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Antônia e os Cabelos da Joana

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 26 de out.
  • 7 min de leitura

Atualizado: há 3 dias

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano




Keturah Ariel, Mãos e Cabelo
Keturah Ariel, Mãos e Cabelo

Quando Joana morreu – dormindo e sem aviso prévio – Antônia estava no Rio de Janeiro e embarcou no primeiro voo disponível na ponte aérea, mal podendo acreditar que aquela mulher que a criara como filha, tinha partido assim de repente.

 

Já havia alguns anos que Antônia dividia seu tempo entre Rio e São Paulo, cidades onde tocava suas duas galerias de arte, a carioca, com um sócio, e a paulistana, sozinha. Depois de sua prisão nos tempos da ditadura militar brasileira e do, até hoje sem explicação, desaparecimento de seu namorado, que fôra preso junto com ela, em 1973, Antônia levava uma vida semelhante à de Joana, no quesito solidão: Jamais se casara, jamais voltara a amar qualquer homem que cruzasse seu caminho.

 

Joana fôra uma das mais famosas e festejadas advogadas de São Paulo e do Brasil. Era dona de uma imbatível intuição, tinha premonições e visões e tudo isso muito a ajudara nos processos que conduzia e que, quase sempre, ganhava, pois ela sempre sabia o que o seu oponente iria dizer, que argumentos usaria para se contrapor a ela. Mas ninguém jamais a vira tendo um caso amoroso com quem quer que fosse, homem ou mulher. Fôra fazendo fortuna, atendendo a clientes poderosos e a grandes empresas, em sua carreira profissional como advogada, e pôde assim proporcionar à Antônia a vida fácil e alegre de uma menina que crescera cercada de mimos, estudando nos melhores colégios, viajando pelo mundo, frequentando os locais mais caros e requintados da cidade, desde boutiques a grandes restaurantes da melhor gastronomia paulistana.

 

Talvez por isso mesmo, Antônia tenha se tornado uma moça fútil e politicamente alienada até que, aos 17 anos, conhecera o seu James Dean. Mas ele era um militante de esquerda e mostrou a ela um outro lado da vida: a fez caminhar pelo mundo das artes, da cultura, a fez compreender a beleza e a importância dos que, através de suas obras, desafiavam o regime ditatorial, fosse escrevendo canções, livros, reportagens, produzindo artes plásticas, sempre perseguidos pelos fantasmas da censura, do exílio, da prisão e da tortura. Portanto, fôra através da arte, da criatividade, da descoberta da riqueza imensa da cultura brasileira, que o seu James Dean despertara nela a consciência política. Foram presos, depois de dedurados por um militante que não resistira às bárbaras sessões de tortura do Dops, com um grupo de estudantes de esquerda, quando discutiam política e tomavam seu chopp no Bar Riviera, então reduto de artistas, ativistas e militantes.

 

Isso fôra há mais de 20 anos – reflete Antônia, fitando o céu e as nuvens pela janelinha do avião. E ela poderia ter tido o mesmo destino do seu James Dean, se não fosse pela interferência de Joana. Desesperada pelo sumiço de Antônia, Joana, depois de tentar tudo o que era possível em São Paulo, sem êxito, fôra procurar alguma ajuda em Brasília. Por sorte, encontrou um general que já tinha ouvido falar dela, a escutou e, uma semana depois, a C14 dos torturadores jogou a pobre da Antônia na calçada da casa dela... Foi há muito tempo, mas, como diria o médico psiquiatra Kalil Duailibi, para os sentimentos o tempo não existe.

 

E agora... Antônia não sabia bem como viveria sem a companhia, sem a sabedoria, sem a intuição e os acertados palpites de Joana, que sempre a acompanharam pela vida.

 

Antônia era então uma bem sucedida marchand, respeitada e admirada por artistas, críticos e colecionadores de arte. Poderia, é claro, andar com as próprias pernas, mas fariam falta os conselhos de Joana.

 

No velório, não tão concorrido como ela julgava que seria, a inacreditável surpresa de ver que os cabelos de Joana cresciam a um ritmo espantoso. Antônia os cortava e eles continuavam a crescer e crescer... Depois, as freiras do hospital onde se realizou a cerimônia, usaram aquele longos fios de cabelos avermelhados para confeccionar novas perucas para os santos e para as pacientes de câncer, que perdiam as madeixas pela quimioterapia. Antônia já ouvira dizer que os cabelos e as unhas dos cadáveres continuavam a crescer depois da morte. Mas aquilo! Aquilo era absolutamente espantoso...

 

O enterro de Joana foi bem mais disputado do que o velório. O caixão fechado visava esconder aquele estranhíssimo fenômeno do crescimento dos cabelos da morta, evitando os comentários que naturalmente surgiriam. Estavam lá alguns amigos, muitos clientes e o pessoal do escritório de advocacia onde, por quase cinco décadas, Joana trabalhara e do qual acabara se tornando uma das sócias. Foi o velho Magalhães, o sócio majoritário do escritório, quem lançou a primeira semente da dúvida na cabeça de Antônia. Almoçavam juntos, depois do sepultamento de Joana, quando ele disse:

 

-- Ela sempre foi, para você, menina, a melhor mãe que alguém pudesse desejar.

 

Antônia sorriu e respondeu: -- Sim, mas um pouco fria, embora muito sábia. Quando criança, sentia falta do carinho que via nas mães e filhas. Sabia que ela era apenas minha tia, que me adotara depois da morte dos meus pais. Devo muitíssimo a ela, que nunca me privou de nada, que me deu a melhor educação e todo o conforto material...

 

-- Joana nunca foi dada à demonstração pública de sentimentos. Mas isso não quer dizer que ela não os tivesse... – respondeu o velho advogado -- Engraçado... a morte de seus pais? Pensei que Joana a tivesse adotado depois da morte de sua mãe, prima dela. Lembro-me de que, antes de você nascer, ela se licenciara do trabalho para cuidar da sua mãe biológica, que estava muito doente e sozinha.

 

-- Estranho... – respondeu Antônia – Não sei de nada disso. Tia Joana sempre me disse que meus pais haviam morrido, os dois e mais os meus avós paternos, num desastre de automóvel na Via Anchieta...

 

-- É – disfarçou Magalhães – talvez eu esteja confundindo os fatos e as lembranças...

 

-- Sempre achei muito estranho que Joana não tivesse nem uma mísera foto da minha mãe, ou mesmo dos meus pais – disse Antônia – E quando eu a questionava por isso, ela dizia que os meus avós maternos tinham ficado com todos os pertences dela e que haviam morrido também, poucos anos depois e que ela, Joana, não tivera mais contato com eles... Eu me sentia rejeitada... pelos meus próprios avós, que nunca foram me visitar, que não se interessavam por mim...

 

Magalhães teve que fazer um grande esforço para não contar toda a verdade à Antônia. Afinal, ele prometera a Joana que nunca contaria a ninguém e estava consciente de que ele era a única pessoa que sabia do segredo.

 

Mais tarde, sozinha no apartamento, Antônia se pôs a fuçar nos pertences de Joana. Estava à procura de alguma coisa que ela própria não saberia dizer bem o que fosse. Mas a diferente versão da morte de sua mãe biológica, narrada por Magalhães durante o almoço, colocara alguma dúvida em sua mente. De fato, durante toda a sua vida, Joana jamais lhe contara qualquer história, qualquer acontecimento, qualquer coisa sobre a sua mãe... E aquela ausência de fotografias ou lembranças... Antônia procurava, mas não sabia o que estava procurando.  Viu antigas pastas de papeis com documentos relativos a tantos processos jurídicos que Joana conduzira; viu os muitos e muitos livros sobre esoterismo que repousavam na biblioteca, abriu o computador, vasculhou os arquivos, mas nada havia de pessoal... parecia mesmo que a vida de Joana se restringira ao trabalho, à sua atuação profissional. A única coisa mais particular que Antônia encontrou foi um arquivo de imagens – “Imprensa” – que reunia as muitas matérias de jornais e revistas que tinham sido publicadas sobre a atuação de Joana como brilhante advogada que fôra.

 

Quando, porém, estava reunindo as roupas de Joana para doação, encontrou, numa linda caixa de papelão forrada com tecido, um delicado embrulho de papel de seda. Lá dentro, mechas de cabelo, cuidadosamente dispostas. Cabelos?  Antônia estremeceu ante à recente lembrança dos cabelos do cadáver de Joana crescendo e crescendo durante o velório... As mechas eram de um castanho avermelhado, muito semelhantes aos cabelos da própria Joana... Então, de repente, lembrou-se: a velha lenda familiar dos misteriosos cabelos que apareceram na travessa de arroz no dia do enterro do pai de Joana... e de que Joana – ela mesma contava – cortara mechas de cabelo do pai para guarda-las como lembrança... Lágrimas vieram aos olhos de Antônia. Aquela caixinha, aquelas mechas de cabelo, guardadas ali desde 1941, havia 53 anos... Era uma relíquia, da qual ela jamais se desfaria.

 

Então decidiu que leria todos os livros esotéricos da biblioteca de Joana. Haveria de aprender com eles.

 

E, durante os anos que se seguiram, Antônia realmente aprendeu!

E, quanto mais aprendia, mais via surgir, em sua vida, a intuição. Era como se, de fato, os antigos poderes de Joana estivessem se transferindo para ela.

 

Um dia, já na década de 2020, uma amiga, a Beth, falou à Antônia sobre a bruxa mais sofisticada de São Paulo, a Madame Circe:

-- Você, Antônia, que está agora ficando milionária com suas galerias de arte e atribuindo seu sucesso a essa poderosa intuição que, há alguns anos, vem permeando a sua vida, deveria ir se consultar com a nossa amiga, a bruxa maior, a mais rica e sofisticada de São Paulo.

 

E ela foi. Como todos os que iam à casa de Madame Circe, ficou deslumbrada com a beleza dos jardins, com a elegância de todos ali e, depois de narrada brevemente a sua história de vida e depois de vistas as cartas e a bola de cristal, e depois de analisados os dados pela intuição de Mariana, que já era então uma espécie de assistente das consultas, Circe sentenciou:

 

-- Antônia, todos esses fatos postos, a única conclusão possível é a de que Joana, sua suposta tia, é de fato a sua mãe biológica!

 

 Antônia ligou, pelo What’sApp, para o velho Magalhães, que já estava beirando os 100 anos de idade, mas ainda lúcido. E perguntou:

 

-- Joana era minha mãe?

 

O velho senhor suspirou.

 

-- Prometi que não contaria..., mas você tem o direito de saber... Sim, ela era. Foi mãe solteira, num tempo em que isso não era aceitável... Espero que compreenda.

 

-- E o meu pai?

 

-- Um advogado carioca, que trabalhou um tempo conosco, Antonio Mariz e Muniz de Oliveira. Ele já morreu.

 

Antônia, agora aos quase setenta anos de idade, percebeu que, finalmente, poderia viver a vida que lhe restava, em paz.

 

Mas, desse dia em diante, seus cabelos começaram a crescer, muito, muito mais do que normalmente.




Isabel. Vc é incrível. Meu farol. Uma luz de potência e sabedoria

Minha amiga, vc é supeita... hahaha... Obrigada peça força!

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