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Mariana e Suas Tias.

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 28 de abr.
  • 6 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

(publicado na Revista UpPharma)


Caitllin Commolly, 2015, Mulheres enfrentando demônios
Caitllin Commolly, 2015, Mulheres enfrentando demônios

Mariana tinha um sonho. Menina nascida na periferia da grande metrópole, onde todos acreditavam ter seu destino traçado. E esse destino seria o de repetir a história de seus pais, ou seja, trabalhar apenas pela sobrevivência e, no máximo, conseguir uma casinha pra morar, o que já seria uma grande conquista.


Porém, o que Mariana esperava da vida não era bem isso. Ou antes, não era nada disso. Ela queria ser muito mais que o que o seu ambiente esperaria dela. Queria estudar, cursar uma universidade, trabalhar, ser independente. Conhecer o mundo!


 No entanto, os condicionamentos sociais falam mais alto e, quando deu por si, aos 17 anos, estava noiva do namoradinho com quem começara um flerte aos 13.


Quando deu por si, estava construindo um “puxadinho” no quintal da casa dos pais, exatamente como estes tinham feito, ao se casarem havia duas décadas, na casa dos avós de Mariana. Quando deu por si, percebeu: Era a inexorável repetição da vida sem surpresas, mas também sem grandes realizações, à qual os mais pobres se condenavam. Quando deu por si, percebeu que repetiria, de uma forma ou de outra, a triste história das mulheres de sua família.


Mariana parou para pensar. Sua mãe, suas tias... muitos filhos, partos mal assistidos... Uma tinha incontinência urinária, outra sofria de endometriose, outra, com ovários policísticos.

“Todas as doenças são psicossomáticas” – lera ela num site na Internet. “Tudo começa no sentimento, na emoção.”


 Sabia que sua tia 1 sonhara, na infância, em ser pianista. Mas como? Até conseguiu estudar um pouco de música num conservatório, com uma bolsa. Mas logo foi trabalhar na grande indústria que dominava o bairro e, pouco tempo depois, viu sua mãe adoecer. Suas três outras irmãs já estavam casadas, em casa só ela e a caçula, de mulher, além da mãe agora doente, o pai e o irmão jamais pegaram numa vassoura ou num frasco de lava louça... e não seria agora... Assim, o piano foi devidamente esquecido e sepultado. E ela seguiu o "destino" de todas. Casou-se com um príncipe, que logo virou sapo, teve um bando de crianças e foi se acabando na vida doméstica e pobre.


Sua outra tia, a 2, antes de se casar, fôra Miss. Ganhara o concurso do clube de futebol do bairro e chegou a ficar em segundo lugar no Miss São Paulo. Recebera, então, vários convites: desde para posar para revistas até para ser bailarina, como figurante, num programa de uma pequena TV. “—Escândalo!” – vociferou a família “– Moça direita não vai dançar seminua na televisão!”

Trataram logo de casar a tal candidata a Miss, para que esta se reduzisse ao que, afinal, dela era esperado: mãe, esposa submissa (“muitas vezes, agredida” – pensa Mariana) e dona de casa (“mas não do seu próprio nariz” – concluem os pensamentos de Mariana).


Sua tia 3 tivera o pior destino possível: casara-se, apaixonada, por uma famoso jovem galã das imediações. Ele era lindo, um "pão", como se dizia à época, bonito, bem vestido e... mulherengo! Teve muitas amantes e, cada vez que a tia 3 ousava reclamar do comportamento dele, ele a enchia de tapas, socos e pontapés. Depois de 20 anos desse casamento sofrido, apareceram as Delegacias da Mulher. Sua tia 3, cansada de ouvir do marido que ele melhoraria, que não a agrediria mais, essas coisas... cansada de perdoá-lo a cada surra, resolveu ir pedir ajuda. Deu queixa dele. Pra que? A partir de então ele passou a ameçá-la de morte, caso ela não retirasse a acusação contra ele. A delegada explicou que poderia conseguir o afastamento dele do lar e uma decisão judicial o impediria de se aproximar da esposa, a menos de 300 metros. Os filhos -- a menina já casada, o menino já um rapaz tão belo quanto o pai -- a apoiaram. Afinal, tinham sido, por toda as suas vidas, testemunhas do sofrimento materno. Num final de tarde, três semanas depois que saíra da casa, o marido voltou, pulou o muro da rua para o quintal, entrou na cozinha onde ela preparava o jantar, sacou um 38, que pegara emprestado de um chefão do crime organizado local, e esvaziou o tambor, acertando 8 implacáveis tiros na mulher que, um dia, no altar, ele jurara amar e respeitar até que a morte os separasse. A polícia nunca conseguiu encontrá-lo e as boas línguas do bairro diziam que ele se bandeara para a Colômbia, com a ajuda do mesmo crime que o armara, e vivia nababescamente, trabalhando para o tráfico internacional de drogas.


Com a sua tia 4, a coisa tinha sido um tanto diferente. Caçula das 4 outras irmãs da mãe de Mariana, era uma espécie de versão dessa, às antigas. A mais bonita e gostosa de todas, teve vários pretendentes, alguns até muito bem de vida, mas zombava todos eles. Dizia não querer ser propriedade de homem algum e, ainda muito jovem, foi trabalhar na tecelagem da região.

Queria, inclusive, prosseguir estudando, mas como, com seu salário mínimo? Caiu na besteira de comentar com os colegas de trabalho esse seu desejo. Uma tarde, na saída do expediente, o gerente da fábrica se aproximou dela e foi logo dizendo:

-- Se você quer mesmo estudar, eu posso fazer alguma coisa por você. Pago o segundo ciclo noturno, aqui na escola do bairro pra você e, em troca, você passa a frequentar a minha cama.

A tia 4 corou. Era virgem. Mas o homem também não era coisa de se jogar fora: bonito, sedutor, parecido com um astro de Hollywood antigo, que ela via em filmes da TV, aquele tal de Clark Gable. A tia 4 fez um charme, disse que ia pensar, mas topou. Surpreedentemente foi muito feliz na cama dele, que era um amante experiente e sabia bem como satisfazer as mulheres, e não, como a maioria, estava apenas preocupado com o seu próprio prazer, mas ensinou-a também a ter orgasmos. E múltiplos.

Tudo parecia ir bem, mas o bairro inteiro comentava a "sem vergonhice" da tia 4 com o gerente da fábrica e, numa noite, quando ela chegava da escola, seu pai a chamou para um conversa: ou acabava com aquele caso escandaloso -- que ele, o pai, estava até disposto a perdoar e esquecer -- ou teria que deixar a casa da família. Chorando, no dia seguinte, ela contou ao amante sobre o ultimato do pai e este, que naqueles dois anos, acabara mesmo muito envolvido e até enamorado, disse:

-- Vamos nos casar! Tapamos, assim, a boca de todo mundo, inclusive da sua família!

E, então, o destino da tia 4 acabou se tornando tudo o que ela não queria. Na primeira gravidez, abandonou os estudos e acabou por ter 8 filhos com o marido e sendo sustentada por ele, e tornou-se a "propriedade" que ela nunca quisera ser. Foi, de fato, muito menos infeliz que suas outras quatro irmãs, mas nunca foi o que pretendia.


Assim, para escapar da mesmice -- e da tragédia -- do destino das mulheres de sua classe social, às vésperas do casório e com a casa (o puxadinho no quintal) quase pronta, Mariana disse – como o Operário Em Construção do Poeta Vinicius de Moraes – não! Não. Às vésperas da data do casamento, o "puxadinho" devidamente mobiliado, o vestido de noiva já comprado e pendurado no armário, Mariana avisou ao noivo e à família que não se casaria. Foi mais um escândalo!


 Hoje, duas décadas depois dessa história, Mariana é executiva numa grande empresa internacional. Ganha muito mais do que sua família inteira junta. Não fôra fácil. Mas ela vencera! Estudara, se formara, fôra trabalhar para pagar a faculdade pequena da periferia (entrara na USP, mas não pudera cursar: era longe demais de casa e o dinheiro para a condução não existia...), arrumara um bom emprego e, enquanto suas amigas torravam seus salários em roupas, algum cinema, alguma balada, Mariana vivera como freira. Para economizar e poder realizar seu sonho.


 Passara anos apenas trabalhando e estudando à noite e ainda, como a filha solteira, ajudando a mãe nas lidas domésticas.


Inteligente, logo percebera que a leitura era um dos melhores hábitos que podia cultivar. Fez cursos. Todos os que fossem gratuitos, pela Internet ou presencialmente. Aprendeu, no ciber café do bairro, a dominar os programas de computador. Um dia, pôde comprar um notebook e não parou mais. Depois vieram os celulares.


Tudo, para Mariana, era oportunidade de crescimento, de adquirir conhecimento.

 Seu trabalho atual permitiu-lhe, antes da Pandemia, conhecer inúmeros países. Realizou seu sonho.


 Agora, aos 40 e poucos anos de idade, ela vai sim, uma vez por ano, à sua ginecologista, fazer a sua prevenção de rotina. Mas, nunca, nunca mesmo, teve doença alguma, nem uma simples cólica menstrual. Amor? Tem alguns. Nenhum é dono dela.


Em pensamento, Mariana agradece às suas tias. Afinal, fôra o exemplo da vida sofrida delas que a incentivara a procurar, de todas as formas, escapar daquele "destino" das mulheres dependentes.


Bel, maio de 2022, para Roseli Zampirolli.


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