
Conversou com o marido sobre a possibilidade de irem morar na velha casa e esse disse:
-- Ah! Será melhor também, para os nossos filhos, crescerem numa casa do que num apartamento!
“Ele não desiste” – pensara então Emília.
Agora, passados dois anos da mudança, ela já estava plenamente convencida de que adquirira o tal “dedo verde” de sua mãe. No começo, contratara um experiente jardineiro, o Moisés, para cuidar das plantas e das árvores. Mas, aos poucos, fôra sentindo uma incrível atração pela terra e por seus frutos. Logo, estava levantando mais cedo para poder vistoriar as plantas e as árvores, antes de ir para o escritório. E começou a passar os fins de semana cuidando do jardim. Podando, replantando, até criando vasos e mais vasos, a partir das mudas que ia aprendendo a fazer com Eunice e com Moisés. Aquela atividade – meio frenética – parecia estar impondo um novo sentido à sua vida, à sua alma. E o jardim inteiro estava respondendo... Todas as folhas brilhavam ao sol, agradecidas. As flores brotavam, como se estrelas num firmamento, lindas, enormes, sadias...
Orquídeas penduradas nos galhos das árvores. Moitas enormes de beladonas – a flor das bruxas celtas. Touceiras de azaleias de todas as cores. Lírios da Paz. Lírios amarelos. E as roseiras, meu Deus!
Moisés e Eunice sorriam. Emília estava mesmo cumprindo a sua missão para com aquele jardim!
Então, naquele fim de tarde de domingo, Emília, depois de passar o dia cuidando das plantas, com a roupa respingada de terra, cansada, sentou-se, muito feliz, no banco de madeira sob o Chapéu de Sol. Os pássaros – atraídos sempre pelas muitas árvores frutíferas, iam – à medida que o sol se punha – diminuindo seus cantos, preparando-se para recolherem-se aos seus ninhos. A cabeça recostada ao tronco da árvore, Emília lembrou-se que sua mãe trouxera, lá no longínquo ano de 1984, uma mudinha daquela árvore e ali a plantara. A árvore tinha quase a mesma idade que ela, Emília.
Ergueu seus olhos para os galhos verdejantes do Chapéu de Sol e sentiu assim, intensamente, a presença de Elvira, sua mãe. Foi um forte sentimento, a ponto de fazer disparar-lhe o coração, trazer um suor gelado às palmas de duas mãos, e imediatamente compreendeu que não mais evitaria filhos; que teria que ter, ao menos, uma meninazinha, uma que continuaria a manter vivo e brilhante aquele pedaço de paraíso criado, um dia, por sua mãe e que tinha, sim, um papel a desempenhar no mundo...
Porque o mundo – parecia dizer sua mãe em sua mente – só vale mesmo por essas pequenas ilhas de amor, de integração entre nós, seres humanos, e toda a vida que há na Terra.
Teve, portanto, a certeza de que a alma de Elvira, ou pelo menos parte dela, morava ainda dentro daquela árvore, o seu Chapéu de Sol.
Bel, 2025, agosto, 23.



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