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Um Crime

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 12 de jul.
  • 2 min de leitura

conto de Mauro Fisberg

(do livro Revelações do Cotidiano)

Cândido Portinari, 1957, Favela.
Cândido Portinari, 1957, Favela.

Um fusca cinzento imaculado que combinava com seus cabelos grisalhos. Estofamento cinza claro, impecável. Ferramentas no porta-malas, uma pá, cordas e roldanas.

 

Ele era carinhoso, com dentes de ouro discretos e dentadura impecável.

Todos gostavam dele- incansável e acessível- mas tinha um fraco- gostava de morenas pequenas de seios infantis.

 

João era um estuprador, mas nunca havia chegado perto de qualquer mulher.

 

Seus sonhos eram agressivos e carnais; conseguia imaginar nádegas firmes, pequenas, lubrificadas. Em seus sonhos ele era cuidadoso: usava preservativo, lubrificantes e era carinhoso.

 

Mas ele não permitia qualquer movimento- sua presa era absolutamente amarrada com as cordas e cordões que tem em seu carro.

 

Infelizmente, seus os sonhos não mostravam o que acontecia após o orgasmo.  Será que as liberava?  Ele as matava?  E o arrependimento e o remorso ocorriam todos os dias!  Como fazer para parar os sonhos? João tinha 17 anos e não sabia o que seria dele.

 

Já o outro personagem, era um observador!  Formiga, que era como lhe chamavam na facção, era um olheiro armado na entrada da rua.   Sua função era avisar que o corre chegava às comunidades.

Essa loucura podia ser uma invasão da polícia, da milícia ou dos rivais. Ele tinha um fuzil e fogos de artifícios para estourar. No entanto, não lhe cabia entrar em confronto. Morria de medo do primeiro tiro, mas seu dedo preguiçosamente namorava o gatilho. Tinha 17 anos de idade e estava estreando na vigília.

 

João não conseguia trabalhar, porque nunca conseguia aceitar o que seus sonhos faziam. Sofria e não conseguia mais estudar, não podia falar com ninguém. Culpa de algo que não havia feito.

 

Uma tarde, pegou o carro e dirigiu para entrada de uma comunidade. Dirigia de faróis apagados, vidros fechados, óculos escuros e máscara no rosto.

 

Um suicida. Não escuta o grito de advertência e sente somente uma pancada no rosto. Apaga!

 

Formiga levanta o fuzil e avisa a comunidade que está sendo atacada; mas na rua, o único som depois do tiro, era da música no rádio do fusca cinzento. A sensação de culpa de algo que havia feito era intensa.

 

No carro o estofamento cinza se mescla ao rosado e vermelho do sangue escorrendo. João deitado, Formiga calado. Duas mortes diferentes no mesmo momento. Dois caminhos errados – dois remorsos que se chocam.

 

Formiga chora com a primeira morte. João não tem mais sonho.


Mauro Fisberg, 2024

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