Mariana, a Sobrevivente
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 24 de mai.
- 5 min de leitura
Atualizado: 28 de mai.
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Mariana chegou junto com o tempo de colheita.
O pessoal da casa andava, por esta época, portanto, muito ocupado. Mesmo assim Maria Amélia, a mãe, arranjou as coisas de modo a recebê-la com o carinho e a cordialidade que se se orgulhava de manter em família. Mariana era, para eles, um “acontecimento” e, como tal, necessitava de recepção digna e carinhosa.
Maria Amélia fez o marido e os filhos arrumarem-se melhor, deu instruções detalhadas de como deveriam sorrir e se dirigir para a prima ainda desconhecida que chegaria cansada e, provavelmente, abalada. Explicou também que a família deveria ter muita paciência para com a mocinha da cidade, de hábitos diferentes dos deles, acostumada a confortos e a diversões estranhas à vida do campo.
Na verdade Maria Amélia temia o confronto daquela menininha vinda de uma rotina cheia de pequenos luxos, distante da terra, ignorante da terra.
Mariana chegou junto com o por do sol.
Mariana chegou junto com a hora do jantar.
Pedro, o pai, foi esperá-la na estação ferroviária. A menina veio muito tesa e quieta, os olhos opacos e enfrentou com coragem o pó das estradinhas que levavam à fazenda.
Sorriu discretamente para os primos, beijou de leve a face de Maria Amélia, que ficou um tanto surpresa por não notar na menina nenhum desdém pela simplicidade do lar que a recebia. Os primos estava um tanto encabulados. Mariana, porém, portou–se com uma dignidade incomum. Aceitou de bom grado o canto do quarto de uma das primas, que havia sido destinado a ela, lavou-se, arrumou suas coisas no armário que passaria a dividir com a prima Lucinda (essa, encantada com as roupas da outra, os sapatos, os perfumes, os lenços e acessórios). Durante o jantar, Mariana conversou com todos, cordialmente.
Dia seguinte já parecia integrada à vida da fazenda. Montou com naturalidade um pangaré, tomou banho de cachoeira e até ajudou na colheita. Interessou-se pelo funcionamento do velho trator e – para a surpresa de todos – não disse uma palavra sequer sobre a tragédia que a levara até ali. Ninguém a viu triste, como seria de se esperar.
Ninguém notou, porém, que tampouco a tinham visto alegre.
Maria Amélia suspirava de alívio. E ela que julgara que a menina seria um baita problema! Pois que Deus a perdoasse pelo juízo precipitado.
Com o tempo, porém, Maria Amélia começou a sentir a influência de Mariana e das histórias que ela parecia inventar. Contara, por exemplo, aos primos que seus pais haviam morrido de uma maneira inverossímil, não numa enchente, como se afirmava na TV, na internet, no rádio e até no jornal. Mariana dizia que jamais houvera enchente alguma em sua cidade natal. Disse também que fora inclusive impedida de ver os corpos de seus pais. Contou ainda que, depois do desastre, passara muito tempo, com outras crianças que também haviam perdido a família, num lugar estranho, cheio de médicos, enfermeiras e muitas máquinas complicadas.
-- Levaram você pra um hospital? – perguntara sua prima Lucinda, mas Mariana dizia que aquilo não era um hospital, parecia mais uma prisão.
Tantos absurdos contou que Maria Amélia foi obrigada a chamar a menina para ter com ela uma conversa séria. Que deixasse de inventar essas coisas – disse-lhe então. Que a enchente já tinha sido uma tragédia suficiente, uma grande catástrofe, que ela deveria aceitar a realidade e não mais criar fantasias em cima de fatos que já eram bastante tristes. Fantasias não são agradáveis aos olhos de Deus. – explicara Maria Amélia.
Mariana ouviu tudo, muito séria.
Depois começou a falar lentamente. Contou que, quando fora levada a aquele lugar esquisito, antes de que a mandassem aos tios, vira nas ruas pessoas sem cabelo, vira uma poeira no ar, uma poeira que o vento não dissipava, uma poeria tão densa que ela não podia distinguir as casas, as ruas, coisa alguma. Vira marcas de corpos no chão de cimento, o que sobrara das calçadas, onde não havia corpo algum. Vira muita gente chorando, desesperada. Mais tarde – pois, como a tia devia saber, já se passara mais de um ano da tal enchente de que a TV falava – ouvira coisas ainda mais fantásticas, como mulheres que deram à luz a monstros de duas cabeças, crianças sem braços ou pernas e outras coisas horrendas. Mas não era só isso – explicava Mariana com ar muito grave, muito adulto. Durante os muitos meses que vivera naquele lugar estranho ouvira gritos medonhos vindos do andar de cima do prédio. Disse ainda que todas as pessoas que cuidavam das crianças estavam sempre nervosas e com os olhos vidrados.
Maria Amélia ficou horrorizada. Conversou com Pedro. Não podia entender como uma criança podia ter pensamentos assim, como podia inventar e descrever, com tanta veracidade, coisas horrendas como aquelas.
-- Eu podia ouvir os gritos, podia ver os corpos mutilados, tal a realidade que ela transmitia ao falar – disse ao marido. Mas Pedro deu de ombros:
-- Coisas de criança. Ela quer acreditar que os pais morreram de um jeito mais importante do que numa simples enchente. Não se esqueça que as meninas da cidade veem muitos filmes .
Mariana partiu no trem, no mesmo trem que levava a colheita para os mercados da cidade. Partiu sem um protesto, ela que parecia estar gostando da casa, do campo, dos tios e dos primos.
Foi num fim de tarde que surgiu aquele homem frio com seu olhar sério. Sentou-se na sala, com Pedro e Maria Amélia. As crianças alvoroçadas: quem seria?
Só Mariana sabia.
Reconheceu no rosto dele a mesma expressão dos homens que cuidavam dela naquele lugar, depois do desastre. Imediatamente compreendeu que teria que voltar com ele para os gritos, para dentro das máquinas que mais pareciam túmulos, as máquinas das quais ela tinha verdadeiro pavor pois passava horas e horas trancada ali dentro... Teria que voltar para as agulhas, para a comida insípida, para os cuidadores que mais pareciam robôs, com aqueles olhos vidrados...
Os tios explicaram. Não queriam que ela fosse. Mas o homem sério tinha um papel com ordens do governo. Que eles não se preocupassem, seria por pouco tempo, em breve poderia voltar para eles.
Eles, que já a amavam, a despeito de suas esquisitices.
Os primos, curiosos, espiavam pelo vão da porta.
Mariana teve um sorriso adulto. Olhou com um carinho frio para Maria Amélia, essa com os olhos lacrimejados. Disse apenas:
-- Não, tia. Não volto mais não.
E, com a mesma indiferença com que chegara, partiu.
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