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Circe, a Bruxa Chique

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 23 de ago.
  • 11 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Konstantin Makovsky, sd sec19, Mulher Cigana
Konstantin Makovsky, sd sec19, Mulher Cigana

Samara nascera na virada do século XIX para o XX, num acampamento cigano lá para as bandas da cidade do interior paulista, Campinas. Em 1920, depois de caminhadas e caminhadas, acampamentos e acampamentos, sua família instalou-se à beira do rio Pinheiros, numa região que seria, mais tarde, parte da cidade de São Paulo, mas que ainda pertencia ao município de Santo Amaro. Eram ciganos “roms”, provenientes do leste europeu e se consideravam mais bem sucedidos comercialmente e muito mais educados do que os ciganos “calons”, de origem ibérica, a quem julgavam mal-intencionados, mentirosos e ladrões. Eles não. Eram comerciantes, sabiam lucrar com suas atividades e, no decorrer do século, muito prosperaram. Já, naquela década, suas tendas eram cuidadosamente arrumadas, limpas e bem mobiliadas.

 

Samara jamais pôde se esquecer da menina Selena que, lá por 1930, fôra levada pela mãe a se consultar em sua tenda. A fama da tal Selena já chegara até o acampamento cigano, distante, do lado oposto de onde a menina morava, na Mooca. A menina estava sendo hostilizada em seu bairro, chamada de bruxa e coisas piores, porque vivia dizendo que, numa outra vida, vivera no futuro, cerca de cem anos mais tarde e contava, aos perplexos vizinhos, coisas inacreditáveis que dizia ter visto nessa outra vida, coisas de um futuro fantástico e assustador: viagens pelas estrelas, comunicação que misturava rádio e telefone em aparelhos minúsculos com telas onde as pessoas se viam e podiam falar umas com as outras, instantaneamente, em qualquer lugar do Planeta.

 

A cigana, assim que colocou as cartas, sabia que a menina dizia a verdade. Mas aconselhou-a veementemente, a nunca mais contar a ninguém o que vira no futuro, sob pena de não apenas ser hostilizada e até agredida, mas também correr o risco de passar o resto da vida trancafiada num hospício onde, aí sim, enlouqueceria de verdade.

 

Anos mais tarde, viu na televisão, que a menina Selena se transformara numa intelectual, que escrevera um livro traduzido para o inglês e que era então uma conferencista respeitada nos Estados Unidos e na Europa. Chamou sua filha, Aurora, que estava, à época, com 15 anos de idade e contou-lhe a história de Selena, a quem – julgava Samara – salvara de um destino trágico.

 

Era o começo da década de 1960 e o acampamento da beira do Rio Pinheiros, sob a ponte do bairro do Socorro, negando as origens nômades dos ciganos, crescia e prosperava.

 

Aurora, que nascera depois da Segunda Guerra, não passou a juventude imune aos apelos de muitos dos seus contemporâneos, que pensavam poder mudar os rumos do mundo com a sua filosofia de paz e amor, traduzidas nas canções do Beatles, da bossa-nova, de lutadores como Martin Luther King e de pensadores como Marcuse e McLuhan. Queria estudar, aprender, e, perseverante, conseguiu entrar para a faculdade de filosofia da USP. Foi discriminada, por ser cigana e vestir-se como cigana. Começou a mudar seus hábitos, levava na mala escolar suas roupas diferentes, jeans, camisetas, minissaias, tudo longe dos olhos família. Um jovem de classe alta, seu colega na escola, Peterson Howard, apaixonou-se por ela. Era público e notório que a família dele jamais aceitaria uma namorada cigana. Assim, um dia, diante da insistência dele no relacionamento com ela, os pais dele a convidaram para jantar e disseram a ela que, se ela de fato quisesse casar-se com um Howard e constituir família, deveria abandonar para sempre o acampamento e os ciganos. Nunca mais voltaria lá e eles inventariam uma história de vida, nova, para ela, dizendo que ela era uma órfã, que perdera os pais, parentes distantes da família deles, no Líbano, e que eles a haviam trazido ao Brasil para ampará-la. Por ironia do destino, Peterson se apaixonara pela moça e, agora, unir-se-iam em matrimônio, mas apenas se ela aceitasse viver uma vida muito diferente de até então.

 

Samara jamais soube o que fôra feito de sua jovem filha. Procurou-a em toda a parte, foi à USP, às delegacias de polícia (onde também foi discriminada por ser cigana), procurou-a nas cartas, na bola de cristal, desesperadamente e, vinte anos depois do sumiço de Aurora, ainda a estava procurando.

 

Aurora, porém, completamente encantada por toda a vida de luxo que os pais de Peterson estavam proporcionando a ela, logo varreu a família e as origens para o mais escondido vão de seu cérebro. Eram aulas de etiqueta, de inglês, da língua árabe e de seu alfabeto e até de economia doméstica. Aprendeu tudo sobre a história e geografia do Líbano. Foi obrigada a abandonar seus sonhos de um mundo melhor e também o curso na faculdade, em troca de aprender a vestir-se e a comportar-se como uma legítima representante da alta burguesia paulistana. Tudo em nome do amor. E Peterson realmente a amava. Estava encantado com a transformação que via acontecer na noiva. Casaram-se, três anos depois que Aurora abandonara sua família cigana, quando a jovem já estava perfeitamente assimilada à nova personalidade que os sogros construíram para ela.

 

Em 1971, nasceu Circe. Maria Antônia Circe. O nome foi outra luta. Aurora queria porque queria que sua filha tivesse nome de bruxa. Os sogros em vão tentaram demovê-la, mas ela dizia que Circe era um nome clássico, da mitologia grega, e que não renunciaria a colocá-lo em sua bebê. Acabou concordando com o “Maria Antônia” na frente, porque era o nome da avó materna de Peterson. Só alguns anos depois é que, vendo o nome completo de sua sogra, Prada Howard, percebeu que esta era neta de Maria Antônia Prada. Ora, fôra Maria Antônia Prada quem dera a oportunidade à menina Selena de educar-se. Samara, mãe de Aurora, contara a ela a história de Selena, cuja mãe a consultara muitas vezes, depois daquela tarde distante em que levara a filha para uma sessão com ela, narrando, inclusive, a proteção que Selena obtivera de uma senhora rica, para estudar, que era nada mais nada menos que Maria Antônia Prada.

 

Muita coincidência! – pensava Aurora – Fôra ela viver na família que auxiliara a bruxinha da Mooca... Pensou então que seu destino estava irremediavelmente ligado à Selena, pensou que não deveria ter abandonado nem a sua família cigana e muito menos as suas origens.

 

Isso ficou martelando dentro da sua cabeça e de seu coração.

 

Em 1984, Peterson morreu de um enfarte fulminante. Aurora ficou inconsolável. Afinal, tinha renunciado ao seu mundo por ele, porque o amava. Como viver sem ele agora? Seu luto durou meses. E seu pensamento oscilava entre o amor que vivera e o amor, de sua família, que ela – percebia agora – cruelmente abandonara.

 

Finalmente, quando Circe completou 15 anos, Aurora, à beira da piscina do sítio da família, depois de três doses de uísque, contou à filha toda a história de sua vida. Acreditava que a menina não aceitaria bem a sua verdadeira origem. Surpreendentemente, Circe, ao final da longa narrativa sobre ciganos, sobre sua verdadeira avó, Samara, e sobre a renúncia de sua mãe à sua vida real, disse:

 

-- Mãe, eu já sabia.

 

-- Como assim? – perguntou uma Aurora desconcertada.

 

-- Sonhei várias vezes que eu era cigana. E você também. Sonhei com você trocando de roupa, num quarto escuro. Você tirava suas roupas de cigana e vestia vestidos de seda, trocava seus colares de contas por colares de pérolas... Nunca entendi esses sonhos, mas, agora que você me contou a sua verdadeira história, entendi tudo!

 

Antes que Aurora pudesse se recuperar da surpresa, Circe continuou:

 

-- Você acha que a nossa família, os ciganos quero dizer, ainda estão lá? Ciganos não são nômades?

 

Aurora respondeu, com uma certeza que não sabia bem de onde vinha:

-- Sim. Eles ainda estão lá. Há quase 20 anos, quando os abandonei, eles estavam prosperando no comércio. Alguns montaram até lojas na cidade, estavam enriquecendo, mudavam, se adaptavam a novas realidades que lhes estavam sendo apresentadas. Alguns tinham até automóveis... eles ainda estão lá!

 

-- Então, mãe! Vamos lá! – respondeu Circe – Quero conhecer o outro lado da minha família!

 

-- Pensei – respondeu Aurora – que você se envergonharia deles!

 

Circe riu.

-- Mãe, eu nunca te falei. Mas eu tenho visões, além desses sonhos estranhos. E essas visões me ensinaram que toda essa vida de luxo que a gente leva não é nada, não, mãe. É uma vida de ilusão. Toda essa ostentação, toda a riqueza da nossa família, pode desaparecer num piscar de olhos, numa mudança de regime, numa guerra, numa crise da economia...  Tenho amigos fúteis, orgulhosos porque são ricos, embora nada tenham feito para conquistar essa riqueza; orgulhosos porque têm escolaridade e acesso a tudo o que o consumismo lhes proporciona. Amigos que gostariam que os militares se perpetuassem no poder, que estão com medo da abertura, do governo Sarney, falam em ameaça comunista... São ricos, mas também são idiotas. Mas tenho outros amigos, mãe, intelectuais, que se preocupam com os destinos dos pobres, com a distribuição de renda, com a filosofia e até com o esoterismo. Estou feliz que você tenha, finalmente, se despido dessa máscara aristocrática que usou por todos esses anos. Estou feliz que tenha assumido a sua verdadeira identidade e estou louca pra conhecer a minha família materna. Podemos ir lá amanhã?

 

-- Não sei, Antônia – respondeu Aurora, meio titubeante – Não sei se estou preparada... Não sei o que encontrarei lá, vinte anos depois.

 

-- Ah, mãe! Deixa de frescura. Vamos lá e pronto!

 

Foram. Era uma segunda feira. Aurora mal reconheceu o acampamento. As tendas eram, agora, sofisticadas. Muitos carros, alguns de luxo parados por lá, debaixo das árvores. Não havia nenhum verde ali, quando ela partira. Agora estavam lá, jardins e árvores, à beira do imundo e poluído Rio Pinheiros. Um velho senhor veio ao encontro delas, quando desceram do Mercedes.

 

-- Em que posso ajudá-las? – ele perguntou.

 

-- Estamos procurando por Samara – respondeu Aurora.

 

Ele a reconheceu, a filha perdida da sua grande amiga. Pena que seu pai já tenho partido desse mundo... – pensou ele. Mas nada disse.

 

Levou Aurora e Circe até a velha tenda, que Aurora mal pode reconhecer. O chão coberto por tapetes, móveis belos, flores... Ele disse:

-- Samara, você tem ilustres visitantes.

 

Samara estava com 86 anos. Ainda forte e saudável. Assim que olhou para os olhos da filha, a reconheceu, apesar dos 20 anos passados, apesar das roupas caras, da maquiagem, do corte de cabelo sofisticado. Correu para abraça-la. Aurora estava rígida, tensa, sem saber bem o que fazer. Samara a abraçou longamente. E Aurora foi derretendo nos braços maternos, reconhecendo-os, sentindo-se amparada como não se sentia desde a morte de Peterson. Lágrimas escorreram dos seus olhos. Depois soluços e o pranto veio como a água de uma barragem que se rompe. Furioso, mas sentido.

 

-- Venham... Venham sentar-se aqui – disse Samara puxando a filha pela mão em direção ao grande sofá da sala da tenda.

 

-- Sou sua neta – disse Circe, meio sem graça – Muito prazer em conhece-la.

 

Com o braço direito, Samara enlaçava a filha. Estendeu o esquerdo para Circe, que, pegando na mão da avó, foi sentar-se ao seu lado.

Ficaram ali, as três, abraçadas, até que Aurora parasse de chorar.

 

Então Samara olhou-a bem dentro dos olhos e perguntou:

-- Onde você estava escondida de nós todo esse tempo? Perguntei vezes sem fim às cartas, ao tarô, recorri a visão, a todos os feitiços que conheço e a resposta era sempre a mesma: “Sua filha não quer que você a encontre. Ela foi viver outra vida. Deixe-a viver. Ela voltará quando, afinal, se descobrir a si mesma.” Que vida foi essa, minha filha?

 

Então Aurora contou tudo à mãe. Falou de seu amor por Peterson, de seus sogros, falou da família, da mãe do marido que descendia da benfeitora distante de Selena, falou dos cursos que fez, das línguas que aprendeu, das viagens pelo mundo, do nascimento de Circe, e do quanto ainda sofria pela súbita ausência do marido. Falou sem parar durante muito, muito tempo. Circe e Samara a escutaram caladas. Circe, surpresa, pela revelação do muito que não sabia. Samara, agradecida pelo universo não a ter levado, antes que pudesse rever sua filha perdida.

 

Quanto Aurora terminou de falar, tentando estancar a represa de lágrimas que barrara por tanto tempo, Samara disse:

 

-- Está tudo bem, agora, querida. Você está em casa.

 

Circe teve tempo de aprender toda a sabedoria e todos os truques ciganos com Samara, antes que ela morresse, na Pandemia, com 120 anos de idade. Nunca mais os pais de Peterson, quando Aurora e Circe contaram a eles que tinham estado com a família cigana, quiseram saber das duas.

 

-- Essa é a maior ingratidão que já sofri em toda a minha vida – disse a mãe dele – Nós transformamos você, Aurora, numa dama. Demos a você a melhor educação que uma moça de elite pode receber. Bastou o pobre do meu filho morrer para você voltar para aquele bando de ciganos ignorantes e...

 

-- Minha avó e meus tios ciganos não são ignorantes – gritou Circe – eles são muito melhores do que você.

 

Foram expulsas da mansão dos Prada Howard, sem nem mesmo terminar o jantar.

 

Aurora e Circe continuaram na bela residência onde moravam num bairro nobre de São Paulo e onde Samara e sua família foram sempre muito bem-vindas. Circe apaixonou-se pela jardinagem e pelos segredos que Samara lhe revelava: segredos escondidos nas árvores, nas ervas, nas flores, enfim, em todo o mundo da vida vegetal. Aos poucos, o grande jardim que cercava a casa perdeu seus ares de Versailles e foi se tornando mais natural, mais selvagem, mas nem por isso menos encantador. As Belladonas que cercavam a casa foram todas plantadas pelas mãos de Circe. Os jardineiros, no começo, torciam o nariz; com o tempo, porém, foram percebendo que a garota é quem estava certa. Havia uma magia naquele jardim assimétrico, forte, brilhante.

 

Circe foi estudar em Londres, quando terminou a faculdade, onde ficou de 1994 a 1996. Quando voltou, encontrou Aurora corada, bonita rejuvenescida e cuidada pelos empregados da casa, alguns fieis a ela desde antes do nascimento de Circe. Na Europa a moça estudara com a Ordem Rosa Cruz, assim como no Brasil havia estudado com os Umbandistas e com os Kardecistas.

 

-- Mãe – disse ela à Aurora – Agora estou pronta a começar a atender.

 

À princípio sua mãe não estava entendendo. Mas logo percebeu que Circe seguiria os passos de sua avó, Samara.

 

-- Com sua permissão, -- continuou Circe -- eu gostaria de transformar a Biblioteca em recepção, a sala de leitura em sala de consultas, isolar essa parte da casa do resto, em que vivemos e recebemos nossos amigos e familiares. Contratarei uma agência de propaganda e marketing e começarei a divulgar que sou a mais moderna e bem-preparada bruxa da cidade, estando aqui para guiar e orientar as pessoas quando elas acreditarem que só a Magia pode resolver-lhes o problema.

 

Aurora riu:

-- É claro! A casa é sua! Faça como quiser! Vai se vestir de cigana também?

 

-- Não. – respondeu Circe – Só Chanel. Os paulistanos ricos (vou cobrar bem caro dos que podem pagar para atender de graça aos que não podem) respeitam muito mais uma mulher vestida em Chanel.

 

Quando, na segunda década do século XXI, alguns dos nossos amigos aqui desse livro a consultavam, todos sempre se surpreendiam, ao ir até ela primeira vez, por sua elegância, pela beleza da decoração da casa, pela maravilha da magia que sentiam caminhando pelo jardim, pelo acerto de suas previsões e conselhos.

 

Circe nunca se casou. Teve vários amantes, tanto homens quanto mulheres e foi sempre muito feliz no amor. Depois

de completar 40 anos procurou o Dr. Alex, famoso médico da Reprodução Assistida em São Paulo, e teve uma filha, com doação anônima de espermatozoide.

 

Na maternidade, Aurora perguntou:

-- Vai fazer dessa menina a sua sucessora, Maria Antônia? (era o nome que Aurora usava, quase sem querer, quando desaprovava alguma coisa na filha, Maria Antônia Circe.)

 

-- Mãe, minha filha será o que ela quiser ser. Ficarei feliz caso ela resolva dar continuidade ao meu trabalho, mas ela será uma mulher livre e com autonomia para fazer o que bem entender da sua própria vida.

 

-- E se ela quiser ser engenheira mecânica, por exemplo? – Riu Aurora.

 

Maria Antônia Circe, com a filha mamando em seu peito, deu belo sorriso e respondeu:

 

-- Não importa, mãe. Seja ela o que for, lá dentro da alma, todas as mulheres são bruxas!

 

Bel, 2021, setembro, 27 e 28

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