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Pela Vida das Mulheres

Foto do escritor: SAUDE&LIVROS FommSAUDE&LIVROS Fomm

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


Joana transpira no calor escaldante da Avenida Paulista naquele 8 de Março de 2025. A quentura insuportável vem de tudo o que a cerca: do chão, o asfalto tão quente que fritaria um ovo; do céu, com aquele sol arregalado de alto verão; dos corpos suados das companheiras de luta que marcham com ela, “pela vida das mulheres”, como diz a enorme faixa, azul com letras brancas garrafais, carregada pelas militantes da primeira fila horizontal que “puxa” a passeata. 

 

A emoção de fazer parte daquela mulherada engajada na luta pela igualdade de gênero e contra o feminicídio, o orgulho de estar desfilando na avenida-símbolo da maior metrópole do país, a certeza de que todo sacrifício compensa quando a causa é justa... Tudo isso anula o desconforto da quentura infernal. Joana grita as palavras de ordem do grupo, a plenos pulmões. Estão nos ouvindo, afinal – pensa ela – o coração batendo forte – ela, tão acostumada a não ser ouvida, a ser desacreditada, desrespeitada, desvalorizada.

 

Sempre fôra assim. Desde criancinha. Na família de classe média, o dinheiro dera pra pagar os estudos dos irmãos homens, em boas escolas particulares, enquanto ela tivera que se matar de estudar para conseguir uma vaga no segundo ciclo do colégio estadual.

 

-- Segundo ciclo pra que? – ria o pai à mesa do jantar.

 

-- Pra poder estar na faculdade! – respondia ela.

 

-- E na faculdade ensinam a cuidar das crianças, lavar fraldas, limpar a casa, cozinhar?  Não se iluda, minha filha – continuava ele ainda a rir – Seu diploma só vai enfeitar a parede, pois você acabará, como todas as mulheres, largando tudo pra cuidar do maridinho e do bando de filhos...

 

Enquanto os irmãos foram para a engenharia do Mackenzie e para a administração da FGV (duas universidades muito caras) Joana teve que fazer 2 ENEMs para, afinal, entrar no seu curso noturno de Tecnologia da Informática. Foi trabalhar como auxiliar de escritório num grande banco para poder pagar a faculdade. Levava mais de duas horas para ir ao trabalho, mais uma hora de ônibus e metrô (lotados) no fim da tarde para chegar à faculdade e, tarde da noite, mais uma hora inteira de condução para voltar para casa. Passava os fins de semana mergulhada no computador doméstico – quando os irmãos não o estavam usando – estudando e estudando... Os pais pouco ajudavam nas despesas: material, apps, condução, mensalidade... Afinal, todo o dinheiro disponível da família, pagas as contas básicas, iam primeiro para as necessidades dos irmãos machos e, se sobrasse algum, talvez viesse alguma ajudazinha para ela.

 

Mesmo assim, Joana conseguiu, quando já estava no terceiro ano da faculdade, comprar o notebook usado de uma colega de sala. Fôra através dessa – acabaram ficando amigas – que descobrira a ONG Poder Rosa Choque, onde iniciara a sua militância feminista que, agora, a levava, junto a outras organizações similares, a desfilar na passarela da Avenida Paulista.

 

Estava então no quarto ano da faculdade, prestes a se formar, e, no trabalho, passara de auxiliar de escritório à assistente de TI, com um bom salário, alguns benefícios e também algum respeito.

 

Era a primeira vez na vida em que se sentia respeitada. Em casa os irmãos ainda zombavam dela, constantemente, fazendo piadas sobre a baixa capacidade feminina para matemática e ciências exatas e “o que dizer então – eles falavam – para os algoritmos?”

 

O sucesso de Joana no trabalho e nos estudos, no entanto, os desmentia e irritava-os bastante. Um engenheiro, um administrador de empresas e uma irmã formada em Informática? Era demais para o orgulho deles, desmentindo suas previsões e suas certezas machistas sobre a inferioridade intelectual das mulheres.

 

Depois da escaldante manifestação da Paulista, naquele Dia Internacional da Mulher, suas companheiras de ong resolveram ir tomar a merecida cerveja num bar próximo a avenida. Quando Joana viu aquele rapaz, carregando um violão, dirigir-se ao pequeno palco do boteco foi como se um soco a atingisse bem na boca do estômago, refletindo-se para o seu baixo ventre. Que homem lindo – pensou!

 

Não tirou os olhos dele, encantada, pelos 40 minutos em que ele se apresentou cantando desde hits de Anita a velhos sucessos da MPB tradicional. Cantava, sorria e olhava também para ela. Depois dele, subiu ao pequeno palco uma banda cover dos Beatles e logo se improvisou, entre as mesas e o balcão, uma mini pista de danças. Joana corria os olhos ansiosos por todo o ambiente. Onde estaria ele? Teria ido embora? De repente, vindo por detrás dela, ele a convidou para dançar. Sentindo as mãos dele nas suas, as mesmas mãos fortes que ela tanto admirava enquanto dedilhavam o violão, Joana parecia levitar.

 

Ricardo era o nome dele. E, a partir daquela noite, passavam todas as horas livres juntos. Joana até saía mais cedo da universidade para ir ao bar, vê-lo cantar. Passaram muitas noites em pequenos hotéis das imediações e Joana ia, dia seguinte, pro trabalho, como sonâmbula.

 

Três meses depois percebeu que estava quase sem dinheiro.  Fez as contas, rememorou as despesas e concluiu que era sempre ela quem arcava com a parte do leão naquilo que pagavam nos bares e nos hoteizinhos que frequentava com Ricardo. Lembrou-se ainda de ter feito alguns saques no caixa eletrônico para ele, que dizia que devolveria o dinheiro quando o bar lhe pagasse os cachês.

 

Uma manhã, seu chefe a chamou em sua sala:

-- Joana, não sei o que está acontecendo na sua vida particular e nem quero saber. O que sei é que alguma coisa está fazendo com que você frequentemente se desconcentre e isso está prejudicando a sua produtividade. Caso seja algum problema mais sério, você pode pedir uma licença no RH, acho mesmo que tem até férias vencidas.

 

Joana corou. Nunca levara uma reprimenda no trabalho, orgulhava-se de seu desempenho profissional impecável.

 

Voltando para casa, apertada no lotado vagão do metrô, pôs-se a refletir. Sim, ela estava apaixonada por Ricardo e ele a tinha feito muito feliz na cama. Mas não estava disposta a comprometer seu sucesso na carreira por um cantor pobre e um tanto explorador. Dia seguinte, faltou na faculdade e foi ver a apresentação dele no bar. Quando ele terminou e sentou-se ao seu lado, ela disse:

 

-- Ricardo, nós temos sido felizes juntos, mas precisamos parar com esse relacionamento agora. Está interferindo no meu trabalho, nos meus estudos, e você sabe que a minha carreira é o mais importante na minha vida e que dei muito duro para chegar aonde estou e quero ir ainda mais longe...

 

Ele sorriu, olhou bem nos olhos dela, pegou suas mãos sobre a mesa e disse:

-- O que é isso, meu bem? Como a nossa felicidade pode prejudicar a sua carreira?

 

Ela recolheu as mãos, desvencilhando-se dele:

-- É o que está acontecendo. Por isso vim aqui hoje para dizer que é melhor nos separarmos como amigos e acabou!

 

Ele, subitamente transformado, deu um soco na mesa e disse em voz baixa, porém claramente furiosa:

-- Veja bem, mocinha! Mulher nenhuma me dispensa! Vou esquecer toda essa bobagem que você disse e vamos continuar exatamente...

 

-- Não! – respondeu ela com firmeza. – Não vamos. Vou embora agora e não se preocupe porque já paguei a conta!

 

Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Ele a seguiu. Na calçada deserta, agarrou-a pelo braço com violência e deu-lhe um sonoro tapa na cara. Nesse instante, um ônibus descia pela faixa exclusiva da avenida, em velocidade razoável para aquela hora da noite, bem ali, grudado ao meio fio da calçada onde estavam. Num repente, Ricardo empurrou-a em direção ao coletivo.

 

Na delegacia, disse que estavam brigando e que ela escorregara. Mas testemunhas o contradiziam, dizendo que ele parecia tê-la empurrado.

 

O fato é que um enorme pneu do veículo esmagou a cabeça e os sonhos de Joana, sem choro nem vela.

 

 

Comentário de Antonio Costella - Forte.

Vou reler depois, para refletir a respeito.

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