Viagem Astral
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 23 de ago.
- 9 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
(Todas as Mulheres São Bruxas IV)

Morgana nascera quando sua mãe, Circe, já estava naquela idade em que as mulheres são consideradas incapazes de engravidar. Mas Circe sempre fôra capaz de tudo! Foi ao Dr. Alex, um dos papas da Reprodução Assistida em São Paulo, e fez um bebê de proveta, com doador anônimo de esperma.
Bissexual, Circe jamais tivera parceiros fixos e foi só quando Morgana, a filha, começou a frequentar a escola que a menina sentiu falta de um pai. Antes, crescendo naquele paraíso que era a casa de sua mãe Circe e de sua avó Aurora, cercada de empregados solícitos, de árvores frondosas, de jardins esplendorosos, de duas mulheres sábias e carinhosas que a criavam, por que sentiria a falta de um pai?
Porém, quando Circe a matriculou numa ótima escola paulistana, Morgana percebeu que todas as suas coleguinhas tinham mamãe e papai, menos ela. Perguntou:
-- Mãe, por que eu não tenho um pai, como as minhas amigas?
A garota estava então com 7 anos de idade, mas compreendeu perfeitamente as explicações de sua mãe. Circe contou a ela que os bebês, que cresciam na barriga das suas progenitoras, eram criados a partir do encontro do óvulo feminino com o esperma masculino e que isso normalmente se dava pelo ato sexual. Mas que poderia também acontecer em laboratório, como acontecera com ela, Morgana. Ela era fruto, portanto, do encontro de um óvulo de Circe com o esperma de um doador desconhecido. Jamais saberiam, assim, quem era o pai.
-- Você está dizendo, mãe, que eu sou um ser artificial? Uma espécie de robô? – perguntou Morgana.
Circe riu:
-- Não, claro que não! Você é um ser humano! Concebida por materiais genéticos meus e de um doador desconhecido, mas homem de verdade! No mundo, hoje, há milhões de crianças concebidas em laboratórios, como você. Todas são absolutamente humanas, lógico!
-- Mas, então, eu nunca vou saber quem é o meu pai? – perguntou a menina.
-- Não – respondeu Circe.
-- E essas muitas crianças que nasceram em laboratório, como eu, também não sabem?
-- Muitas não sabem. Mas a maioria sabe sim, porque foram concebidas assim diante apenas da dificuldade de seus pais as conceberem normalmente. Alguns casais têm essa dificuldade, a de engravidar por meios naturais, então recorrem às técnicas dos laboratórios de Reprodução Assistida.
- Hum... Entendi –fez Morgana, que, de fato, não sentia falta de um pai, mas apenas se achava diferente das coleguinhas da escola, por não ter um.
Essa não era, entretanto, a única diferença entre Morgana e suas colegas. Quase todas as mães dessas tinham uma profissão. Trabalhavam, eram engenheiras, professoras, secretárias, executivas, empresárias..., mas a mãe dela... A mãe dela era a mais famosa Bruxa da cidade de São Paulo! E “bruxa” não se encaixava em nenhum rol de profissões. Logo, as outras meninas, e também os meninos, da escola, a chamavam de “bruxinha”, o que muito a incomodava.
Morgana não queria ser bruxa. Queria ser astronauta!
Nos estudos, mergulhou nas ciências exatas. Sonhava em ir para os Estados Unidos e ser admitida na NASA.
Em 2021, em plena pandemia da COVID 19, viu morrer, exatamente no mesmo dia, sua avó Aurora e sua bisavó Samara, que já passara -- e muito -- dos cem anos de idade. Foi um grande baque para Morgana, então uma jovem pré-adolescente. Afinal, ela crescera sob os cuidados de Aurora, mãe de Circe, e passara inúmeros dias da vida no acampamento de ciganos, com sua sábia bisavó Samara, brincando com as cartas do Tarot e com as bolas de cristal, encantada com os prismas que sua bisavó pendurara nas janelas da tenda e que projetavam lindos arco-íris pelas paredes de lona.
Circe mandou rezar uma missa de um ano do falecimento de sua mãe, Aurora, e de sua avó, Samara. Foi aquela a primeira vez possível para uma cerimônia pública. Era 2022, já existiam as vacinas, as pessoas já podiam sair do isolamento imposto pela pandemia.
Depois da missa, Circe ofereceu um grande almoço para os seus amigos e clientes mais queridos. Foi então que Morgana conheceu Maria Alcina. A garota sabia que aquela mulher era uma importante executiva da indústria farmacêutica e a aura de poder que a envolvia, encantou Morgana, que pediu à sua mãe que lhe apresentasse a ela.
-- Como é que uma mulher deve fazer para ascender a um cargo elevado no mundo corporativo? – foi logo perguntando Morgana à Maria Alcina.
A outra riu:
-- E você, minha menina, pretende ser uma executiva?
-- Não. – respondeu Morgana—Eu quero ser astronauta!
E Alcina:
-- Como sua mãe, que vive figurativamente entre as estrelas, você quer viver literalmente entre as estrelas!
-- Nossa! – respondeu Morgana – Nunca pensei que minha mãe vivesse entre as estrelas!
Mas imediatamente percebeu que Alcina estava certa. Circe, a bruxa, com seus vastos poderes, certamente estaria ligada aos mistérios do Universo. De uma maneira bem diferente do que ela, Morgana, pretendia.
Conversaram um pouco, sobre a carreira das mulheres e as dificuldades que essas enfrentavam no mundo corporativo, criado, afinal, por homens, quase todos machistas, e a menina nunca esqueceu a grave expressão do rosto de Maria Alcina quando essa disse: -- E tome muito cuidado com o amor! Às vezes o que se pensa ser amor pode acabar com a vida e com os sonhos de nós, mulheres!
Tenha sido talvez por isso que, quando começou um namoro com Ricardo, aos treze anos de idade, prestou bastante atenção às reações dele quando lhe falava em seus planos e sonhos para o futuro. E essas eram, na sua maioria, de indiferença quando não de deboche, desprezo mesmo. Aliás, o garoto, dois anos mais velho que Morgana, só parecia se interessar de fato por seus próprios sonhos. Um dia, quando ela falava sobre o seu desejo de viajar pelo espaço, ele dissera:
-- Não espere demais, Morgana. Você é mulher... e brasileira. Na sua frente tem vários WASPs. Além disso, seguindo esse caminho, você provavelmente terá que renunciar ao seu destino de mulher e será infeliz.
Morgana riu:
-- Que destino de mulher seria esse?
-- Ora – respondeu ele - casar-se, ter filhos, constituir família, essas coisas. Que espécie de marido toleraria uma esposa que precisa se afastar do lar para longos períodos de treinamento e, depois, talvez meses enfiada numa estação espacial?
-- Esse não é de fato o meu objetivo na vida – respondeu tranquilamente Morgana – Daqui a um ano e meio terei 15 anos e poderei me inscrever no curso básico de sobrevivência na selva. Será o meu segundo passo em direção à carreira que almejo. O primeiro é a Academia, que frequento desde criança, para me manter em excelente forma física. Cuido muito bem da minha alimentação também. E pretendo, quando estiver no último ano daqui da escola, me inscrever para o vestibular no ITA. Vou cursar Engenharia Aeroespacial e seguir carreira acadêmica, com mestrado e pós. Já falo inglês, fluentemente, e estou no segundo semestre do meu curso de russo. Também vou aprender a pilotar aviões e tirar o meu brevê, assim que completar 18 anos. Você acha que marido e filhos estão nos meus planos?
-- Não – respondeu Ricardo, muito sério – Mas você é jovem, pode se apaixonar e resolver trocar todos esses planos por um grande amor.
-- Aprendi, já faz algum tempo, com uma executiva importante da indústria farmacêutica, que esse negócio de amor pode ser uma grande armadilha na vida das mulheres...
Morgana gostava de Ricardo. Afinal, era a sua primeira paixão juvenil. Mas trazia, dentro de si, as palavras de Maria Alcina, as quais ela jamais se esquecera. Nenhuma paixão a faria se distanciar dos sonhos e planos que tinha para a sua carreira de astronauta.
Ela sabia, no entanto, que um único brasileiro, até hoje, conseguira se tornar um astronauta da NASA, Marcos Pontes, e isso fôra havia mais de 20 anos passados. E ele era homem. E militar. Ela, porém, já traçara seu caminho: ITA. Pós. Um green card (que Circe pagaria para ela, sem dúvida), 5 anos morando nos Estados Unidos e fazendo cursos de especialização em sua área, pois muitas universidades de lá aceitariam facilmente uma jovem mulher formada brilhantemente pelo ITA e ela sempre fôra – e continuaria sendo – brilhante nos estudos, e estaria apta a conquistar a cidadania americana, requisito imprescindível para ser admitida na NASA.
Lembrava-se bem de um jantar em casa, em família, pouco antes das mortes de sua bisavó Samara e sua avó Aurora. Morgana discursava, alegre e veementemente, sobre todo esse caminho, que ela já pesquisara de forma exaustiva, que teria que percorrer até realizar o seu sonho. Fôra então que Aurora dissera:
-- Sem querer dissuadir você, minha querida, de vencer todas essas etapas e obstáculos, eu diria que, para viajar entre as estrelas, existe uma rota alternativa e bem mais simples e que você pode começar a trilhar agora mesmo!
-- Como assim, vovó? – perguntara, espantada, a menina.
-- Você pode simplesmente fazer viagens astrais.
-- Ah! Não acredito nisso!! – respondeu Morgana, com uma risada.
-- Pois deveria – disse Aurora – Aqui mesmo, ao seu lado, está alguém que, ao longo da vida, realizou e realiza inúmeras viagens astrais, deslocando a sua consciência ao seu bel prazer.
Os olhos de Morgana voltaram-se imediatamente para Circe e encontraram os dela, que sorriu placidamente.
-- Isso é verdade mesmo, mãe? – perguntou a menina.
Circe retirou o guardanapo do colo, limpou ligeiramente os lábios, tomou um gole de vinho e respondeu:
-- Sabe, minha filha, nunca falamos sobre isso porque sei bem que você não se interessa pelas minhas artes de bruxa. Ou pior que isso: você as despreza e me vê como uma espécie de mistificadora ou até mesmo como uma charlatã.
-- Ei, mãe! Eu nunca disse nada disso!
-- Não disse, mas pensou. – respondeu Circe – Mesmo assim, eu sempre respeitei a sua posição e nunca a forcei a entender a minha arte ou a da sua bisavó, Samara, com quem aprendi muito do que sei. Esteja certa, porém, que a viagem astral é uma realidade. Não se chamava assim, antigamente. Os rosacruzes sempre realizam essas viagens, que eles chamam de “projeção”; é, de fato a projeção da nossa consciência para outro lugar. Nosso corpo permanece onde está, mas nossa mente vai para onde quisermos estar: noutro país, noutra época e até mesmo no espaço. É claro que não se consegue isso do dia para a noite, é preciso treinamento, concentração, força de vontade e, acima de tudo, é preciso acreditar que é possível e que acontecerá. Sábios, bruxos, esotéricos, desde a Antiguidade remota, usaram e usam esse recurso.
-- Ah – respondeu Morgana – mas é como um sonho, então. Não é real!
-- Não – disse Circe – é tão real quanto esse momento que estamos vivendo agora. Não é um sonho: é a nossa capacidade da Visão.
Morgana ficou sem saber o que pensar. Não podia acreditar que essa tal viagem astral acontecesse de verdade. Mas foi se lembrando de vários problemas que sua mãe resolvera para seus clientes, questões do trabalho ou da atividade política ou empresarial deles, das quais ela ouvira falar, nas fofocas domésticas, que incluíam também a possiblidade que sua mãe tivesse “espiões”, a seu serviço, que conseguissem informações privilegiadas... Se Circe era mesmo capaz de transportar sua consciência a outros lugares, os tais “espiões” de que falavam os empregados da casa, nada mais seriam do que ela própria...
Morgana estava com 14 anos de idade, pouco mais de um ano depois daquela conversa com Ricardo, quando um dos seus colegas de turma, inspirado por fatos, que via na Internet e na TV, e que estavam se repetindo, em todos os países naquele ano, roubou a arma, calibre 45, de seu pai militar e invadiu a escola. Foi direto para a sua sala de aula e começou a disparar a esmo. Matou a professora e um dos seus colegas. Para Morgana, sobrou a bala que a atingiu pelas costas e se alojou na base de sua coluna, destruindo-lhe o sacro e as ligações nervosas que levavam o movimento para as pernas.
Seguiram-se dias de muita tristeza e sofrimento para mãe e filha.
Algumas cirurgias, muita fisioterapia e, quase um ano depois, Morgana conseguia locomover-se, não sem dificuldade, usando ora uma bengala, ora um andador. Mas isso era muito custoso e estafante, além de causar-lhe dor, e ela acabava mesmo se valendo da cadeira de rodas elétrica, que lhe dava mais agilidade.
Seu sonho se fôra. Jamais poderia ser astronauta e viajar por entre as estrelas!
Uma tarde, no intervalo entre as consultas, Circe viu a filha entrar na sala de leitura da biblioteca da casa e dizer:
-- Mãe, já que não serei astronauta, será que você me ensinaria a fazer essas viagens astrais pra eu poder, afinal, conhecer de perto as estrelas?
-- Claro, minha filha – respondeu Circe. Mas veja bem: não é uma coisa isolada. Não é uma matéria num curso. Para aprender isso é preciso conhecer todo um conjunto de antigas sabedorias que vão nos despertando os poderes do lado direito do cérebro, desde a simples intuição, passando pela arte da leitura das cartas, da manipulação das ervas, da bola de cristal, até atingir a Visão e, por fim, as projeções da consciência ou, como dizem hoje, as viagens astrais.
-- Bom – disse Morgana com um raro sorriso – talvez seja afinal mais fácil do que percorrer o caminho do ITA e da conquista da cidadania estadunidense!
Morgana tinha 18 anos quando fez a sua primeira viagem astral.
Circe, que há 4 longos anos vinha instruindo sua filha nas artes da bruxaria, perguntou, quando a viu recobrar a consciência do momento:
-- E aí?
-- Mãe, minha alma navegou entre as estrelas! Sou astronauta!
E Circe soube que teria, afinal, a sua sucessora.
Bel, 2025, agosto, 18.
*"White Anglo-Saxon Protestant"
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