O Velho Prédio
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 17 de mar.
- 29 min de leitura
Atualizado: 29 de mar.
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Escrevi esse conto em 2003, quando trabalhava na Rede Mulher de TV que funcionou, até 2007, no velho prédio da TV Record, um prédio mágico, repleto das melhores recordações dos estrondosos sucessos de grandes figuras da cultura brasileira, nos anos 1950, 60 e 70. Elis, Roberto Carlos, Arrelia, Moacir Franco, Blota Jr., Hebe, Sonia Ribeiro... Muitos, muitos mesmo! O prédio, infelizmente, foi destruído pelos seus atuais proprietários, bispos e pastores da Igreja Universal, e se tornou um... hospital! Toda a história narrada nesse conto é pura ficção, mas não deixa de ser um tributo aos nossos grandes artistas e também ao Marechal da Vitória, Paulo Machado de Carvalho (1901-1992), que criou e dirigiu por décadas o grupo Record.
Leia. Você vai gostar!
Flavia gostava daquele velho prédio, totalmente reformado e adaptado, onde agora funcionava o seu jornal. Ela já trabalhava nesse jornal há mais de oito anos e ficara muito contente quando o grupo que detinha o periódico resolvera mudar-se para aquele antigo edifício, então abandonado, onde, há décadas e por décadas, funcionara não só a redação do tradicional veículo, mas também as rádios que pertenciam à mesma organização e até um teatro.
Tanto uma das rádios quanto o próprio jornal tinham sido, em outros tempos, líderes absolutos em seus segmentos. Naquele teatro, que servia também para transmissões ao vivo da rádio em seus programas de auditório, que eram moda na década de 40, tinham pisado grandes astros da música e das artes em geral.
Por isso tudo, Flávia, que ocupava hoje a editoria do caderno de cultura do jornal, ficara super entusiasmada quando um dos diretores disse a ela que a cúpula do grupo decidira reformar e ocupar aquele velho casarão.
O jornal, que passara anos e anos mergulhado, como todo o complexo de comunicação ao qual pertencia, numa franca decadência, estava começando a se reerguer e ela tinha esperanças que, naquele prédio, acabariam de decolar e voltariam a ocupar um lugar de destaque entre os veículos nacionais de comunicação. Era um pensamento supersticioso, refletia ela com sua racionalidade jornalística, mas acreditava, no íntimo de seu coração, que aquelas paredes que já haviam visto tantos nomes importantes da cultura brasileira pudessem, de alguma maneira, influenciar os rumos da empresa.
Assim, aguardou pacientemente que a reforma fosse concluída e se negou, como tantos dos seus colegas fizeram, a ir ver como iam caminhando as obras. Resistiu e só entrou no velho prédio quando efetivamente toda a redação se transferiu para lá.
Era um edifício realmente grande e Flávia passou uma semana andando para lá e para cá, tentando decorar sua topografia.
Internamente, tinha duas escadarias, nas duas pontas da construção, quatro andares, nenhum elevador e uma infinidade de portas. Foram erguidos cinco grandes estúdios, muito equipados e toda a administração do grupo se mudou também para lá. Havia ainda aqueles enormes espaços dedicados às redações, tanto das duas rádios, AM e FM, quanto do jornal. Eram oceanos de escrivaninhas, cadeiras, armários e computadores.
Ela estava realmente entusiasmada com a mudança e passou a trabalhar ainda com mais afinco, alegria e dedicação.
Estavam no prédio já havia uns três meses quando ela teve um sonho que, sabia, semelhante a alguns que já tivera antes: de repente ela abria uma porta em sua casa e descobria que o seu apartamento tinha mais cômodos e que se esquecera disso. Examinava esses cômodos, surpresa por ter se esquecido deles. Então lembrou-se que, há algum tempo atrás, tinha sonhado uma coisa parecida, mas nesse outro sonho os espaços que ela redescobria eram no próprio edifício onde morava. Eram andares vazios, cheios de andaimes. Nas duas semanas seguintes, sonhou novamente: encontrava a velha casa onde passara a infância e essa também tinha cômodos a mais, que ela esquecera e que, na realidade, nunca existiram.
Intrigada, perguntou a uma psicóloga amiga sua o que poderiam significar aqueles sonhos. A moça explicou a ela que isso poderia muito bem querer dizer que ela não estava fazendo uso total de suas capacidades e aptidões; que poderiam existir outros atributos que tivessem sido relegados a um segundo plano ao longo de sua vida.
Será – sugeriu a psicóloga – que não existem algumas atividades de lazer ou mesmo profissionais que você gostaria de ter e não está tendo? Pense nisso. Descubra o que está faltando.
Flavia ficou pensando. O que mais, além do trabalho e das aulas que dava na faculdade de comunicação, ela queria fazer? Nos fins de semana ia invariavelmente para a praia, com o marido, onde tinham um pequeno veleiro cabinado e navegavam, o que ela adorava. Tinha uma boa vida, frequentava todos os eventos culturais, teatro, cinema, vernissages, lançamentos de livros, lia bastante, atualizava-se na Internet... o que estaria faltando?
De vez em quando, o velho prédio onde agora trabalhava, revelava-lhe alguns pequenos segredos. Descobria uma porta que nunca notara, abria e lá estava um depósito, uma sala que ela ainda não vira ou mesmo um grande espaço vazio. Ela ria, porque achava incrível que tivesse esquadrinhado o prédio todo, quando se mudaram para lá, e ainda houvessem espaços que lhe passaram despercebidos.
Flavia gostava tanto do prédio que tinha o hábito de subir para a sua sala pelas escadas da esquerda e descer pelas da direita, embora, para isso, precisar atravessar longos corredores e fazer o caminho mais comprido.
Num dia de inverno, quando já estavam no velho edifício há quase dois anos, ela, ao cruzar a pesada porta de incêndio que a separava das escadas da direita, preparando-se para descer para a hora de almoço, notou, num canto, uma outra porta, que havia sido retirada dos batentes e viu uma escada que nunca vira. Sabia que, além das escadas da esquerda, havia também uma outra, que levava às lages do edifício e dava acesso ao grande terraço de cobertura. Mas, até então, não sabia que, no lado direito, também havia essa outra escada, meio tosca. Subiu. E saiu num espaço cheio de vigas de madeira que sustentavam um telhado antigo, que ela já vira do terraço e que ocupava apenas parte do edifício. Era uma cobertura em forma de “V”, com telhas muito antigas e, pelas frestas dessas, entravam pequenos raios de sol. “Estou no forro”, pensou e então percebeu a figura de um homem, sentado adiante, quase espremido entre as vigas, no estreito ângulo que o telhado formava. Quem seria? Algum funcionário da manutenção, que se isolara para saborear sua marmita?
- Boa tarde! – cumprimentou.
O homem, que fitava a paisagem lá fora, por um buraco que havia entre as telhas, voltou-se para ela:
- Boa tarde, moça. Está servida?
- Bom apetite – respondeu ela, curvando o corpo e passando entre as vigas, para poder aproximar-se dele.
E qual não foi o seu susto ao reparar que ele estava vestindo uma fantasia de palhaço, com nariz de bola vermelha e tudo. Mas, no meio artístico, tudo era possível, até mesmo encontrar um palhaço comendo escondido entre as madeiras do teto.
- Há muito tempo eu não comia tão bem – disse ele.
Era um homem de uns sessenta anos e a maquiagem pesada, reparou ela, não lhe escondia as rugas do rosto.
- É engraçado – disse Flávia – Já estou neste prédio há quase dois anos e nunca tinha vindo até aqui.
- É o meu esconderijo predileto – disse ele. – Sempre que quero fugir do movimento da rádio, venho para cá. Fico olhando para a rua, por essa telha quebrada e agradeço a Deus por ter me dado a missão de ser palhaço, de levar alegria aos outros.
- Dizem que o palhaço, no fundo, é um triste – respondeu ela.
Ele riu.
- Mas o Grande Arquiteto do Universo não nos criou para a tristeza, moça. Esse negócio de que sofrendo é que se alcança o paraíso, é invenção dos padres que só querem poder e dinheiro. O Mestre nos quer alegres, criou esse paraíso que é a Terra para que nós sejamos felizes e vivamos rindo.
- Não sei não – disse Flávia com um sorriso. – O senhor mesmo, nem precisa sair daí desse seu cantinho para ver a tristeza do mundo. Olhe ali embaixo, aquela favela. Essa semana ainda houve um incêndio lá e as crianças vinham aqui, desesperadas de fome, sem ter sequer onde se abrigar...
- É, moça...mas foram os homens que inventaram a tristeza, com sua ambição e egoísmo. Deus não queria isso. Deus fez o mundo para todos, para que o compartilhemos com alegria e generosidade. Mas a ambição de alguns, que tudo querem apenas para si, é que causa as diferenças, as guerras, a intolerância...
- O senhor é socialista?
- Sou apenas um velho palhaço, que sonha com um mundo de paz e igualdade e, enquanto não vê isso, tenta dar um pouco de alegria às almas...Não foi o Oscar Wilde quem disse que nem sempre somos felizes quando somos bons, mas sempre somos bons quando somos felizes? Se o mundo fosse mais feliz, todos seriam mais bondosos e, assim, como num círculo vicioso, quanto mais felicidade, mais bondade e quanto mais bondade, mais felicidade.
- O senhor contribui, com a sua parte, fazendo rir, levando alegria. Isso é bonito mesmo. Mas o mundo é só crueldade, infelizmente. E, mesmo entre as pessoas boas, também acontece o sofrimento. Na vida sempre há perdas, há acidentes, imprevistos, que fazem a gente sofrer.
- Sabe, moça, a pedagogia de Deus às vezes é muito dura. No entanto, já dizia o poeta, que é melhor ser alegre que ser triste mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza...Pela tristeza, pelos contratempos da vida, só aprendemos e crescemos e podemos até dar o devido valor à alegria. Mas as adversidades e os contratempos não devem nos fazer perder a alegria da vida! Não podem! Se sofremos hoje, devemos encarar esse sofrimento como uma lição e continuar, dentro de nós, com a fé na vida, com a alegria de viver. A moça não acha?
- O senhor parece estar de acordo não só com os socialistas mas também com os budistas – disse ela – que afirmam que as adversidades não devem perturbar a nossa paz interior.
- É isso mesmo, moça. A nossa chama interior é que nos mantêm vivos, é ela quem traça o nosso destino. Se o nosso pensamento for alegre e otimista, assim também será a nossa vida. Se, ao contrário, for triste e derrotista, certamente não alcançaremos sucesso em coisa nenhuma. Eu lhe digo, moça, Deus não nos fez para sermos tristes, desconfiados, macambúzios, como esses abutres religiosos. Para eles, nós já nascemos cheios de culpa e de pecado. Pois eu digo que nascemos mas é para a felicidade. Era isso que Deus tinha em mente quando criou o céu e a terra: a plenitude, a harmonia, a felicidade.
- O senhor então se considera feliz?
- Ah, sim. Eu sou muito feliz.
- Nossa! – disse Flávia olhando o relógio – gostaria de conversar mais, no entanto preciso ir. Tenho uma matéria enorme para fechar essa tarde. Vamos descer?
- Vá indo, minha filha. Vou ficar mais um pouco aqui no meu lugar – respondeu ele.
Flavia desceu para o estacionamento e resolveu ir comer alguma coisa na lanchonete fast-food que tinha drive-in, pensando que de vez em quando não faria mal abrir mão da alimentação sadia que procurava praticar. Mas tinha perdido muito tempo ouvindo o palhaço e, agora, estava atrasada. Engoliu um sanduíche e um milk shake e voltou para a sua sala. Na cabeça, martelava-lhe o verso da música de Vinícius de Moraes, o Samba da Benção: é melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim com a luz no coração. Mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba não”
Luz no coração! Flavia pensava nos pequenos raios de luz que se infiltravam pelas telhas, lá em cima, onde encontrara aquele estranho ser com sua roupa de palhaço. Luz no coração. As palavras dele, embora até mesmo banais, haviam feito isso com ela, iluminaram-lhe o coração e todo o dia, embora frio, parecera-lhe então mais belo, com aquele sol de inverno a colorir a paisagem.
À noite comentou com o marido o estranho encontro com aquela inverossímel figura, caracterizada como palhaço, escondida no telhado. Mas não conseguiu transmitir a ele a profunda impressão que ficara em si.
- Ah, decerto ele foi dar uma entrevista na rádio e depois ia para algum show, por isso já estava caracterizado. – comentou o marido sem muito interesse.
Naquela noite Flávia voltou a sonhar que estava na velha casa de seus pais, da sua infância e que a sala era agora uma biblioteca onde ela viu antigos livros que foram seus, e que tinha esquecido. Saindo da casa, pelos fundos, atravessou um magnífico jardim, coalhado de flores e viu, surpresa, que o velho jardineiro que atendia o bairro e trabalhava também para os seus pais, usava um nariz de palhaço. Acordou assustada e logo voltou a dormir.
Alguns meses depois, estava acessando a rede interna de computadores do jornal para fazer uma matéria especial sobre os 100 anos da organização. Muito da memória das rádios e dos jornais havia se perdido, mas, mesmo assim, havia um arquivo muito rico em imagens, informações e antigas edições dos jornais do grupo. De repente, na tela do seu computador, lá estava ele, o velho palhaço, e ela leu com espanto:
“O Palhaço Bom de Bola ofereceu na tarde desta quarta feira uma festa aos amigos e às crianças, para comemorar o seus 60 anos de idade e 45 de carreira. A festa reuniu centenas de fãs à porta da Rádio Natureza, fãs estes que não puderam entrar pois a lotação do auditório estava completa. Depois do show, Bom de Bola saiu à rua para cumprimentar a multidão que lá estava e teve as roupas rasgadas, mas, sempre rindo, comentou que foi ótimo apertar mãos, dar autógrafos e distribuir beijos para as crianças”. A data da matéria era 25 de agosto de 1945. Flávia rapidamente ampliou a foto em sua tela, tentando se convencer de que aquele não era o homem que vira no telhado. Mas não tinha duvidas: era ele.
Perguntou a um jornalista mais velho, que trabalhava na mesa ao lado:
- Juvenal, você se lembra de um palhaço chamado Bom de Bola?
- Ah, claro que me lembro! Ele era a alegria da garotada, nas rádios e no circo, quando eu era bem criança. Chegou mesmo a participar da recém inaugurada TV no Brasil, mas morreu logo, no começo dos anos cinqüenta.
- Ele tem algum herdeiro, será? Um filho, qualquer coisa assim, que tenha continuado com a sua profissão?
- Não. Ele era solteiro, tenho certeza.
- Mas eu vi um homem igualzinho a ele, vestido de palhaço, um dia desses, aqui na rádio.
- Deve ser impressão – disse ele, aproximando-se da tela dela para ver a foto do Bom de Bola. – Olhe! Aí está ele!
- Eu vi alguém igualzinho a ele – insistiu ela.
- Ora, Flávia, todos os palhaços ficam meio parecidos com essa maquiagem branca e o nariz de bola vermelha.
- Mas a roupa, tudo, era igualzinho!
- Bom, ele ainda pode ter algum imitador, se bem que o estilo dos palhaços tenha mudado um pouco.
Flavia saiu na captura de outras fotos. E quanto mais via o Bom de Bola mais certeza tinha que era o mesmo homem com quem conversara no telhado.
Antes de sair para o almoço, subiu até lá. A porta estava trancada e ela teve que pedir a uma servente que abrisse. Ficou muito tempo lá em cima e foi sentar-se exatamente no mesmo lugar onde estivera o Bom de Bola. Olhou pela mesma fresta, entre as telhas, para a rua lá embaixo e, por um segundo, pensou ver uma multidão à porta da rádio. Mas fora apenas impressão.
Desceu para almoçar, intrigada e um pouco assustada. Porém, logo concluiu que era só a sua imaginação. Como dissera Juvenal, todos os palhaços se pareciam.
Como Flavia previa, lentamente, as empresas do grupo, depois que se transferiram para aquele velho prédio, estavam prosperando e subindo sempre nos rankings de audiência e vendagem. Até o seu caderno de cultura crescera, tinha mais anunciantes e cada vez mais páginas. Ela mesma recebera elogios da direção e um discreto aumento de salário.
Um mês depois de ter encontrado Bom de Bola nos arquivos, ainda estava trabalhando na edição especial dos 100 anos e, certa tarde, sentiu um irresistível impulso de ir até o telhado. Talvez ele tivesse voltado! E só em pensar nisso, seu coração batia mais rápido. Botou o computador para hibernar e subiu as escadas quase correndo. A porta estava de novo fora do lugar. O que estaria fazendo o pessoal da manutenção que vivia tirando aquela porta dos batentes?
A luz, agora, era diferente sob o telhado. Ela estivera lá sempre na hora do almoço e agora, fim de tarde, a luz era mais tênue e o ambiente todo estava levemente avermelhado.
Estava mais escuro também e, até que seus olhos se acostumassem ao ambiente, a única coisa que conseguia distinguir era aquela massa branca e brilhante no ângulo formado pelas vigas, pelo teto e pela lage. Logo percebeu que era uma mulher. “Ué. Isso aqui está ficando muito concorrido”, pensou. Aproximou-se, curvando o corpo e, mais de perto, percebeu que era uma linda dama, muito bem penteada e maquiada, usando um vestido de noite, de cetim branco, com o peito ricamente bordado. Um decote generoso deixava ver a curva dos seios perfeitos. Ah, mas desta vez, Flavia não ia se deixar confundir. Foi logo perguntando:
- Boa tarde. Eu sou Flávia, editora de cultura. Quem é você?
A mulher voltou-se para ela, jogando os cabelos sobre os ombros, num gesto altivo e, com o olhar, mediu-a de cima a baixo.
- Como? Não está me reconhecendo?O Brasil inteiro me conhece! – exclamou ela irritada.
Flávia deu um passo para trás, pois, naquele instante, não sem susto, sabia quem era ela. Muito a vira em sua tela de computador.
- Eu diria que você é igualzinha à famosa cantora Dora Bastos.
- Eu sou Dora Bastos!
- Não é possível – disse Flávia, procurando manter a voz firme – Dora Bastos morreu em 1955.
- Ora, que petulância! Por acaso você pretende saber em que ano vou morrer? O que é você, afinal, com essas roupas ridículas e esse cabelo que mais parece cortado à navalha... Um duende? Uma bruxa?
- Eu já disse. Sou Flavia, a editora de cultura do Jornal Natureza...
- E uma editora de cultura não reconhece a maior cantora do Brasil quando a vê?
De repente, Flávia riu. Claro! Agora estava entendendo. Alguém deveria estar brincando com ela. Na certa o diretor artístico da Rádio, o Marcus. Deveriam estar pensando em montar um espetáculo para comemorar os 100 anos do grupo e contrataram atores para caracterizar os grandes personagens do passado. Só podia ser isso! Primeiro, o Bom de Bola. Agora, Dora Bastos. Mas tinha que cumprimentar o pessoal da maquiagem e da produção: as caracterizações eram perfeitas.
- Ai, não sei quanto tempo vou ter que ficar escondida aqui nesse buraco quente e ainda por cima com você, que mais parece uma bruxa mesmo! – exclamou Dora.
- Você representa bem o seu papel – disse Flavia.
- E você acha que eu gosto de ficar aqui escondida? Mas foi o único lugar seguro que achei em todo o prédio. Todo mundo quer autógrafos e querem me pegar e me amassar e me cheirar...É a única coisa ruim do sucesso... E não adianta...eles não desistem. Daqui de cima mesmo posso vê-los, olha lá, a multidão, esperando que eu saia para me agarrar!
Flavia aproximou-se e olhou por uma fresta. Lá embaixo, na rua, uma multidão se concentrava em frente aos portões do edifício. Mas alguma coisa parecia muito diferente: na paisagem, só casas, nenhum prédio. A rua tinha calçamento de paralelepípedos e não de asfalto e todos os carros eram antigos e pretos. Ops! A coisa era maior do que ela estava imaginando! Deveriam mesmo estar fazendo um filme de época para comemorar os 100 anos. Mas como ela não percebera? Como ninguém lhe contara? E de onde será que viera o muito dinheiro que era preciso para uma produção daquele porte? E a paisagem? Seria uma projeção? Mas como fizeram isso?
- Olha – disse Dora – se você é mesmo uma editora importante, podia me levar para a sua sala, você deve ter uma sala, para eu esperar essa multidão se dispersar! Não posso sair daqui, com essa gente toda querendo me ver...
- Bom, de você é tão famosa, deve enfrentar os fãs. Eu li mesmo que o palhaço Bom de Bola não se recusou a encarar a multidão que o esperava aí fora quando de seu aniversário de 60 anos...
- Imagine. Aquele idiota só tem 57!
- Você não gosta dele?
- Detesto esse cretino. É um romântico, sonhador, vive falando aquelas bobagens sobre igualdade social e o Grande Arquiteto do Universo e outras besteiras... Você vai ou não me levar para a sua sala? Meu make-up está derretendo aqui nesse forno e ainda tenho um show no cassino essa noite.
- Uma estrela do seu quilate não tem seguranças?
- Seguranças?
- Não tem ninguém para proteger você?
-- Ah, tem um cretino que é leão-de-chácara lá no cassino, mas ele deve ter ido beber umas cachaças, enquanto eu cantava no auditório e, quando fui para a cochia, todo mundo queria me agarrar, saí correndo, subi as escadas e achei esse lugar. Você vai ou não me levar? Para ser sincera, eu não estou acreditando que você seja alguém importante, com essa roupa e esse cabelo. Vai ver que é alguém do meu fã clube, disfarçada.
- Não. Eu sou mesmo a editora de cultura.
- Nunca ouvi falar que o jornal tivesse editoras de cultura! E você é horrorosa. Deve ser mesmo uma bruxa ou um duende. Ai, só me faltava essa! Ou é o calor que está me fazendo ter alucinações.
- Não está calor. Estamos no Inverno! Quando é que você vai entrar em cena? Agora?
- Mas eu já não disse, menina, que acabo de me apresentar no auditório da rádio! Você é maluca mesmo. Inverno em novembro?
- Olha, eu não sei o que o Marcus lhe disse, mas pode parar de representar. E eu vou agora mesmo descobrir tudo o que está acontecendo! – explodiu Flávia, cansada daquela farsa.
E desceu as escadas, quase correndo. No segundo andar, encontrou Marcus.
- Ah! Eis você. Quer me explicar o que está havendo e por que eu não fui comunicada? Uma produção desse quilate! Eu deveria estar acompanhando tudo!
- Que produção? – perguntou ele.
- Todo esse circo aí fora, cenário dos anos 40, os artistas vestidos de Bom de Bola e Dora Bastos...Por que eu não fui comunicada?
- Não estou entendendo, Flávia.
- Claro que está. Você não vai poder negar essa multidão aí fora.
- Que multidão, Flavia? Você pirou?
Flávia o arrastou até a janela mais próxima e, quando olhou, a rua estava tranqüila como sempre o cenário era o de 2003.
- Não entendo... – murmurou ela.
Marcus também não estava entendendo nada, mas disse:
- Olha, Flávia, você está muito esquisita. Tire o resto do dia de folga, vá pra casa descansar um pouco. – e se afastou.
Ela voltou, desconcertada, para o telhado. Lá estava Dora, ainda fitando a paisagem pela fresta das telhas.
- Ah, você voltou, finalmente. Por que me trancou aqui? – disse ela, cheia de fúria.
- Eu não tranquei nada!
- Trancou, sim. Eu saí atrás de você de dei com o nariz na porta. Está com medo que eu descubra que você não passa de uma funcionariazinha? Pois saiba que vou me queixar ao Armando, não só de você mas de todo esse tratamento indigno que estou recebendo aqui na rádio dele! Ainda bem que o povo, lá embaixo, já está indo embora. Logo eu também vou e não sei se vou querer pisar aqui de novo!
Flavia aproximou-se e olhou para baixo. Era outra vez a paisagem da década de 40 e, como dissera Dora, a multidão começava a se dispersar.
Deixou-se cair num canto, abatida, e disse:
- Olhe, Dora ou seja lá você quem for, eu não estou entendendo isso. Estamos em 2003, acabo de falar com Marcus e, quando olhei pela janela, era 2003. Não posso explicar essa paisagem dos anos 40 e muito menos você aqui. Mas já estou cansada desse jogo.
- 2003? Você é mesmo uma maluca. Não sabe o disse Cristo? A 1000 chegarás, de 2000 não passarás. E agora, com o mundo em guerra, até os americanos entraram nela no ano passado, talvez não cheguemos mesmo a 2000. Hitler vai acabar com todos: judeus, artistas, homossexuais...
- Pare com isso ! – explodiu Flávia. – Você sabe tão bem quanto eu que a guerra acabou em 45 e Hitler morreu.
- Que espécie de jogo é esse? – disse Dora. – Você não deveria brincar com uma coisa séria como a guerra, que ameaça todas as nossas instituições. Eu sei que aqui no Brasil a gente avacalha tudo, até a guerra, mas ela é séria demais para você brincar com ela!
Flavia olhou diretamente para os olhos de Dora e o tom grave de sua voz mais a sinceridade que leu em seu olhar, a convenceram de que estava realmente diante da cantora morta. Melhor não tentar entender, pensou e disse, subitamente calma:
- A multidão está de fato se dispersando. Você vai logo poder sair daqui e ir tranqüilamente para casa.
- Eu moro no Rio.
- Ah, é verdade. Você está num hotel?
- Não. No hotel é a mesma coisa que aqui. Todo mundo quer me ver. Estou na casa de uma amiga, no Pacaembu. Mas ainda tenho que viajar para Santos hoje, vou cantar no Atlântico, às dez da noite. E estou com calor e o que é pior, com muita cólica.
- Olhe, disse Flavia, eu tenho uns comprimidos, antiinflamatórios, muitos bons para cólicas. Acho que tem um aqui no meu bolso. – E cavocou o bolso do jeans.
- Você não vai precisar?
- Não vou ter cólicas por um bom tempo – disse Flávia e seus olhos se iluminaram quando completou – Estou grávida.
- Mas assim magrinha?
- Só tem um mês.
- E como você pode ter certeza?
- Ah, o médico confirmou. Ficamos muito contentes. Faz tempo estou tentando engravidar. E você, tem filhos?
- Nem pensar. Com a vida que eu levo e sem marido! Agora estou aqui, tendo que trabalhar e com essa cólica louca, por causa do aborto.
- Você fez um aborto?
Dora riu, um riso meio triste:
- Um não. Esse já é o quinto.
- Ah...- refletiu Flávia em voz alta – sem pílula devia ser fogo mesmo!
- Pílula? Que pílula?
- Anticoncepcionais. Foram inventadas em 1960, mas você já tinha morrido.
- Quem é você, afinal? – explodiu Dora – Uma bruxa? Um duende? E essas roupas...
- Já lhe disse. Sou Flávia. Uma jornalista do ano de 2003.
- Você veio do futuro, então?
- Não, vim do andar de baixo. Mas, para você, sou do futuro e para mim você é o passado.
- Acho que não entendo.
- Nem eu. Também não entendo como o palhaço sabia os versos de Vinícius e não se espantava com a paisagem lá embaixo...Mas se você é mesmo Dora e se, pelas minhas contas, você está em...1942, certo?
- Claro. Todo mundo sabe que é 1942.
- Não para mim. Eu estou em 2003 e não sei porque milagre, sempre que venho a esse telhado, encontro alguém do passado. Na verdade, só encontrei mesmo o Bom de Bola...
- Ai! Não me fale desse idiota!
- Puxa! O que é que você tem contra ele? Ele me pareceu tão legal...
- Legal?
- É. Bom. Simpático e mesmo sábio.
Dora gargalhou.
- Sábio coisa nenhuma. Aquilo é um charlatão romântico. Para ele é fácil pregar igualdade e essas besteiras que ele fala. Já nasceu rico. O pai era industrial, ele tem renda, nem precisa do dinheiro dos cachês, como eu, que, se perder a voz – e aqui ela bateu três vezes na madeira – fico pobre em dois anos, no máximo.
- Você sabe muita coisa dele, até a idade e eu, que pesquisei a vida dele, nunca soube que ele tivesse dinheiro de família.
- Tem muito o desgraçado. Por isso, trabalha por qualquer coisa, desvalorizando o cachê de outros artistas, que trabalham para sobreviver.
- Você o conhece há muito tempo, então? São amigos?
- Mais que amigos. Ele é o pai dos meus abortos.
- Mas ninguém nunca mencionou que vocês tivessem tido um caso.
- Pouca gente sabe. Ele é 20 anos mais velho do que eu, mas eu me apaixonei por toda aquela lenga-lenga que ele vive falando...
- E agora está com raiva dele. Por que?
- Porque ele diz que nunca vai se casar ou ter filhos. Diz que o mundo não precisa de mais crianças, que já está cheio demais e diz também que o casamento é uma instituição falida e hipócrita. Mas e eu? Eu não mereço a felicidade? De que me serve ser amada pela multidão se não o sou pelo homem que eu amo?
- Ah...então você o ama.
- Estou com tanta cólica que já não sei se amo ou se odeio.
- Tome o remédio – disse Flávia estendendo-lhe o comprimido.
- Você trouxe esse remédio do futuro? Será que não vai me fazer mal?
- Pode tomar.
- Por que você se veste desse jeito? Todas as mulheres serão assim horrendas no futuro?
- Nós achamos lindo! – disse Flávia com uma risada.
- Essa sua calça de trabalhador, com esses horrorosos sapatos ortopédicos e ainda por cima, brancos! E o cabelo, então? Olhe para isso: todo esfiapado!
Um horror!
- Hoje em dia, é o que está na moda.
- Ah, graças a Deus! – disse Dora – A multidão se foi. Olhe, já não há quase ninguém lá na rua. Vou embora.
Flavia olhou para a rua e viu a paisagem de 2003.
Quando se voltou para falar com Dora, ela tinha desaparecido.
Desceu lentamente para a sua sala e mergulhou no computador, buscando na Internet todas as informações possíveis sobre Dora Bastos.
A cantora nascera em 1906, no Rio de Janeiro, filha de pai desconhecido e mãe empregada doméstica. Fora criada na casa dos patrões de sua mãe e, em 1926 já se tornara cantora nos cabarés do Rio. Foi para o rádio em 1932, quando as estações se tornaram comerciais e populares e não mais agremiações elitistas como até então. O rádio fizera dela um enorme sucesso, enciumando mesmo muitos artistas da época que passaram a vender menos discos do que ela.
No entanto, naqueles tempos, sucesso e vendagem de discos não significavam, como hoje me dia, enriquecimento e era natural que, para manter um bom padrão de vida, Dora tivesse que se apresentar em inúmeros cassinos e teatros. Quando, em julho de 1940, Carmem Miranda veio dos Estados Unidos, de volta para o Rio, Dora foi com ela, de volta. Mas, embora tivesse agradado os meios artísticos, cantando junto ao piano nas festas de Beverly Hills, duas “brazilian bombshell” era demais e ela, não conseguindo nenhum contrato, a não ser algumas apresentações em cassinos de Las Vegas, acabou retornando ao Brasil depois de alguns meses.
Não havia, em nenhuma matéria de jornal ou revista ou mesmo biografia de Dora, referência ao romance com o também famoso palhaço Bom de Bola. A cantora morrera em 1955, vítima de câncer do ovário. Apesar de afastada dos palcos e dos microfones há mais de um ano, por causa da doença, seu enterro foi um acontecimento nacional e levou multidões às ruas cariocas.
Faltava ainda quase um ano para o centenário do grupo e Flávia pensava que talvez tivesse a felicidade de encontrar mais alguns personagens famosos da história que estava escrevendo naquele meio de tempo. Estava francamente decidida a entrar em contato com a família tanto de Bom de Boca quanto de Dora para confirmar o romance que a cantora lhe revelara. Caso conseguisse, poderia também obter uma informação que parecia inédita sobre a vida desses dois consagrados artistas do passado. No entanto, essa não foi uma tarefa fácil. Nenhum dos dois tivera filhos e os sobrinhos ou primos pouco sabiam informar, além do que Flávia já lera em antigas reportagens.
Mas ela tanto procurou que, certa tarde, recebeu um telefonema no jornal:
- Moça – diz uma voz muito velha de mulher – uns primos da falecida Dora Bastos me deram seu número e me disseram que a senhora está querendo informações sobre a vida dela.
- Na verdade – respondeu a jornalista – estou precisando de apenas uma única confirmação de um fato que fiquei sabendo. A senhora é parente? Como é seu nome?
- Sempre fui sua melhor amiga, eu diria mesmo que a única amiga. Até apareci em algumas revistas junto dela, nos anos quarenta. Tenho aqui no meu quarto uns números antigos de O Cruzeiro. Eu me chamo Olga Pacielo.
- Posso ir até sua casa? Onde a senhora mora?
- Moro aqui no Asilo Gente Feliz. Já tenho 91 anos, a Dora, se estivesse viva, teria hoje...deixa eu ver...93.
- Mas ela não nasceu em 1906?
- Não, moça, ela mentia a idade. Mentiu, para mais, desde menina para poder cantar nas boites do Rio. Ela nasceu mesmo em 1910.
- A senhora mora no Rio?
- Moro, moça. Se você quiser vir até aqui, pode vir mas, sabe, eu sou pobre, minha filha e meu genro também são pobres, já tem idade, ele está aposentado e muito doente e eu pensei que talvez...
- Estou disposta a pagar bem pela sua informação.
Assim, no dia seguinte, Flávia pegou a primeira ponte aérea e, antes das nove, estava no asilo, gravador em punho, registrando sua conversa com Olga, que confirmou o fato de Dora Bastos e o palhaço Bom de Bola, cujo verdadeiro nome era Henrique Mendes, mantiveram um tempestuoso romance de 1936 a 1942. Olga acreditava ainda que Henrique tivesse abreviado sua vida, morrendo de desgosto depois que Dora o deixou.
Flávia, radiante por ter seu “furo” confirmado, já ia se despedindo, depois de deixar um bom dinheiro com a velha senhora, quando esta disse:
- Sabe, moça, é engraçado você aparecer justo no ano de 2003.
- Por que?
- Porque, eu me lembro bem, depois que Dora abortou em 1942 e resolveu que deixaria do Henrique, ela me contou que tivera um sonho, quando fora a S.Paulo e cochilara lá na Rádio Natureza. Ela estava impressionada com esse sonho e dizia que encontrara uma jornalista do futuro, exatamente do ano de 2003, que usava uma roupa estranha, calçava sapatos ortopédicos brancos e tinha o cabelo muito mal cortado, todo cheio de pontas...assim como o seu. Lembro-me de Dora ter comentado que fora apenas um sonho, mas parecera a ela muito mais real do que os outros sonhos e ela se preocupava em pensar se as mulheres ficariam tão feias...bom...não é que eu ache você feia, você está na moda, eu vejo na novela, todos os cabelos são assim como o seu. Mas achei engraçada essa coincidência.
Flávia saiu de lá, como se vivesse um sonho. Voltou direto para a redação e subiu para o telhado, mas a porta de acesso à escada estava fechada e não havia nenhum servente por perto. Foi para a sua sala, ligou para a manutenção e pediu que deixassem a porta aberta para que ela pudesse ir lá quando terminasse de escrever sobre Dora Bastos.
Marcelo, o gerente administrativo, a quem a manutenção estava subordinada, perguntou curioso:
- Dona Flávia, o que tem de tão interessante lá naquele telhado? Além dos ratos, é claro.
- Nada não, seu Marcelo. Eu só gosto de ir lá descansar um pouco.
- Nesse caso, estou mandando uma cópia da chave para a senhora.
Flavia ia todos os dias ao telhado, mas não encontrava mais vestígios nem de Henrique Bom de Bola nem de Dora Bastos. Ficava ali, olhando a rua, se lembrando de como a tinha visto, como teria sido nos anos 40 e pensando nos tempos áureos, quando a Rádio Natureza era líder absoluta de audiência, além de ser ouvida, através de repetidoras e por ondas curtas, em grande parte do país.
Todos na redação sabiam que ela estava grávida, pois isso foi motivo de grande alegria para ela própria e para os colegas mais chegados. Atribuíram à gravidez e à maturidade que quase sempre vinha com esse estado, aquela mudança radical na sua maneira de vestir. Começou, ainda naquele resto de inverno, a trocar os cardigans e as pesadas malhas de lã e as jaquetas, por paletós, blasers de corte reto. Depois, trocou os jeans por elegantes calças de tecido, depois os tênis por sapatos e botas e, por fim, as calças de tecido por saias e meias de nylon. Os cabelos foram perdendo as pontas e, no verão, eram de um corte clássico, chanel à altura dos ombros. Mesmo no final da gravidez, ela não abandonou o estilo. Alguns colegas invejosos atribuíam a sua mudança total na maneira de se apresentar à ambição por um cargo mais elevado, na diretoria do jornal.
Em dezembro, nasceu sua filha a quem ela, depois de muito brigar com o marido, chamou de Dora Henriquetta.
Passou os longos quatro meses da licença maternidade no apartamento da praia, onde o marido a encontrava nos fins de semana. Entretida com os cuidados com o bebê, quase esqueceu do fascínio que sentia pelo telhado do velho prédio.
Voltou ao trabalho em abril, às vésperas das comemorações dos 100 anos do grupo. Ficou ocupadíssima, fechando a edição especial de aniversário, na qual tanto trabalhara e já podia pensar em Dora e em Henrique como personagens de um sonho.
Certa tarde, na semana em que se comemoraria, na sexta feira, com uma grande festa, o centenário, sentiu um irresistível impulso de voltar ao telhado. Subiu. No mesmo canto em que encontrara o palhaço, um homem, muito bem vestido e beirando os seus cinqüenta anos, chorava.
Flavia ficou constrangida com a cena e já ia se afastando quando ele se voltou:
- Quem está aí?
- Desculpe-me, senhor, já estou descendo.
- Pode ficar, se quiser. Eu já nem me importo mais que me vejam chorar.
- O senhor está bem? Gostaria que eu lhe conseguisse alguma coisa, um comprimido, um copo d’água, um café?
- Obrigado, minha filha. É apenas um momento de fraqueza. Peço apenas a sua discrição. Todos me julgam tão poderoso, não seria bom para os meus empregados saber que o patrão, derrotado, também chora. Quem é você? – perguntou fitando-lhe o rosto – Nunca a vi por aqui antes.
- Sou Flávia.
- Flávia? Não me lembro de ninguém com esse nome aqui na rádio ou no jornal.
- Sou de outro jornal – mentiu ela, já notando que as roupas do homem, seu corte de cabelo e suas maneiras, eram de alguém que vivesse nos anos 50.
-O senhor gostaria de conversar um pouco, desabafar? Sou boa ouvinte.
- Agora é que eu estou mal, mesmo, minha filha. Nenhuma jornalista concorrente vai perdoar ao velho Armando esse momento de fraqueza. Já estou vendo a manchete de seu jornal amanhã: Armando Farias chora.
- Não. De jeito nenhum. Eu não faria isso. Respeito a sua dor, seja ela qual for.
- É muito difícil, mesmo para um homem como eu, que já enfrentou tantas batalhas e tantos reveses, toda a censura do Estado Novo, todas as muitas instabilidades políticas desse nosso Brasil, ver-se assim, prestes a perder tudo, até a honra. Mesmo que você esteja mentindo e publique no seu jornal a minha dor, pouca diferença fará. Amanhã o banco vai executar a hipoteca desse prédio. Isso é que dói. Praticamente fui criado dentro desse prédio. Meu pai fundou o jornal aqui, em 1904. Depois vieram as rádios. Eu assumi o controle quando o velho morreu e agora... ah... Até pouco mais de 10 anos passados, nós éramos o mais importante complexo de comunicação nesse país. Aí veio esse maldito Chateaubriand, com sua imprensa marrom, seus golpes baixos e, mais recentemente, com a sua televisão...Todos os nossos reclames, toda a nossa propaganda e também o nosso público...tudo foi indo, gradativamente, para as mãos desse nortista do inferno! Quando hipotecamos o prédio, ainda tínhamos esperança, mas agora...mesmo que eu vendesse as minhas propriedades, e restam poucas, jamais conseguiria o dinheiro da hipoteca até amanhã...por isso vim aqui para chorar, minha filha. Não queria perder esse prédio, nunca! E nem sei porque estou aqui enchendo a sua cabecinha jovem com as minhas tristezas de velho falido...
- O senhor está enganado. O senhor não vai perder o prédio.
O homem olhou para ela assustado.
- Eu conheço a história – continuou ela – O senhor vai receber uma proposta do banco amanhã. Eles não executarão a hipoteca em troca de 51% das suas ações. Eles sabem que o nome e a marca Natureza são muito fortes ainda. Querem investir em comunicação, sabem que isso é o futuro. O senhor continuará na empresa, com o cargo de Superintendente e, breve, reerguerá suas rádios e seu jornal. Eles vão viver muito ainda e, no ano de 2004, haverá uma grande festa para comemorar os 100 anos do grupo Natureza. Eu sei porque eu mesma estou organizando essa festa.
- Você tem uma imaginação de escritora, moça... Flávia é o seu nome, não?
- Sim. E não é imaginação. O senhor pode não acreditar em mim, mas essa é a terceira vez que eu venho aqui e encontro alguém do passado...
- Eu sou mesmo do passado, não é?
- Digo, literalmente. Já encontrei aí, onde o senhor está, o Bom de Bola e, mais tarde, a Dora Bastos. Mas, espere, me deixe explicar direito. O senhor deve estar em 1954, não é isso? Mas eu estou em 2004, cinqüenta anos depois. Sexta feira dessa semana, no tempo em que eu vivo, vamos dar uma grande festa aqui mesmo, no prédio. Vai durar o dia todo e estará comemorando o centenário da sua organização. O senhor infelizmente já morreu, eu digo, morreu nesse tempo em que eu vivo...
Armando olhou para ela e balançou a cabeça:
- Você deveria escrever um livro. Tem uma imaginação realmente poderosa.
- Não, não é imaginação. Espere, eu posso lhe provar.
E tirou do bolso o seu telefone celular. Estendeu para ele:
- Veja.
- O que é isso?
- Um telefone celular. Em 2004, no meu tempo, todos têm um desses. Veja, vou fazer uma ligação pro senhor ver que funciona.
E ligou para a própria secretária, no andar de baixo. A moça atendeu, ela colocou o telefone no ouvido do velho e disse:
- Maria, que dia é hoje?
- Terça feira, dona Flávia.
- Dia do mês e ano, Maria.
- Ora, 5 de abril de 2004. Por que?
- Quantos dias faltam para o centenário da Rádio Natureza?
- Três dias, dona Flávia. O que está havendo, a senhora se esqueceu?
- Obrigada, Maria.
E desligou.
Armando olhava para ela, espantado.
- Então você veio mesmo do futuro?
- Vim do andar de baixo, é o senhor que, por alguma razão estranha, está no futuro. Olhe a rua lá embaixo. Vê como é diferente?
Armando olhou pela fresta da telha. Era mesmo muito diferente. Viu um mar de automóveis estranhos, muitos edifícios...
- Nossa! E como vou voltar?
- Como eu não sei, mas o que eu sei é que, no seu tempo, 1954, amanhã, o senhor vai fechar a sociedade com o banco e este será um negócio muito comentado nos jornais de todo o país. Alguns o condenarão duramente, dizendo que é um absurdo um grupo financeiro virar dono de meios de comunicação, mas o senhor garantirá que o acordo inclui a total isenção jornalística tanto para o seu jornal como para as suas rádios.
- Devo estar sonhando – disse Armando, mas já com a expressão do rosto mais animada. – Será tudo isso real? Será que não perderei o meu prédio?
- Pode confiar em mim. Passei mais de um ano pesquisando a história das organizações Natureza em meu computador.
- Computador?
- Sim, o senhor sabe o que é um computador, não sabe?
- São máquinas enormes e custam uma fortuna e, que eu saiba, só servem para cálculos.
- Hoje são pequenos e há mais de 300 aqui no prédio, cada jornalista tem um.
- E eu que não vou viver para ver isso! – exclamou Armando, que era um entusiasta do progresso da ciência e da tecnologia.
De repente, seu rosto se turvou.
- Se você veio mesmo do futuro, ou melhor, se eu estou nesse momento no futuro, então você sabe quando eu vou morrer.
- Sei, mas não vou lhe dizer, é claro.
- Diga-me apenas se eu verei os computadores em ação.
- Sim verá – disse ela, que sabia que o velho patriarca das Organizações Natureza morrera em 1988.
- Se não fosse esse seu telefone e essa paisagem louca lá embaixo...
- O senhor não acreditaria em mim, não é?
- Nem sei ainda se acredito. Não vejo como aqueles homens do banco possam se interessar por investir...
- Sabe, seu Armando, eu encontrei aqui o palhaço Bom de Bola...
- O Henrique?
- Ele mesmo. Ele me disse que as pessoas não podem se deixar abater pelas adversidades. Não entre derrotado naquele banco amanhã. Entre de cabeça erguida! O senhor é um homem importante, dono de um império. Está apenas vivendo um momento difícil. Se eles não propuserem, proponha o senhor esse negócio. Vai dar certo. No meu tempo, já deu certo e já fazem 50 anos!
Antes que ele sumisse, Flávia pode ver um estranho e novo brilho em seus olhos.
Segura e feliz, desceu as escadas que a levariam de volta ao trabalho.
A festa do centenário foi um sucesso e Flávia brilhou, dando entrevistas e contando casos antigos da organização, de seus tempos áureos, falou na figura de Armando Faria e na importância do império de comunicação que ele construíra e que agora se reerguia novamente, conquistando cada vez mais audiência e leitores.
No fim do dia, morta de cansada, entrou em seu carro e pensou que, afinal, não era uma coincidência que uma das filhas de Armando, hoje uma de suas chefes, também se chamasse Flávia.
Quando passou em frente ao prédio, do outro lado da avenida que a levaria para casa, pode avistar uma nesga do velho telhado. E soube que sua filha, que desde recém-nascida mostrava um humor admirável, sendo uma criança dócil e meiga e risonha, seria como ela uma comunicadora, talvez mesmo uma artista.
Mentalmente, agradeceu a Deus, ou ao Universo, por tê-la feito trabalhar naquele velho prédio, onde pululavam as lembranças de tantas glórias do nosso meio artístico e jornalístico, onde ela vivera aqueles momentos mágicos, como mágico era o mistério de estar viva, viajando sobre a Terra na imensidão do Cosmos.
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