O Reencontro de Mário Lucas
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 22 de mar.
- 5 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
Leia antes: O Desaparecimento de Mário Lucas - https://www.saudeelivros.com.br/post/o-desaparecimento-de-m%C3%A1rio-lucas

1977. Três horas de uma tarde de sábado. Mario Lucas pára o carro ao lado de uma loja de materiais eletroeletrônicos e desce para comprar uns cabos de som. Antes de entrar no estabelecimento, vê uma pequena padaria, logo ali, dobrando a esquina. Resolve ir se abastecer de cigarros primeiro.
É quando uma kombi, com 3 homens, barra-lhe o caminho, estacionando em cima da calçada. Mário reconhece os companheiros de sua facção, que deveriam estar agora escondidos no aparelho* da Mooca. Um deles desce, muito nervoso e afobado e diz:
-- Joel (o codinome de Mário na organização), já pra dentro. Vamos dar o fora imediatamente! Um dos nossos que caiu nos dedurou, sob tortura, a polícia política está atrás de nós.
-- Mas..., mas... – titubeia ele, já sendo empurrado para dentro do veículo, que dá ré e parte cantando pneus. -- Um minuto, pessoal! Preciso avisar minha mulher... Larguei ela me esperando ali, dentro do meu automóvel.
-- Nem pensar! – Só pra sua informação: o Dedinho, você sabe, nosso homem dentro do tal sítio paramilitar para onde estão nos levando agora, disse que o Angelo, o torturado, deu serviço completo, revelando até os nossos codinomes com as nossas identidades reais. Em menos de 24 horas (e isso tudo aconteceu nessa manhã) os meganhas estarão em nossas casas. Por segurança, já tiramos tudo o que é nosso de dentro delas, tá tudo aí atrás – apontando o porta-malas da perua e o último banco, completamente lotados de objetos – Agora vamos sumir com todas as suas coisas de dentro do seu apartamento. Tem garagem, no seu prédio?
-- Tem sim – respondeu Mário, continuando: -- Mas a minha mulher...
-- Esquece! Ela não pode saber de nada. Você vai querer ver ela sendo torturada pelos macacos pra revelar o que nem sabe? Você vai desparecer e nós vamos instruir a todos no seu edifício e a todos que convivem com você na vizinhança a fingir que nunca o viram na vida, sob pena de serem eles presos também. Ninguém vai abrir a boca, Joel! Todo mundo morre de medo da polícia... e de nós!
-- Meu nome é Mário.
-- Tá bom, Jo... Mário! Você vai sumir com a gente. Vamos, com um jipe que já nos espera na boca da estrada, pro Araguaia.
-- Mas a Sandra, a minha mulher...
-- Esquece isso, cara! Pra própria segurança dela é melhor que pense que você sumiu, fugiu, a abandonou. Já avisamos a nossa turma infiltrada nas delegacias do seu bairro e até na da Sé, que é pra desaparecer com qualquer dado seu que exista por lá. Você acaba de entrar definitivamente na não-existência...
-- Definitivamente? – fez Mário, apavorado.
Seu companheiro riu.
-- Ou pelo menos até que saiamos vencedores e possamos retomar nossas verdadeiras identidades e nossas vidas!
-- E por que – perguntou Mário – pro Araguaia? A Guerrilha lá foi completamente derrotada pelos milicos há mais de 3 anos...
-- Por isso mesmo. Ainda existem sitiantes e fazendeiros nas margens do Araguaia, em 4 estados brasileiros, que são simpatizantes da nossa causa. É o melhor lugar pra nos escondermos, fantasiados de trabalhadores rurais.
-- E renunciar à luta? – perguntou decepcionado, Mário.
-- De jeito nenhum. Vamos trabalhar usando os métodos das Ligas Camponesas. Vamos alfabetizá-los e levar a eles alguma consciência política. Será um trabalho de formiguinha porque temos que ir devagar e com muito cuidado pois, lá pelas bandas de onde atuou a Guerrilha, ainda existem muitos dedos-duros e olheiros dos militares.
Foi assim que Mário Lucas simplesmente sumiu sem deixar vestígios e quase fez com que Sandra, sua mulher, enlouquecesse, com o misterioso desaparecimento do marido e com a negação, de todos os que o conheciam, de que ele, algum dia, existira e vivera com ela naquele apartamentozinho da zona oeste de São Paulo.
A Lei da Anistia, decretada pelo governo, dois anos depois do sumiço de Mário, não impediu os agentes da ditadura e dos grupos paramilitares que atuavam no país, de continuar a perseguir os militantes, liberais, progressistas e de esquerda e de permanecer torturando os que conseguiam agarrar.
Em 1985, queimado pelo sol e com as mãos calejadas pelo trabalho braçal, Mário percebeu que apesar da vitória das “diretas já”, da eleição, indireta, do primeiro presidente civil e da comemorada abertura política, ainda não era hora de voltar para casa.
Passou mais três anos travestido em camponês, sempre trabalhando poucos meses em cada propriedade rural de simpatizantes que aceitavam os militantes fugidos das áreas urbanas.
Em 1988, com a pouca grana que juntara, iniciou o longo percurso de volta. Ônibus precários. Estradas ruins. Caronas com caminhoneiros e até em automóveis de passeio. Desceu, finalmente, na rodoviária de São Paulo e foi direto à sede do seu partido político, de onde saiu com um emprego humilde num banco da Avenida Paulista e uma nova identidade obtida pela falsificação eficiente de vários documentos pessoais.
Ele, que já fôra Joel, Carlinhos e Mário Lucas, agora era João Ernesto da Silva Quadros.
Em São Paulo, já trabalhando e morando numa pensão da Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, por muitas noites insones pensou em procurar Sandra. Mas não tinha coragem suficiente para isso. Nesses mais de dez anos, desde o seu “desaparecimento”, Mário Lucas julgava que ela o teria esquecido, teria encontrado outro amor, certamente estaria casada e com um bando de filhos a puxar-lhe as saias.
Foi então que, naquela tarde de verão, em janeiro de 1990, Sandra o viu atravessando a faixa de pedestres na Paulista. Com o coração aos pulos – ele exista, afinal, e estava ali, vivinho da silva, em plena avenida! -- seguiu-o até um hotel na Alameda Santos, onde ele entrara para encontrar um cliente do banco (nesses dois anos, progredira e era agora um dos gerentes da agência onde trabalhava).
No saguão do Hotel, Sandra puxou-o pelo braço. Ele voltou-se e deu de cara com a mulher que sempre amara, a fita-lo com os olhos alegres, mas dos quais copiosas lágrimas escorriam-lhe pelo rosto.
-- Mário... – murmurou ela.
Emocionado e surpreso, ele conseguiu sorrir, o seu melhor sorriso, e disse:
-- Agora sou João Ernesto. Mas ainda te amo como Mário Lucas sempre te amou!
Sandra e Mário viveram juntos pelos seguintes 30 anos. Juntos e felizes. Não tiveram filhos, porém. E morreram na primeira grande leva de 600 mortos pela epidemia de Covid 19, em janeiro de 2020. Morreram juntos. Na alegria e na dor. Como são os verdadeiros amantes sobre a Terra. Para sempre.
*aparelho - residência de militantes clandestinos que lutavam contra a ditadura militar brasileira
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