O Tempo Estraga (Demóstenes George)
- SAUDE&LIVROS Fomm
- há 2 dias
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por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

O velho escorredor de louça já tinha perdido algumas partes, daquelas que formam as abas para apoio de pratos e xícaras, mas, naquela manhã, ele simplesmente se desfez em mil pedaços, quando Ema o estava enxugando com um pano de prato.
Fragmentos de plástico branco jaziam sobre a vermelha cerâmica do piso da cozinha. Ema riu, pensando: “Acho que Jorge comprou essa peça há quase trinta anos. Natural que se desfaça... Afinal, o que é que o tempo não estraga?”
O nosso organismo, a nossa pele, os nossos sonhos e até mesmo as nossas crenças. E também as esperanças. Aliás, essas, pareciam ter abandonado por completo o coração de Ema. Jorge, seu marido, seu amor, seu cúmplice, se fôra havia pouco mais de dois anos. Dessa vez, porém, não fôra o tempo... Fôra a circunstância. A dor da morte súbita do único filho deles, Jorginho, minara a alegria do pai e acabara por minar-lhe também a saúde. Afinal, aquele filho era o grande orgulho da vida dele, de Jorge. 24 anos, formado em Tecnologia da Informática, noivo de uma linda jovem, coincidentemente chamada Georgia, parecia destinado a repetir a bela história de amor de Ema e de Jorge, que sonhavam com os netos, com uma velhice risonha e feliz, numa família que era, graças a Deus, próspera e maravilhosa! Tudo se rompera, de repente, naquele estúpido acidente de moto, na Marginal do Pinheiros, que matara, em um segundo, Jorginho e Georgia, que estava na garupa.
Se o luto de Ema já era imenso pelo filho, tornou-se ainda maior quando da morte do marido.
Assim, como o escorredor de louça, partido em brilhantes brancos sobre o piso de azulejos vermelhos da cozinha – pensava ela então – sua alma e seu coração haviam se estilhaçado em muitos pedaços e jaziam sobre o sangue, vermelho, dos que se tinham ido... Sua alma e seu coração, porém, eram tão brancos, da paz, quanto os fragmentos de plásticos que ora estavam no chão.
Os amigos insistiam: Você precisa, querida Ema, de um animalzinho de estimação, de um pet que lhe faça companhia...
De fato, a solidão era grande, naquela casa, onde por mais de 30 anos, vivera feliz com Jorge. Mas não tão grande assim, já que tinha muitos amigos, ex-alunos, gente do condomínio, que sempre a procuravam.
A aposentadoria fôra outra dor. Deixar as aulas que ministrava na Universidade, deixar os desafios do cotidiano... Tudo era, afinal, apenas perda! Estava cansada de perder!
Foi então que, numa tarde de domingo, passeando pela Avenida Paulista, topou com aquela banca que oferecia animaizinhos, vira-latas. E se encantou por um gatinho. Resolveu compra-lo.
Quando o teve nos braços, alguma coisa lhe disse: o nome dele é Demóstenes!
Ema não poderia explicar a ninguém, e muito menos a si mesma, porque escolhera o nome do grande orador e político da antiguidade grega para o seu novo pet. Nascido em 384AC, o Demóstenes original se suicidara, como Sócrates, tomando veneno, ao ver que as tropas do general Antípatro, da Macedônia, que queria recuperar para Alexandre, o Grande, o domínio da Grécia, estavam cercando a ilha onde ele, Demóstenes, se refugiara. Era o ano de 322AC e assim Atenas perdeu um político brilhante e seu maior orador.
Ema riu-se, ao lembrar da história. Dizem que Demóstenes, que seduzia as plateias com o poder de convencimento de seus inflamados discursos, fôra, antes, gago. E que vencera a gagueira correndo pela praia, a declamar poemas famosos, com a boca cheia de pedras.
Por analogia, lembrou-se também do Rei George VI, do Reino Unido, o pai da Rainha Elizabeth, e da luta dele contra a gagueira. Até tinha sido realizado um filme muito bom sobre isso, estrelado por Colin Firth, Geoffrey Rush e Helena Bonham Carter. O filme, lembrava-se ela, era de 2010 e fôra um sucesso de público e de crítica.
Então, olhando bem para o seu lindo gatinho, filhote, preto e branco, que descansava em seu colo, disse:
-- Nesse caso, meu querido bichano, a partir de agora seu nome será Demóstenes George.
E Ema foi tocando a vida, agora acompanhada por seu animalzinho, além da coleção de perdas que pairavam, como fantasmas, entre as paredes da casa onde, antes, ela fôra feliz.
Plenamente consciente de que o Tempo estragaria também a graça e a beleza de Demóstenes George, informou-se sobre tudo o que poderia tornar mais longeva e sadia a vida dos gatos. Alimentos, complementos, visitas domiciliares da veterinária Alexia e a aquisição, pelo adestramento correto, de bons hábitos de vida.
De fato, Demóstenes George foi crescendo e se tornando um gato forte e sadio. Todas as tardes ele ia se deitar no parapeito interno da grande janela da sala da casa. Ficava lá, ronronando e tomando o solzinho do crepúsculo. Na hora das refeições, solitárias em sua maioria, de Ema, Demóstenes George ficava se esfregando suavemente na barriga das pernas dela. Quando ela se levantava e ia à cozinha lavar a louça, ele a acompanhava. Se ela pegava um livro para ler, ele pulava imediatamente para o colo dela e se aninhava no espaço entre o livro, as mãos e a barriga de sua tutora.
Também ficava em seu colo quando ela se sentava em frente ao notebook para escrever ou jogar ou ver vídeos. Esticava-se todo para fitar atentamente a tela do celular, quando ela pagava as contas no banco, ou procurava alguma informação sobre as plantas que tanto gostava de cultivar. E tudo ela comentava com ele: “Está vendo aqui, Demóstenes George, essa suculenta maravilhosa que a mamãe Ema plantou nesse vasinho, chama-se “Mãe de Milhares”, está aqui no Google. Veja, ela tem brotinhos ladeando toda a borda de suas folhas...” E o gatinho examinava a plantinha citada, atentamente, esfregando a ponta de seus bigodes nas folhinhas dela. Ou: “Vamos pra cozinha, Demóstenes George! Mamãe vai preparar umas batatas ao forno...” e lá se ia o gatinho, andando na frente dela, direto para a cozinha.
Ema ria muito das travessuras de seu bichano, que, um dia, por exemplo, arrancou do varal, no quintal, a sua camisola de seda predileta e a transformou em tiras, de tanto brincar com ela, puxando-a para lá e para cá. E ela pensou: “O Tempo estraga, se Demóstenes George não estragar antes”
Dormia numa cesta decorada, ao lado da cama dela e, ao amanhecer, pulava pra cima dos lençóis e ia acariciar o rosto dela, com deliciosas lambidinhas.
Ema, desde que o bichano era um filhotinho, se acostumara a falar com ele. Dava-lhe bom dia e boa noite. Comentava com ele as bobagens do cotidiano e, enquanto ela falava, ele olhava fixamente para ela, parecendo compreender lhe as palavras.
Na manhã seguinte a uma festa de família, onde Ema bebera um pouco além da conta, ela quase se desesperou andando pela casa à procura da bolsa que usara na noite anterior e não se lembrava onde a tinha colocado. Exclamou então, em voz alta: -- Onde, com mil diabos, eu coloquei a minha bolsa amarela? Imediatamente, Demóstenes George correu para o quarto, se enfiou sob a cama e trouxe de lá, pendurada na boca pela alça, a bolsa amarela.
Comovida, Ema pegou a bolsa e o gatinho e o cobriu de carinhos, agradecendo a ele pela gentileza.
Alguns dias depois leu, não sem surpresa, uma postagem nas redes sociais onde se afirmava que técnicos de informática estavam pesquisando, com o auxílio da Inteligência Artificial, uma maneira de codificar e de decifrar a linguagem dos animais. Sim, pensava ela, porque os bichos não apenas aprendem a compreender o que nós, humanos, dizemos a eles, como também se comunicam entre si. Sua amiga, a Isabel, por exemplo, jurava que os periquitos australianos que ela tinha soltos pelo apartamento, Philip e Elizabeth, passavam muito tempo levando altos papos um com o outro e dizia que, um dia, ainda aprenderia a falar periquitês.
De fato, Demóstenes George, parecia entender perfeitamente o que Ema dizia a ele. Portanto, o que antes eram apenas comentários sobre as bobagens do cotidiano, passaram a ser verdadeiras conversas, diálogos mesmo, e o gato respondia a Ema numa diversidade incrível de miados que pareciam expressar os seus pensamentos sobre o assunto debatido. Havia um tipo de miado para cada situação. E Ema foi decifrando seus significados.
Assim, lentamente, Demóstenes George foi aplacando bastante a dor das perdas de Ema, tornando-se seu companheiro e – por que não? – mesmo seu conselheiro.
-- Demóstenes George você acha que devo investir nesse banco Master? Ele paga acima da média...
E o gato emitia aquele som que Ema já sabia que queria dizer: Não, de jeito nenhum!
Assim, Demóstenes George foi o companheiro de Ema por mais de uma década até que o Tempo, que a tudo estraga, o tornou velho demais e ele morreu de insuficiência renal.
Bel, 2025, novembro



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