
Por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano.
(para Alda Marco Antônio e para todas as lutadoras)
Cresci ouvindo-a dizer: “Por que é um direito para eles e outro para nós, mulheres?”. Ela nascera em 1912, com aquela alma prática e esperta, muitos anos à frente de seu próprio tempo. Essa era a minha mãe, Wanda.
Um dia, no meio dos anos 1970, dirigindo por uma estrada em Minas, ela disse ao meu pai: -- Alfredo, eis uma coisa intrigante. Agora há pouco passou um caminhão carregado de toras de madeira em direção ao sul. E agora, estamos ultrapassando um outro caminhão, igualzinho, igualmente carregado de toras de madeira, que se dirige para o norte. Algo está muito errado aqui”.
Conversando, 20 anos depois, aqui em casa, num jantar, com um especialista em logística e transporte, amigo profissional do meu marido, Mauro Caetano, comentei essa observação de minha mãe sobre os caminhões que transportavam madeira. O homem não deu muita bola ao fato em si, mas ficou sinceramente espantado ao perceber que minha mãe, uma simples mulher, tinha observado isso. Certamente, para ele, não era “assunto de mulher”, nem dela, nem meu!
Por causa de um artigo que escrevi e publiquei nessa semana agora, sobre a ditadura militar, duas amigas me sugeriram escrever um livro com as minhas experiências daqueles anos horríveis, com a censura, a repressão e aquele clima de terror que cercava a todos os que não fechavam os olhos ao regime sob o qual vivíamos então no país. Não sei se quero escrever sobre esse tempo. De fato, já escrevi bastante e o meu artigo dessa segunda-feira foi fruto de uma súbita inspiração e da minha gratidão a toda a equipe do “Ainda Estou Aqui”, filme que veio na hora exata, na hora em que o país estava precisando dele...
Assim, cá estou eu, em mais um Dia Internacional da Mulher, me sentindo na obrigação de, outra vez, falar sobre a condição social das mulheres no planeta! Um saco, que saber? Falo sobre isso há mais de 50 anos, em todos os 8 de Março e também, exaustivamente, em qualquer dia do ano!
Durante quase duas décadas, tive um programa de TV aberta chamado “Condição de Mulher”, diário e ao vivo, onde entrevistei Deus e o Mundo, qualquer um que tivesse algo a acrescentar à matéria: políticos, ativistas, ong-eiros, sociólogos, pacifistas, psicólogos, psiquiatras, ginecologistas e até bruxos!
Quando comecei o programa, nos anos 1980, fui altamente esnobada e ridicularizada, por outras mulheres, quando me atrevi a falar no 8 de Março. Ninguém comentava, ninguém nem sabia que existia Dia Internacional da Mulher. Mas existia. Desde 1910, quando Clara Zetkin e Alessandra Kollontai, propuseram a criação da data no Congresso Internacional Socialista.
Originalmente, é um dia de luta política. Mas hoje... ah! Hoje virou outro Dia das Mães ou da Secretária! Eu sei que as flores são bem intencionadas, mas, por favor, esqueçam isso! Não é um dia pra presentinhos e florzinhas! É um dia para reflexão, discussão, diálogo. Alias, três coisas que quase não existem mais hoje em dia!
Bem, mas o que fato mudou na condição feminina desde que eu, ainda adolescente, escrevia no jornal mural da escola, sobre o assunto? Ah, alguma coisa mudou. Mas, basicamente, continuamos nós mulheres, sendo vistas pela maioria dos homens e das mulheres também, com um zero-à-esquerda, cidadãs de segunda classe, sacos de pancada, depósitos de esperma, ou – ainda pior! – seres frágeis, delicados, encantadores, meigos e dóceis.
Vá te catar, meu filho! Nós mulheres somos seres humanos absolutamente iguais a quaisquer outros, com méritos e fraquezas, erros e acertos, tudo isso, mas, principalmente, com os mesmos direitos de qualquer cidadão que se preze!
No entanto ainda ganhamos, nas empresas, menos que homens que exercem a mesma função que nós, cerca de 30% a menos, e esse é um número que não muda há décadas! Outro dado que não muda também há muitas décadas: 25% das brasileiras apanham regularmente de seus companheiros, maridos, namorados e, atualmente, até de estranhos! E, a cada 4 minutos, uma mulher é morta em crimes hoje apropriadamente chamados de “feminicídios”.
E nós, grandes imbecis, continuamos a nos apaixonar pelo primeiro cretino que corresponda à atração sexual que sentirmos por ele. Sim, porque a despeito de algumas conquistas sociais e da visibilidade maior de nossa condição inferior na sociedade, ainda precisamos da “desculpa” do amor romântico para assumir o que, na maior parte das vezes, é só tesão mesmo!
E não me venham com essa balela de que as jovens são diferentes hoje. São nada! Fingem que são, mas são iguaizinhas às suas mães e avós porque, afinal, na família os valores machistas se perpetuam na educação justamente pelas mãos (e pelas atitudes) femininas.
Outro dado que não muda há décadas: o número de adolescentes grávidas. Meninas que fazem sexo com os namoradinhos, sem se proteger, acreditando que serão amadas. Tem um verso meu, parte de um poema, que diz o seguinte: “Nada feito, João! Você só quer sexo onde eu quero coração” – Não é à toa que o nome da poesia em questão é “Desencontro”.
Trazemos introjetada a ideia de que nada somos, nada seremos, sozinhas, sem um homem ao lado. Mulheres independentes, profissionalmente realizadas, autossuficientes, ainda caem nessa esparrela... Muitas vezes são vítimas de golpes financeiros mesmo, de parte de homens que sabem manipular com perfeição essa “carência” feminina, a de se julgar “incompleta” sem um homem ao lado.
Um ano depois da morte do meu marido, um dos melhores amigos dele ficou viúvo. Aí, veio aqui em casa e me disse: “Agora que nós dois estamos livres, vamos ficar juntos!” Um absurdo, uma estúpida pretensão. Eu não estava “livre”, como não estou até hoje. Nem “livre”, nem à venda. Não quero nenhum homem me atazanando a existência. Fui muito feliz com meu marido e até hoje ainda o amo, de paixão. Reconheço que tive, na vida, esse grande privilégio, que é de poucos, o de encontrar a sua alma gêmea, o de viver um grande amor. Imagina se vou topar viver com qualquer trubufu da vida, mesmo que ele seja rico. Sou feliz aqui, com meus passarinhos, meus amigos, meu trabalho. Me viro, como a maioria, para pagar as contas, às vezes balançando na corda bamba do cheque especial, mas me viro!
Meus pais me criaram sob o manto do próprio amor que tinham um pelo outro. Por ver e reconhecer esse amor foi que eu esperei até os 32 anos de idade, namorando muito, mas sem me amarrar num casamento de conveniência. Tinha 32 quando conheci o meu amor, Mauro Caetano, e ele, 45. Nunca mais, desde o primeiro dia, dormimos separados. E isso durou 38 anos!
Não é qualquer Zé Mané que terá espaço na minha cama e no meu coração. Nenhum Zé Mané, aliás. Eu me basto. Mesmo na ausência do meu amor.
Por isso, meninos, não me venham com flores no Dia Internacional da Mulher. Nós, mulheres de luta e consciência política, trocamos de bom grado, qualquer florzinha por uma boa dose de respeito.
Respeito: esse é o melhor presente!
Bom 8 de Março pra nós, queridas irmãzinhas!
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