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Joana, o Mistério dos Cabelos

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    SAUDE&LIVROS Fomm
  • há 6 dias
  • 34 min de leitura

Rennoir,, Cabelos
Rennoir,, Cabelos

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano



Joana tinha dezesseis anos e meio quando seu pai morreu. Estavam vivendo tempos mais duros, ela e toda a sua família, já que havia guerra na Europa e, por isso, os negócios da grande loja de artigos importados iam de mal a pior.

Os pais de Joana trabalhavam havia muitos anos no ramo, atendendo às mais ricas famílias da cidade, dominando a inacreditável burocracia e as muitas dificuldades com o tráfico marítimo para importar toda a sorte de quinquilharias com as quais os ricaços enfeitavam suas casas. A guerra, porém, tornara a atividade da família praticamente impossível e Joana estava vivendo, pela primeira vez, as dificuldades financeiras com as quais jamais sonhara. Isso acabara custando ao velho José Antônio, seu pai, uma dolorida enfermidade estomacal que os médicos não conseguiam debelar. Maria Cristina, sua mãe, corajosamente, enfrentava os tempos difíceis descobrindo uma atividade para a qual tinha certo talento e pusera-se a costurar modelitos copiados dos figurinos Burda que recebera, antes da guerra, da Europa e conseguia, com isso, prover parte das despesas da casa.

Joana tinha três irmãos, todos homens e mais velhos que ela. Os meninos também, diante da dificuldade, tinham sido obrigados a arranjar emprego no comércio e nos bancos, mas ganhavam pouco e, assim, a família vira baixar drasticamente seu padrão de vida. Mandaram embora os empregados e Joana fora obrigada a aprender a cozinhar, lavar, passar e limpar, pois sua mãe vivia ocupada, todas as horas do dia, às voltas com os tecidos, cortes e o barulhinho chato da máquina de costura.

José Antonio ainda abria sua loja, mas quase não tinha o que vender, já que fazia normalmente pouco estoque, importando quase tudo por encomenda.

A tristeza o matara – concluía a menina Joana, enquanto velava, na sala do casarão da família em Campos Elíseos, o corpo do pai. A úlcera do estômago supurara, matando-o rapidamente, ele, que na verdade nem mesmo era ainda um velho, tinha apenas 44 anos e agora estava lá, um cadáver esverdeado, cercado por flores de cheiro enjoativo que se mesclava ao ainda mais enjoativo odor da cera das velas enormes, acesas em torno do caixão.

Joana lembrava-se das grandes festas e jantares que, escondida atrás da porta de vidro, vira, de relance, acontecer naquele salão onde agora era velado seu pai. Devia ser já mais de três da madrugada, mas ainda muitos amigos, clientes e conhecidos, estavam ali, a velar o importador. Joana ficara orgulhosa quando vira chegar mesmo o prefeito de S.Paulo, Francisco Prestes Maia, para prestar as últimas homenagens a seu pai. Afinal, ele fora um próspero comerciante, respeitado e admirado por conseguir trazer os mais finos artigos de qualquer parte do mundo. Agora tudo acabara, refletia Joana. Teriam que viver do trabalho dos irmãos, ainda muito jovens e das costuras da mãe. A loja provavelmente seria vendida e talvez tivessem mesmo que se mudar para uma casa mais modesta. Não que ela se importasse muito com isso, só não queria ter que deixar de estudar. Em várias ocasiões, quando a família discutia por causa de dinheiro, ou mesmo quando decidiram mandar embora todos os empregados, alguns, inclusive, como a cozinheira, que estavam com a família há muitos anos, seus irmãos propuseram que tirassem-na da escola, já que a mensalidade das freiras era bastante alta. Graças a Deus, pensava Joana, sua mãe saíra em sua defesa dizendo que, hoje em dia, as mulheres também precisavam estudar e, já que não poderiam prever quanto tempo essa guerra duraria e quando, enfim, melhorariam os negócios de José Antonio, era muito bom que Joana se formasse no curso Normal, pois teria uma profissão digna para toda a vida.

Pensando nisso tudo, Joana fitava a face do morto. Alice, a velha cozinheira, viera ajudar sua mãe nesse momento difícil, e agora estava servindo os deliciosos pastéis que só mesmo ela era capaz de fazer. Maria Cristina chorava em silêncio, recebendo os pêsames, conversando com todos, sempre aos sussurros, como mandava a ocasião. Homens fumavam na varanda e suas mulheres alinhavam-se nas cadeiras, trocando fuxicos inaudíveis. A luz das velas proporcionava um estranho brilho aos cabelos cacheados e avermelhados do morto. Joana herdara os cabelos do pai, avermelhados e com lindos cachos, que ela realçava dormindo com rolos na cabeça. De repente, resolveu que guardaria para sempre uma lembrança dele e saiu de fininho da sala, indo ao quarto de costura da mãe para pegar uma tesoura. Depois foi ao seu quarto pegar um fino papel de seda que guardara dentro do seu diário e todos viram a menina, com lágrimas nos olhos, cortar pequenas mechas do cabelo do morto e embrulhá-las cuidadosamente no papel. Enquanto o fazia, Joana pensava num livro que lera e que falava que os cabelos e as unhas dos mortos continuam a crescer, assustadoramente, mesmo depois que eles estão enterrados. Por isso, concluía ela, os zumbis têm aquela horrível aparência, carne decomposta, caveiras à mostra e enormes cabeleiras.

Na manhã seguinte o fúnebre cortejo seguiu para o cemitério da quarta parada. Foi um enterro triste, mas concorrido. José Antonio tinha sido um homem bom, correto e simpático e acumulara amizades por toda a cidade. Algumas pessoas muito importantes estavam lá, mesmo alguns membros da alta sociedade paulistana. No casarão, sozinha, ficara a antiga cozinheira, que nem dormira e se encarregara de providenciar o almoço dos familiares que se reuniriam lá depois do enterro. Não era mais obrigação dela, já que tivera que deixar o emprego por causa das dificuldades de seus patrões. Mas Alice era uma boa alma e tinha muita gratidão por tudo o que a família fizera por ela, tendo mesmo ajudado a construir a casinha, num bairro distante, onde morava agora com suas duas filhas, operárias da indústria têxtil.

Passava da uma hora da tarde quando Maria Cristina anunciou aos parentes chorosos que o almoço estava servido. Estavam na casa, além de Joana e seus irmãos, quatro casais de tios e nove crianças. Sentaram-se à mesa da sala de jantar e Alice trouxe da cozinha as fumegantes travessas: arroz, feijão, salada e carne assada. Quando Maria Cristina meteu a colher na vasilha de arroz branco, todos viram, com espanto, que sob a primeira camada do alimento, estavam pequenos cachos de cabelos castanho-avermelhados, cuidadosamente dispostos, como se alguém os tivesse colocado lá. Eram mechas exatamente iguais aquelas que Joana embrulhara em seu rico papel de seda. A comoção foi geral. Como teriam ido parar, dentro da travessa de arroz, as mechas dos cabelos do morto? A cozinheira foi chamada, mas não havia mesmo explicação. Alice era séria e conhecida da família, ninguém suspeitaria de uma brincadeira de mau gosto da parte dela. Além disso, como seria possível conseguir cabelos assim, iguaizinhos aos de José Antonio?

Tia Marília, irmã do morto, começou a soluçar e foi retirada da mesa pelo marido. Joana subiu ao seu quarto e foi conferir o embrulho de papel de seda que guardara na gaveta do criado-mudo, junto ao seu diário: todas as mechas estavam lá. A esta altura dos acontecimentos, todos já tinham se levantado e ninguém mais queria comer nada. O arroz fumegava, cheio de pequenas mechas de cabelo.

Ninguém nunca conseguiu uma explicação plausível para o fato, testemunhado por todos e por muitos anos narrado em conversas familiares.

Só Joana pensava entender. Seu pai estava a dizer-lhe, além da morte, que estaria sempre com ela, que a protegeria e a guiaria nas dificuldades que a vida viesse a lhe impor.

As atenções de todos, porém, foram desviadas pelo Tio Mário, que se retirara da mesa e ligara o grande aparelho de rádio da sala e agora voltava correndo para anunciar que os Estados Unidos finalmente tinham se decidido a entrar na guerra. Houve um ataque dos japoneses à base americana de Pearl Harbor, no Havaí, e o presidente Roosevelt declararia guerra ao eixo.

- Getúlio não vai poder continuar namorando os nazistas! – gritava ele. – Agora o Brasil terá que ficar ao lado da América e nós vamos acabar lutando também, junto aos Estados Unidos, como queria o Oswaldo Aranha.

Ansiosos por se livrar da incômoda sensação de mistério que baixara sobre eles, com a história do cabelo no arroz, todos se puseram, até mesmo as mulheres, a discutir avidamente os rumos do conflito, com a eminente entrada dos americanos na guerra.

Era dezembro e Joana se lembraria por muitos e muitos anos que aquele fora o Natal mais triste de sua vida. Sua mãe, depois da missa de sétimo dia, pos a casa e a loja à venda, reuniu a família e os preparou para enfrentar uma nova vida, mais difícil e com menos dinheiro, mas se opos firmemente a interromper os estudos de Joana, mesmo pressionada pelos irmãos que não estavam dispostos a ver parte de seu minguado ordenado ser destinada a pagar os estudos da menina.

- O colégio de Joana vai sair dos vestidos que eu fizer! – quase gritara então Maria Cristina pondo fim à discussão.

Não ia ser fácil vender o casarão, naqueles tempos turbulentos de guerra. E a casa parecia ainda mais vazia sem a presença do pai. Já fora difícil encarar a ausência dos empregados, embora Joana , antes deles partirem, jamais imaginasse que sentiria mais falta deles, de suas tagarelices, do que os próprios serviços que prestavam. O clima, na casa era de tristeza e a harmonia que antes reinava se fora, como num passe de mágica.  Os irmãos de Joana discutiam acaloradamente as questões políticas, sempre brigando durante as refeições que Joana preparava, ao chegar do colégio. José Jr, o mais velho, acabara de se filiar ao clandestino e perigoso partido comunista, sem o conhecimento, é claro, da família. Antonio Carlos era a favor da instalação da base militar americana no nordeste brasileiro, o que soava para muitos como uma tentativa de ocupação do território nacional. Marcelo, o mais novo, defendia as posições germanófilas de Góis Monteiro e era briga todo dia. Joana se calava. Pensava apenas em terminar as tarefas da casa, enquanto sua mãe se matava entre os tecidos e as agulhas, para poder dedicar-se aos estudos. Estava terminando o curso Normal e pensava inscrever-se no ano seguinte, em segredo, para os exames de admissão à Faculdade de Direito do Largo São Francisco.

No início do ano de 1942, quando o governo getulista apertava ainda mais o cerco aos comunistas, através da maldita polícia política de Felinto Muller e se discutia a entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados e contra o eixo, a conversa girava em torno da incoerência do governo que se posicionava a favor da democracia no mundo exterior, mas matinha no país o autoritarismo e a intolerância do Estado Novo, José Jr. despediu-se da família dizendo que iria morar numa república de estudantes. Na verdade, preparava-se para entrar na clandestinidade da militância do partido comunista e, dessa forma, viram ainda mais reduzida sua renda mensal, já que o primogênito sumiu no mundo, saiu do emprego e deixou de contribuir com a sua parte para o orçamento familiar.

Em fevereiro, trocaram o casarão onde Joana nascera e passara toda a sua vida por uma casa bem mais modesta no bairro da Aclimação. Maria Cristina viu reduzida a sua freguesia mais abastada e, em breve, trabalhava apenas paras as mulheres do bairro, por quantias bem menores do que lhe pagavam as esposas dos ricos clientes de seu falecido marido. Joana, que cursava o último ano do Normal, conseguiu trabalho no período vespertino numa pequena escola particular do bairro, onde era auxiliar de classe, preparando-se para assumir, quando terminasse o curso, uma vaga como professora. Ficou assim, ainda com menos tempo para estudar, já que continuava realizando as tarefas domésticas para que sua mãe pudesse se dedicar exclusivamente à costura, que rendia cada vez menos dinheiro e mais trabalho. Da venda do casarão e de parte do rico mobiliário, sobrara uma certa quantia em dinheiro mas, todos os meses, Maria Cristina via-se obrigada a sacar uma pequena parte para completar as despesas da casa e do caríssimo colégio de Joana. Consolava-se pensando que aquele era o último ano de estudos da filha e que, no ano seguinte, certamente as despesas diminuiriam.

Joana, por sua vez, começou a perceber que muitas das moças, suas colegas, que antes a tratavam com respeito e amizade, agora pareciam se afastar dela e faziam piadinhas sobre o fato de ela ir à escola de ônibus, quando antes ia com carro e chofer. Dessa maneira, a jovem começou a se afastar cada vez mais das festinhas, das idas ao cinema e das fúteis conversas sobre moda e sobre os ídolos hollywodianos que faziam a sensação das moças casadoiras da época. No seu pouco tempo livre, nos fins de semana e à noite, antes de dormir, passou a dedicar-se à leitura. Frequentava a biblioteca municipal no centro da cidade e devorava volumes e mais volumes, desde os grandes clássicos da literatura mundial aos açucarados romances para moças.

Certo dia os cabelos castanho-avermelhados de um senhor que estava devolvendo um livro chamaram-lhe a atenção. O livro que ele devolvera era de Alan Kardec e ela, seguindo um impulso, pediu para levar o volume. A partir daí começou a se interessar por todo o tipo de literatura espiritualista. Leu Madame Blavatsky, tratados sobre o monismo, antigas obras esotéricas sobre ordens secretas como a Rosacruz e viu seriamente abaladas as suas até então tranquilas convicções cristãs.

Criada em colégio de freiras, sempre aceitara com tranquilidade e sem muita contestação os dogmas dos católicos. Ia à missa, aos domingos, com a família, achava tudo muito natural e acreditava viver praticando a palavra dos evangelhos. Tinha uma personalidade naturalmente generosa que combinava bem com os princípios da ação cristã e, até começar a mergulhar em outras convicções místicas, nunca se preocupara com nada disso. As ideias espiritualistas, no entanto, começavam a fazer com que ela contestasse muitos princípios da fé católica, mas nem por isso deixou de frequentar a Igreja com a mãe, aos domingos e nunca discutiu nenhuma de suas novas ideias em família. Afinal, já era suficiente o escândalo que causara ao ser admitida na Faculdade de Direito. José Jr., o irmão mais velho, que talvez fosse o único a concordar com sua intenção de tornar-se advogada, estava sumido no mundo, na clandestinidade do partido comunista, fato esse que tornara ainda mais triste a vida de Maria Cristina. Os outros dois irmãos, que trabalhavam e tinham abandonado os estudos depois de concluído o curso científico, achavam um absurdo que a única mulher da família fosse, afinal, para a faculdade, coisa que eles nem tinham cogitado, após a morte do pai.

No início de 1943 começaram as aulas na faculdade. Joana teve que enfrentar não apenas a oposição dos irmãos, mas também a dos próprios colegas. Muitos a hostilizavam abertamente, dizendo que ela deveria ir procurar um marido, voltar para a cozinha e para o tanque de roupas e outras pérolas do machismo vigente. Alguns professores também não escondiam a sua má vontade com a presença feminina em sala de aula, mas ela enfrentava tudo, esforçando-se por alcançar um alto desempenho nos estudos, nas provas orais e escritas, nos exames. Afinal, ela não era a única mulher a frequentar aqueles bancos escolares. A primeira se formara ainda no começo do século, em 1902, Dra. Maria Augusta Saraiva, e naquela década de 1940 formaram-se por aquela escola 76 mulheres, uma média de mais de sete mulheres por ano.

Ainda em maio de 1943, Marcelo, o irmão mais novo, anunciou seu casamento e levou a noiva, Aurora, para que a família conhecesse. A moça estava grávida de quatro meses e, por isso, o casamento realizou-se no mês seguinte, coberto de discrição. Os pombinhos alugaram uma casa na Mooca, próxima ao trabalho de Marcelo, que era agora escrevente numa grande fábrica da região. Maria Cristina temia pelo sucesso da união apressada pela gravidez de Aurora e pressionada pelo salário modesto de Marcelo, ainda em começo de carreira. Também em Junho desse ano foram abertas as inscrições para voluntários que desejassem integrar a Força Expedicionária que o Brasil formava para, afinal, lutar na guerra. Antonio Carlos alistou-se, para desespero da mãe e desprezo do irmão, que comungava as ideias nazi-facistas.  Em 16 de julho de 1944, ele estava entre os pracinhas que desembarcaram do navio General Mann, em Nápoles, sob o comando de João Batista de Morais.

Assim, viram-se as duas mulheres, mãe e filha, sozinhas e dependendo de seus próprios trabalhos para prover as necessidades do dia a dia.

O tempo foi passando e a vida continuava igual: a pequena casa da Aclimação permanecia limpa e arrumada, graças ao esforço redobrado de Joana que se dividia entre os estudos, as leituras espiritualistas, as aulas que ministrava para os pequeninos na escola do bairro e o estafante trabalho doméstico. Maria Cristina a apoiava em tudo e tornara-se uma das mais conhecidas modistas das imediações, tendo mesmo recuperado alguma clientela mais rica, que se dobrava ao talento da costureira, que atingira um corte a acabamento impecáveis.

Joana tornara-se tão meiga e cordata, enfrentando a discriminação na faculdade e fortalecendo-se nas convicções espiritualistas, que acabara ganhando a simpatia de Hélio Mota, presidente do Diretório XI de Agosto, na faculdade, que permitia que ela secretariasse as reuniões. Hélio foi preso pela polícia da ditadura getulista em dezembro de 1943, o que gerou uma passeata estudantil de protesto, fortemente reprimida, com um saldo de 25 feridos e dois mortos. Joana politizava-se e ia aos poucos ganhando o respeito de alguns colegas de turma, que já não ridicularizavam, como antes, a sua pretensão à carreira jurídica. Na verdade, o que levara Joana a aproximar-se da ala de militantes do diretório da escola foram a esperança e a intuição. Ela acreditava que, pela mão dos estudantes que lutavam contra a ditadura, talvez conseguisse notícias do irmão desaparecido na vida clandestina do partidão. Os estudantes, porém, eram, embora se tratasse de escola pública, de classe média alta e classe alta e pouco contato direto tinham com membros do partido comunista, na sua maioria operários, e Joana só voltaria a saber de José Jr. em 1945, quando, em 18 de abril, foram anistiados por Getúlio, todos os presos políticos, incluindo Luiz Carlos Prestes.

Um jornalista do Estado de São Paulo, encarregado de cobrir as atividades estudantis, em conversa com Joana, lhe dissera que, sem dúvida, esse José Jr. que ela procurava era o famoso Sebastião, codinome que assumira na luta política, responsável pela gráfica clandestina que caíra nas mãos do Dip, entregue por um dos presos que não resistira às bárbaras torturas da polícia política. Estaria, portanto, ou preso ou morto.  Fora um duro baque para Maria Cristina: poucos antes a família recebera a notícia da morte de Antonio Carlos, que perecera na Batalha de Monte Castelo. Agora seu outro filho talvez tivesse morrido, nessa outra guerra escondida que se travava nas ruas de S.Paulo, entre a ditadura de Getúlio e seus opositores. Por isso Joana decidira estar lá, na porta da cadeia, quando os presos fossem afinal libertados. Teria que encontrar o irmão, já que este não sabia sequer o novo endereço de sua família. Por isso também decidiu ir até a sua antiga residência, para deixar lá o novo endereço da Aclimação. Depois de muito custo foi recebida por uma governanta alemã, que se apiedou dela e guardou o endereço para fornecê-lo a José Jr., caso ele aparecesse por lá. Final da tarde, voltava para casa quando sentou-se no banco do bonde, ao seu lado, uma moça de aparência frágil, cabelos louros e expressão triste. Joana olhou para ela e de repente, quase sem querer, disse:

- Moça, não se preocupe. Você já está grávida. Será uma menina e vai se chamar Helena, como a sua avó.

A moça deu um pulo, de susto:

- Quem é você? Como sabe o nome da minha avó?

Joana também parecia desconcertada, afinal nem sabia porque dissera aquilo à desconhecida.

- Desculpe-me – balbuciou – Eu não sei de nada. Apenas, quando a vi sentar-se ao meu lado, me ocorreu dizer-lhe isso.

A moça levantou-se, confusa, e foi sentar-se num lugar vago, mais para a frente do veículo.

Daquele dia em diante, Joana começou a ter as visões.

No bairro, Joana era vista com desconfiança e desdém. Não tinha amigas e as outras moças a julgavam pernóstica e com complexo de superioridade. Vivia enfiada nos livros, nunca saía de casa para se divertir, indo, em raros domingos, apenas às matinês de cinema com Maria Cristina. Ninguém ouvira falar em pretendente ou namorado. Também, comentavam as vizinhas, quem é que ia querer namorar e casar com uma mulher que se masculinazava, pretendia ser advogada, pregava a igualdade entre os sexos e dizia que não bastava as mulheres votarem, precisavam também ter independência econômica e parar de depender do dinheiro dos maridos? Era mesmo uma cretina, concluíam as fuxiqueiras, que mal sabia quem era Carmem Miranda ou Eros Volúsia e não colecionava, como todo mundo, retratos dos grandes artistas de Hollywood. Maria Cristina também se preocupava com a solidão da filha: estudando entre homens, da faculdade para casa, de casa para o trabalho e, nos sábados, em vez de se divertir, cuidava das coisas domésticas.

Joana ria. Estava feliz assim, dizia para a mãe, tentando tranquilizá-la. Aos domingos, iam à missa de manhã e, quando Marcelo e Aurora e o pequeno José Antonio Neto não vinham para o almoço, pegavam, mãe e filha, um cineminha à tarde ou passeavam no parque do Trianon, na Avenida Paulista, saboreando sorvetes.

Foi num desses passeios que aconteceu a segunda visão de Joana. Estavam sentadas num banco e Joana olhava para as árvores quando, de repente, viu as copas cobrirem-se de fumaça, começou a ouvir disparos e viu a si própria no meio do campo de batalha. Antonio Carlos estava lá, muito magro e muito sujo, com seu uniforme militar e ela viu claramente o irmão ser atingido e tombar. Gritou.

- O que foi, Joana? – perguntou assustada Maria Cristina.

- Nada não, mãe – respondeu ela controlando a emoção – foi um bichinho que me picou.

Na segunda feira, logo na primeira aula, viu um vulto negro que insistia em cobrir a imagem do velho professor. À noite o professor estava morto: infarto fulminante.

Na terça feira, a faculdade de luto, era o esperado dia da libertação dos prisioneiros políticos. Os jornais noticiavam discretamente, mas havia uma multidão esperando pela saída de Prestes. No meio do tumulto, Joana tentava correr para lá e para cá, querendo avistar o irmão. Todos saíam e abraçavam seus parentes que os esperavam. Eles também, os ex-prisioneiros, pareciam estar vindo da guerra. Magros, a pele esverdeada, a barba muitas vezes crescida. Finalmente o avistou! Ele caminhava devagar, mancando de uma perna, estava também com a barba por fazer e muito magro. Joana abriu caminho, aos solavancos, por entre a multidão e, depois do que pareceu-lhe uma eternidade, atirou-se sobre ele num abraço.

José Jr. parecia desconcertado, afastou-a de si e, segurando-a pelos ombros, frente a frente, afinal a reconheceu.

- Mana! Você se tornou uma linda mulher!

Joana chorava.

- Venha – disse a ele – Vamos para casa.

No bonde, de mãos dadas, pareciam encontrar dificuldade em falar. Joana olhava, com o rabo dos olhos, para a figura envelhecida e maltratada do irmão e não encontrava nada para dizer. Ele olhava para as ruas, com olhos inquietos, como a tentar reconhecer a paisagem.

Só quando chegaram em casa e Maria Cristina, debulhada em lágrimas, deu um longo abraço no filho que julgara perdido, foi que ele afinal disse alguma coisa:

- Mãe, vamos entrar, que a vizinhança já está reparando...

Os anos de clandestinidade haviam treinado a percepção de José Jr. Sempre fugindo da polícia, tinha olhos e ouvidos acostumados a observar tudo o que acontecia ao redor. E a vizinhança logo estava mesmo comentando: quem seria aquele homem, quase um mendigo, que chegara com Joana?

A alegria de Maria Cristina, por reaver o filho, durou pouco. Preocupava-se com ele, que se tornara um homem fechado, muito calado, quase depressivo. Saía cedo de casa e só voltava altas horas da noite. Não quis falar sobre a prisão ou o que sofrera, mas as sequelas da tortura eram evidentes: mancava de uma perna e, como seu pai, passara a sofrer do estômago. Certa noite, dias depois da volta do irmão, Joana sonhou que ele era a estátua do Cristo, no alto do corcovado. Quando ele voltou para casa, perto da meia noite, encontrou-a estudando na mesa da sala. Num canto da mesa estava posto um prato e talheres, e o seu jantar esperava no forno. Joana esquentou-lhe a comida e, quando o servia, contou-lhe o sonho.

- Não está fora de propósito. Eu devo me mudar para o Rio de Janeiro em breve, estou apenas esperando as ordens.

- Ordens do partido? – perguntou ela.

- Sim. Agora que Prestes namora o Getúlio – respondeu ele em tom de desagrado – vamos fundar no Rio um jornal, dirigido por esse menino mineiro metido a poeta, o Drummond, e eu vou trabalhar lá com eles. É o começo da realização de um velho sonho para mim, que passei tantos anos imprimindo jornaizinhos clandestinos. O nosso jornal vai se chamar A Tribuna do Povo.

- Mamãe vai ficar triste. Ela já reclama que quase não o vê e você sumiu no fim de semana, nem veio conhecer seu sobrinho.

- Eu estava ocupado – protestou ele.

- O partido é mais importante para você do que a nossa família.

Surpreendentemente ele teve um gesto de carinho. Levantou-se da mesa, limpando a boca no guardanapo, e deu um beijo desajeitado na testa da irmã.

- Procure entender, Joana. Estamos lutando pelo nosso povo, pela gente brasileira, que é a nossa verdadeira família.

Anos depois, quando José Jr. foi morto pela ditadura militar, que se instalaria no país pelo golpe de 1º de abril de 1964, Joana se lembraria daquele beijo e de seu sonho. Afinal, tinham baleado seu irmão na subida do Corcovado, numa das primeiras e desastradas ações repressivas do recém instalado regime. A imprensa, embora não ainda sob censura oficial, o que só ocorreria uns anos mais tarde, calou-se sobre o episódio e Joana só ficou sabendo da morte do irmão porque aquele seu amigo jornalista, que conhecera nos tempos da faculdade, telefonou para ela, marcou um encontro num café do centro da cidade e lhe contou. José Jr. figurou por muitos anos na lista dos desaparecidos do regime, mas Joana sabia, por causa do amigo jornalista e também de seu sonho, que ele estava realmente morto.

José Jr. passara apenas duas semanas em casa, depois que fora solto pela anistia de Getúlio. Mas fora tempo suficiente para que a vizinhança comentasse que Maria Cristina tinha um filho comunista e, de repente, suas freguesas habituais pararam de fazer vestidos com ela. Um ano depois, viviam apenas do salário de professora de Joana e resolveram, antes que o que sobrara da venda da velha loja e do casarão acabasse, alugar a casa da Aclimação e mudar-se para um pequeno sobradinho na Mooca, perto da casa de Marcelo e Aurora. A vida de Joana ficou ainda mais difícil. Ela estava no penúltimo ano da faculdade, ainda dava aulas no colégio da Aclimação, mas agora precisava tomar dois bondes para voltar para casa no fim do expediente. Maria Cristina colocou o figurino na janela do sobradinho e conseguiu algumas freguesas, porém o bairro era muito pobre e ela costurava por um terço do preço que cobrara quando morava na Aclimação.

Quando Joana se formou, no final de 1948, a vida delas tinha novamente mudado. Havia quase um ano Maria Cristina vinha se tornando cada vez mais calada e mais religiosa, fazendo parte das Filhas de Maria da paróquia local e dedicando muito de seu tempo ao trabalho na Igreja. Joana já trabalhava, como secretária, num grande escritório de advocacia na Praça da Sé e Marcelo recebera sucessivas promoções na fábrica de tecido, sendo agora seu gerente geral e considerado o braço direito do patrão. Portanto, estava se preparando para mudar-se para uma casa que estava construindo lá para os lados de Santo Amaro. Joana, por sua vez, queria voltar para a casa da Aclimação, que ainda estava alugada, pois julgava que já poderiam dispensar a diferença do preço do aluguel do sobradinho da Mooca, mas Maria Cristina não queria nem ouvir falar no assunto. Odiava a vizinhança da Aclimação que a discriminara por causa do filho comunista (de quem, nessa época, raramente tinham notícia) e que discriminara sua filha apelidando-a de advogada bruxa.

Depois que José Jr. partira para o Rio, Joana ganhara a fama de vidente, no bairro. Inadvertida e ingenuamente começara a revelar aos vizinhas os sonhos e as premonições que tinha sobre a vida de cada um deles, embora pouco soubesse da vida dos outros. Mas sempre acertava e a vizinhança passou a respeitá-la e temê-la, ao mesmo tempo. Houve até um dia em que o padre da paróquia local a chamara para tentar convencê-la a vir com mais frequência à Igreja e rezar para que Deus a livrasse das tais premonições que, dizia ele, eram artifícios do Grande Inimigo, o demônio. Foi também procurada, meses mais tarde, por um pai de santo que tinha um dos poucos terreiros de candomblé da cidade, no Cambuci. Ele tentava convencê-la a se tornar uma filha de santo já que julgava que a moça era uma médium e deveria ser treinada na arte dos espíritos. Joana apenas ria dessas possibilidades, como rira de uma das antigas freguesas de sua mãe que, impressionada com os poderes telepáticos dela, queria levá-la a uma sessão espírita de mesa branca. A esta senhora, que mal conhecia, Joana dissera, enquanto a freguesa estava em sua casa para provar um vestido, que o marido dela não deveria aceitar a sociedade que estava lhe sendo proposta.

- O que você sabe sobre isso? – perguntara espantada a senhora.

- Nada não. Mas olhando bem para a sua figura no espelho, me veio esse pensamento de que o seu marido vai se associar nos negócios com um homem inescrupuloso e eu achei por bem alertá-la.

A tal freguesa de Maria Cristina, impressionada com a determinação da moça, fora conversar com o marido e esse acabou descobrindo que o potencial sócio dera um golpe num outro negócio, na Bahia, e não concretizou a sociedade.

Em vez de ficar agradecida, e ante a recusa de Joana de ir com ela a tal sessão espírita, a tal mulher ficou com muito medo e nunca mais levou nenhum corte de fazenda para que Maria Cristina lhe confeccionasse vestidos.

Vendo a mãe perder mais uma importante cliente, Joana resolveu calar-se. Olhava para as pessoas, via coisas, vinham-lhe pensamentos, mas ela nada dizia.  Continuava com suas leituras esotéricas, continuava frequentando a Igreja com a mãe aos domingos, embora o padre olhasse torto para ela, e nunca teve curiosidade de procurar grupos espíritas ou frequentar qualquer tipo de seita ou crença. Mantinha as aparências, mas às vezes questionava-se porque pensava que se tinha o dom da visão deveria usá-lo para ajudar as pessoas. Porém, meditava, as pessoas pareciam não gostar dessa interferência em suas vidas e sempre se afastavam dela por isso.

Quando, afinal, concluiu o curso de direito, em 1949, Joana esperava obter uma promoção e passar a fazer parte do corpo de advogados do escritório. Mas nada acontecia. Os meses corriam e ela continuava como secretária. A mãe começou a se queixar de dores e mazelas físicas e, em janeiro de 1950, morreu de um câncer no pâncreas. No enterro, Joana teve um desagradável bate boca com o irmão Marcelo que se queixava da ausência de José Jr. nessa hora difícil. Afinal, dizia ele, não tinha mesmo mais nenhum irmão. Antonio Carlos morrera na guerra e José Jr. estava morto para ele, já que aparentemente a sua devoção ao maldito partido comunista era maior do que seus sentimentos com relação à própria família. Joana saiu em defesa do irmão e teve que ouvir insultos como ela ser apenas uma velha solteirona e frustrada, com tendências esquerdistas, uma mulher formada que continuava a ser apenas uma secretária e nem sequer conseguira arrumar um marido.

Marcelo e Aurora estavam muito diferentes, então. Desde que se mudara para a sua nova casa em Santo Amaro, a família só prosperava. Aurora estava de novo grávida e daria finalmente  um irmãozinho a Jose Antonio Neto. Eles tinham, além da casa enorme, um belíssimo automóvel e Joana desconfiava da prosperidade do irmão, mas, por mais que se esforçasse, sua visão não se manifestava com relação a isso. No entanto, ouvira falar de lucros auferidos com delações sobre o movimento operário, nos tempos da ditadura de Getúlio e temia pela integridade moral de Marcelo.

Afastaram-se muito, os dois irmãos, depois da morte de Maria Cristina.

Joana colocou a casa da Aclimação a venda e dividiu a receita, quando o negócio se concretizou, com o irmão. Abriu uma caderneta na Caixa Econômica Federal e depositou, em nome de José Jr, a parte que lhe cabia na venda, já que perdera completamente a pista dele. Com o que sobrou, deu entrada num pequeno apartamento, no centro da cidade, próximo ao seu trabalho e se matava de trabalhar fazendo traduções do inglês (que aprendera sozinha, estudando por correspondência) para uma editora, além de seu trabalho no escritório.

Em 1951 foi promovida a assistente jurídica e passou a realizar trabalhos burocráticos no Fórum, assistindo aos advogados, todos homens, do escritório. Achava uma injustiça, pois se sabia capaz de defender grandes causas, mas não lhe davam essa oportunidade e ela sabia também que os juízes olhariam com desconfiança para uma advogada mulher. Foi nesse ano que o Dr. Marin da Veiga uniu-se ao escritório onde ela trabalhava. Já o conhecia, dos tempos da faculdade, pois ele estava um ano à frente dela na escola. Joana, que jamais tivera um namorado, foi presa fácil do assédio dele. Começaram a namorar, ela se apaixonou violentamente e, certa noite, aceitou sair do teatro e ir para uma garconiére que ele, de família muito rica e tradicional, mantinha na rua Maria Antônia. Tornaram-se amantes e Joana descobriu a alegria do sexo. Assim foi durante um ano inteiro e, por mais que se esforçasse, a moça não conseguia mais ter visão alguma sobre ninguém. Pensando que o dom a abandonara porque ela não o colocara a serviço dos outros, Joana conformava-se e vivia feliz com as viagens que faziam nos fins de semana, indo frequentemente a Santos e ao Rio, frequentando teatros, cinemas e boites.

Joana vivia sozinha em seu pequeno apartamento, que Veiga recusava-se a frequentar. Já estavam juntos há mais de um ano e ela se perguntava quando, afinal, ele resolveria apresentá-la à família. Numa noite de inverno, em seu ninho de amor, ele a fitara, muito sério:

- Joana, minha amada – dissera então – o que eu tenho para dizer a você não é nada fácil.

Ela sentiu, talvez pela força da entonação dele, um aperto no peito e viu, num relance, a figura de uma moça muito jovem e bonita, de suaves e longos cabelos castanhos.

- Minha família – continuou ele – decidiu que eu devo me casar com a herdeira de uma indústria cuja família frequenta nossa casa há muitos anos. Eu a conheço desde criança, ela é boazinha e dará uma ótima esposa. Mas não é boba, sabe que nós temos um caso e exigiu que isso termine agora.

Joana estava desconcertada. Então ele não a amava? Tinha usado e ia jogar fora? Lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto.

- Olhe, meu bem, eu te amo, mas preciso casar com ela. É um negócio, você entende? Uma união de interesses.

Joana soluçava.

- Joaninha, meu amor, tente compreender... Olha eu não vou desamparar você. Hoje mesmo fui à imobiliária e quitei o seu apartamento. Você é jovem, bonita, independente e tem um ótimo emprego. Com o apartamento pago, estará segura. Eu vou morar com ela no Rio, onde estão os negócios da família dela e vou trabalhar com o pai dela, estamos unindo as nossas empresas, a da minha família e a da dela. A vida é assim mesmo. Logo você encontrará outro homem, pode se casar e constituir família...

Joana não disse uma palavra. Nunca mais dirigiria nenhuma palavra a ele, enquanto vivesse. 

Em meio à tristeza dos dias que se seguiram, houve uma alegria profissional. O escritório finalmente permitiu que ela assumisse uma causa pequena, de despejo imobiliário. Durante a audiência, ela sabia exatamente o que diria o advogado da parte contrária antes mesmo dele abrir a boca. Acabou fechando um acordo vantajoso para seu cliente e o escritório festejou a sua vitória. Dali em diante, começou a conquistar o respeito dos colegas e não perdeu nenhuma das causas que lhe foram entregues.

Três meses se passaram e suas regras não vinham. Certa manhã acordou enjoada e viu uma pequena menina, um bebê, de cabelos castanho-avermelhados, chorando num canto do quarto. Então soube que estava grávida. Antes mesmo de ir a um médico, imaginou as consequências dessa gravidez. Mães solteiras não eram aceitas pela sociedade e ela sabia que teria imensos problemas, inclusive no trabalho. Pensou em abortar, mas sentiu que não teria coragem para tanto. Por isso, passou os primeiros meses de gravidez usando cintas cada vez mais apertadas, tentando esconder a barriga que crescia. No sétimo mês, pediu férias do escritório, mentindo que precisava ir ao Rio para resolver problemas familiares e queria ficar fora por dois meses.

Não tinha problemas financeiros, já que guardava grande parte do dinheiro que recebia a cada causa ganha e foi para Santos, instalou-se numa pensão,dizendo ser viúva, o marido morto num acidente. Encontrou um bom médico e teve parto normal na Santa Casa, dando à luz a uma meninazinha que, surpreendentemente, nascera já com os cabelos castanho avermelhados da mãe. Voltou para S.Paulo logo depois, com a recém-nascida nos braços. Contratou uma empregada, encarregada de olhar a menina e, no escritório, que a recebeu de volta com entusiasmo, disse que trouxera a filha de uma irmã carioca, que morrera de parto, para criar. Registrou a menina como filha de pai desconhecido e com o nome de Antonia.

Era uma menina alegre, de bom gênio e foi crescendo e se revelando extraordinariamente bela. Enquanto a menina crescia, crescia também a fama de Joana no fórum. Advogados experientes tremiam quando tinham que enfrentá-la. Em cinco anos, era sócia do escritório onde entrara como simples secretária. De vez em quando, ouvia falar no irmão Marcelo que também prosperava e agora tinha o seu próprio negócio de importação de tecidos, de uma certa maneira seguindo os passos do pai.

Nunca mais, depois da morte da mãe, tivera contato com ele ou com sua família e ele nem desconfiava da existência de Antonia.

A menina crescia sob os cuidados da empregada e tinha um respeito medroso por Joana, que nunca a amamentara e a quem ela chamava de tia, julgando mesmo ser órfã de pai e mãe.

Alguns homens tentavam se aproximar de Joana naqueles tempos, mas ela fechara o coração e julgava não precisar de homem algum para viver. Tinha cada vez mais sucesso na profissão e também nunca revelou a ninguém as premonições e os pensamentos intuitivos que eram de grande valia na condução dos processos que estavam em suas mãos. Sabia sempre quando o cliente estava mentindo e o desmascarava facilmente. Podia prever os argumentos que seriam usados pela parte contrária. Quase sempre adivinhava as intenções dos juízes, antes que estes se manifestassem.

Assim, graças ao seu grande conhecimento dos meandros da lei e à sua infalível intuição, acumulou mais e mais vitórias forenses e ajudou o já grande escritório a crescer ainda mais. Recusava-se a ter vida social, fugia dos convites e só comparecia às comemorações de grandes datas das famílias de seus sócios, pois julgava sua obrigação profissional. Nos fins de semana, saía com Antonia, levava-a a parques e a museus, embora a menina ainda fosse muito pequena.

Quando Antonia completou sete anos, Joana matriculou-a num colégio particular e contou à diretora da escola, que conhecera quando ainda era professora como ela, a versão que contava a todos: a menina era filha de uma irmã, uma tragédia familiar, que morrera e que fora mãe solteira. A diretora aceitou a matrícula, embora contrariando a norma vigente da escola, que não admitia normalmente bastardos. Não oficialmente, mas para estes nunca havia vagas.

Foi nessa época que Joana descobriu algumas edições clandestinas, em espanhol, dos evangelhos apócrifos. Neles ficou sabendo que Jesus fora um moleque levado e que usara seus poderes de filho de Deus para impor seus caprichos aos amiguinhos, sendo sempre muito bem repreendido por Maria.

Aprendeu ainda que o Mestre estudou com os celtas, na juventude, conhecendo os segredos mágicos dos druidas e das sacerdotisas, que possuíam, como Joana, a Visão.  Descobriu também que Maria teve outros filhos e que, antes de morrer, reuniu todos os apóstolos ao seu redor, tendo sido eles transportados por uma nuvem, de onde estavam, para Belém.

Desde a morte da mãe, Joana parara de frequentar a Igreja, pois essa já não lhe dizia nada. Sua espiritualidade alimentava-se das muitas e muitas leituras esotéricas que, ela julgava, fortaleciam ainda mais os seus dons de visão e telepatia. Essa era a maior razão que fazia Antonia temer a mãe. Frequentemente Joana desmascarava a menina em suas mentiras de criança e sabia exatamente o que se passava na cabecinha da filha.

Terminava o ano de 1959 e o Brasil vivia o clima de progresso instalado pelo governo de Juscelino Kubitschek. A novacap, como era então chamada a Brasília em construção, seria inaugurada em abril.

Num final de tarde, Joana foi chamada pelo sócio:

- Você deve estar lembrada do Dr. Marin da Veiga – disse ele. Como você sabe, ele se mudou para o Rio, onde dirige uma grande empresa que está com sérios problemas fiscais. Nos pediu ajuda e achei que, se você não tiver problemas em passar uma temporada lá, poderia cuidar do caso. Pode levar a sua sobrinha e a empregada e se instalar num apartamento que tenho em Copacabana. É confortável e a menina pode gostar de uns tempos na praia. Em dois ou três meses, acredito, você poderá colocar as coisas em ordem no departamento jurídico da empresa do Marin e voltar antes das férias escolares terminarem. O que acha?

Joana ficou branca. Sentiu novamente todo o desamparo que sentira quando Marin a deixara. Sentou-se e fitou diretamente os olhos de seu ex-patrão, agora sócio. Como se, de repente, seus poderes telepáticos tivessem se transferido para ele, foi ele quem falou:

- Você andou saindo com o Marin quando ele trabalhava aqui, há uns oito anos, não foi?

Joana pôde apenas balançar a cabeça numa afirmativa.

- Não se sente confortável para essa missão? Ele é o pai de Antonia, que você afirma ser sua sobrinha?

Joana sorriu. Olhou com carinho para ele, que era o mais próximo do que ela tinha de um pai. Afinal, com ele aprendera os segredos práticos da vida profissional, com ele tivera a oportunidade de se transformar de uma simples secretária em sócia do escritório, numa advogada de sucesso e respeito.

- Desculpe, Magalhães – disse por fim – Eu não seria capaz de rever esse sujeito e muito menos de ajudá-lo nos problemas fiscais de sua firma.

- Seja sincera, Joana. Pode me contar. Ele é o pai de Antonia?

- Sim.

- Ele sabe?

- Não.

- Sempre desconfiei que essa menina era sua filha. Como você conseguiu esconder tão bem a sua gravidez?

- Com cintas muito apertadas – conseguiu ela dizer, quase rindo.

- Por que nunca me contou? Pensei que, ao longo dessa década em que nos conhecemos, eu merecesse a sua confiança.

- Sabe, Magalhães, eu sou uma pessoa solitária por opção. Me satisfaço com os meus livros, com meus passeios com Antonia e, principalmente, com meu trabalho. Ninguém sabe que Antonia é minha filha, mas não há mesmo ninguém para saber.

- Você não acha que o pai tinha o direito de saber?

Joana pulou da cadeira:

- De jeito nenhum! E não se atreva você a...

- Calma, Joana, se é o seu segredo e você o confiou a mim, pode ficar tranquila, você pode confiar em mim, sabe disso, não sabe?

 

Ela sabia. Aliás, ele era uma das únicas pessoas nas quais Joana ainda confiava. Ela nem mesmo percebera que confiança era um sentimento que há muito foi se esvanecendo lentamente de dentro de si. Confiava, sim, com uma fé absoluta, em sua própria intuição que nunca lhe falhara, desde aquele dia que descobrira a gravidez da moça no bonde, e que sempre lhe indicara o caminho a seguir, mesmo que estes parecessem absurdos à luz da razão pura e simples. Aquele velho advogado, seu mestre e benfeitor, era talvez o único ser humano em que Joana ousaria depositar confiança.

Tornara-se, sem se dar muito conta disso, uma solteirona solitária. Não mantinha relações sociais e a sua única alegria eram as leituras esotéricas, que ela acreditava que a fortaleciam. Foi na época da construção de Brasília que compreendera as duas leis fundamentais, uma delas o princípio Rosacruz da manifestação de tudo, a do triângulo, que diz que todas as coisas precisam de três elementos para poder existir: um se contrapõe a outro e gera um terceiro. Homem, mulher, criança. Corpo, mente e alma. A outra lei era expressa na máxima “O que está em cima é igual ao que está embaixo”, que Joana logo identificou com um trecho da oração cristã: assim na terra como no céu.

Seus pensamentos, julgava ela, eram seus melhores companheiros e eles se geravam nos livros, seus inseparáveis amigos, eles sim. Assim como suas plantinhas, que cultivava há anos na sacada do apartamento.

Nem mesmo por Antonia conseguia nutrir um sentimento de amor. A menina fora para ela apenas um transtorno do destino e a gravidez, um inferno físico apertado nas cintas elásticas. De tanto mentir que Antonia era sua sobrinha, quase acabou acreditando nisso e mantinha, com relação à menina, uma atitude de tia e tutora, providenciando para que nada lhe faltasse, dando a ela educação formal e social, mas com uma certa frieza, um fio de gelo que invadira o coração de Joana ao longo de sua vida.

Por isso agora estranhava a ternura que sentia pelo amigo.

Num gesto bastante incomum para ela, pegou afetuosamente na mão dele, por sobre a mesa que os separava e disse:

- Sei que em você eu posso confiar.

 

Depois dessa conversa, Joana passou a sentir uma grande harmonia no escritório, como há anos não havia ou talvez nunca tivesse havido.

Mesmo quando as causas lhes davam grandes preocupações, tudo era resolvido com serenidade.

Os anos 1950 haviam passado como uma grande revoada de esperanças. A era Juscelino, a novacap, a ideia do progresso, do desenvolvimento tomava conta de todos no Brasil.

Joana, quase sem perceber, foi ficando rica, resultado da vida simples que levava, combinada ao seu crescente sucesso e a causas cada vez mais altas que defendia.

Antonia tornou-se moça em meio aos conturbados anos sessenta. Com a renúncia de Jânio e a posse de João Goulart, acabou acontecendo o Golpe Militar de 64 e o país mergulhou na ditadura. Antonia vivia como uma menina rica, frequentando os melhores lugares, passando férias em Campos do Jordão ou no Guarujá, com chofer à disposição e vivia enfernizando Joana para que se mudassem para um apartamento maior.

Joana cedeu em 1969 e comprou um lindo imóvel num velho prédio da Avenida São Luiz. Apartamento de luxo, prédio construído nos anos 1940 para abrigar a elite, era um dos poucos edifícios que pareciam resistir ao ataque dos estabelecimentos comerciais, que se instalavam ferozmente na avenida. Foi um bom negócio e Antonia ficou quase satisfeita embora desejasse morar nos Jardins, onde estava a maioria de suas amigas.

Criada em colégio grã-fino, tendo suas vontades satisfeitas, frequentando parte da elite paulistana, Antonia se desenvolveu alheia aos movimentos estudantis e aos pensamentos esquerdistas que estavam dominando os jovens da época. O mundo clamava por paz e amor e liberdade e Antonia olhava de muito longe para tais clamores. Estava mais para Jovem Guarda do que para Fino da Bossa. Por política, não tinha interesse. Preenchia seus pensamentos com a vida dos artistas americanos e nacionais, namoricos, compras e chás com as amigas. Mas quis o destino que ela se apaixonasse por um líder estudantil de esquerda. O garoto em questão era dirigente da Jec, braço secundarista da Ação Católica, movimento socialista e cristão. Parecido com James Dean, dono de um estonteante par de olhos verdes, ele conquistou Antonia. E, de posse de seu coração, foi ganhando também os seus pensamentos e tirou-a do mar de futilidade em que ela vivia metida, mostrou-lhe o deslumbramento das artes e da boa música, ensinou-lhe a andar nos meandros do pensamento político.

E Antonia começou a andar nas nuvens! Apaixonada, correspondida e com um mundo novo se abrindo ante seus olhos, mergulhou, como fizera seu tio José Jr. duas décadas antes, na militância da esquerda católica. Foi presa em 1971.

Então começou o inferno de Joana, atrás de informações sobre a filha presa, que todos e ela própria acreditavam sua sobrinha. Joana já vivera isso antes, atrás de informações sobre o seu irmão, sempre ameaçado quando o partido caía novamente na clandestinidade. O irmão estava morto. E agora ela precisava viver tudo aquilo novamente. Agora, porém, era pior. Quem sabia de alguma coisa, não se arriscava a passar informações. Seus contatos a levaram à Brasília, para ver se descobria qualquer coisa. Desesperada, e sem conseguir que sua famosa intuição lhe apontasse um caminho, depois de uma conversa desanimadora com um diretor do serviço de inteligência, Joana entrou no elevador do prédio público com lágrimas nos olhos. Lá dentro estava um general que, solícito e apiedado daquela elegante senhora que chorava no elevador, perguntou-lhe se podia ajudar. Ela desandou a contar a história de Antonia, que ninguém admitia ter prendido, mas que, ela sabia, tinha sido presa num aparelho clandestino na Chácara Santo Antonio. O General ouviu tudo, de pé no saguão da suntuosa arquitetura de Niemayer, ao pé do elevador. Chamou um auxiliar e cochichou qualquer coisa com ele, depois de pedir licença a Joana. Três semanas depois, Antonia foi jogada como um saco de lixo defronte ao prédio onde morava na Av. São Luiz, em plena madrugada. O porteiro do edifício queria chamar a polícia, temendo ser um presunto do esquadrão da morte, mas Antonia levantou-se, meio cambaleante e ele a reconheceu.

Naquela madrugada, Joana reviveu o dia em que fora esperar José Jr. na saída da prisão, no tempo do Getúlio. Antonia parecia carregar o mesmo fardo do tio e trazia nos olhos o mesmo brilho triste onde sua mãe, ou tia, pensava ver, ao mesmo tempo, revolta e aceitação.

Os anos 1970 passaram, veio a anistia e Antonia foi esquecendo a militância, dedicando-se ao comércio de quadros e acabou arrumando um trabalho numa galeria importante. Tinha mudado muito, de adolescente fútil tornara-se uma jovem consciente, mas amarga. Na década seguinte, Joana viu morrer-lhe o sócio, Magalhães e o escritório, inexplicavelmente, começou a perder clientes importantes, deixando de conquistar novos.

Em 1985, quando completou 60 anos, Joana se retirou do escritório. Ficaria apenas com as aulas da faculdade, que ela iniciara no meio dos anos 1960. Antonia estava morando no Rio e Joana tremia só em pensar na possibilidade de que ela conhecesse o pai, sem saber...

Ainda morava no mesmo apartamento da mesma avenida São Luiz. Tudo ao seu redor, ou quase tudo, era comercial. As empresas começaram ocupando os saguões dos edifícios e, aos poucos, foram subindo, reformando andares para transformar residências em escritórios. No prédio de Joana, só a cobertura, onde ela morava, era residencial. Assim, sua solidão tornou-se completa.

Ela e as plantas e os livros e duas empregadas, uma arrumadeira e uma cozinheira. De manhã, dava aulas na faculdade e o resto do dia se dedicava às plantas e aos livros.

Tinha uma verdadeira floresta na sacada do apartamento e mais uma centena de vasos espalhados nas grandes salas que tinham janelas enormes e uma luminosidade perfeita, difusa, que permitia a Joana cultivar até mesmo orquídeas. Conversava com Antonia, uma vez por semana, ao telefone e ia, todo o último domingo do mês, almoçar com a família de Magalhães, com quem mantivera, por consideração ao falecido, laços de amizade.

Frequentemente, agora que se via envelhecer diante do espelho, a cada dia com mais rapidez, Joana perguntava-se se, na vida, fizera afinal um bom uso de seu dom. Usara a intuição na carreira e sua carreira era a justiça. Mas, lá no fundo, ria-se do pensamento. Ninguém mais do que ela sabia quanto a justiça pode ser injusta. Talvez, matutava, devesse ter colocado seu dom da intuição e da visão a serviço de outras causas. Talvez devesse ter tido uma vida mais atuante, politicamente, quem sabe.

Joana tinha todo o tempo do mundo para pensar e às vezes pensava que ainda poderia fazer isso. Poderia colocar seus dons a serviço de alguma coisa. Mas o quê? O tempo passava e ela esperava um sinal, uma visão ou um sonho que lhe sugerisse um novo caminho para a sua vida. Um caminho mais aberto para os outros, ela que sempre fora um urso na caverna... que a levasse a ter um papel social, a deixar sua pequena marca no mundo.

Assim, no final dos anos 1980, quando passava dos 65 anos de idade, Joana foi trabalhar como voluntária numa instituição para crianças com aids. Mas mal começara, a morte a pegou.

Antonia estava em São Paulo, organizando uma importante exposição de arte, quando recebeu a notícia de que sua tia Dra.Joana havia sido encontrada morta em sua cama. Possivelmente sofrera um colapso enquanto dormia. Boa maneira de morrer, diziam alguns a título de consolo.

O que ninguém pode jamais explicar, nem mesmo a pobre Antonia que testemunhou, quase em pânico, o fenômeno, foi porque, depois de colocada no caixão, vestindo um de seus mais elegantes tailleurs, os cabelos da morta desembestaram a crescer. Cresciam a olhos vistos e Antonia imaginou mesmo poder ouvi-los crescer. Quando ultrapassaram a altura dos joelhos, resolveram cortá-los, mas logo eles atingiam de novo essa marca. Passaram a noite do velório cortando os cabelos de Joana, que logo eram uma montanha, dentro de um cesto ao lado do caixão. O fato teria sido mais escandaloso se o velório tivesse sido mais concorrido. A solitária doutora recebeu apenas alguns de seus colegas de profissão, uns raros colegas de magistério e alguns alunos.

Seus cabelos, por várias vezes cortados até a hora do enterro, foram aproveitados pela freirinha da capela do colégio onde Joana estava sendo velada, para fazer novas perucas para os santos.

Não se sabe se os cabelos de Joana continuaram a crescer depois do corpo enterrado.



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