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Oratori

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 23 de mai.
  • 3 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


À primeira vista, antipático.


Aliás – pensava ela -- isso acontece com pessoas de forte personalidade: jamais são simpáticas à primeira vista, sem querer e às vezes mesmo sem perceber, intimidam.  Exatamente como ele.


Ao entrar na sala, atraiu todos os olhares e fez calar todas as vozes, tal qual o faria a súbita presença de alguém importante ou famoso demais para aquele palco. De imediato, essa presença foi, para Elizabeth, desafio e provocação. Demasiadamente seguro de si para inspirar simpatia, arrogante, desprezando sem pudor a social necessidade do sorriso.


Falava bem.


Elizabeth o ouviu e observou atentamente, aos poucos, acomodando-se à sua indiscutível liderança, deixou-se conduzir pela linha de seus pensamentos. Mansamente. Sem resistência ou contestação.


Mas Elizabeth ainda tentava acha-lo simpático. Não, absolutamente, não. No entanto ele lançou um olhar de cúmplice aprovação ao surpreendê-la sorrindo ante a uma ironia que nenhum dos ouvintes demonstrara perceber-lhe nas palavras. Elizabeth percebeu então que, a partir daquele olhar, passara a gostar dele como se, por aquele olhar, tivesse sido aberto para ela o acesso ao mundo dele. 


Ele emana energia mal contida, pressentida força, dando a im­pressão constante de que poderá, repentinamente, gritar sem motivo ou torcer-se em inexplicável riso – pensou ela. -- E usa as mãos. Sempre. Seu sorriso: careta irônica, a face em músculos rijos. Os olhos densos, dentes cerrados. .Não... Não sorri: silva, em som quase imperceptível, agudo prolongamento das palavras. Pássaros em pânico. As mãos acompanham a modulação da voz: ideias delineando espaços. Ele é para linguagem. Ele é todo ritmo, impacto e trovão.

 

Não era um homem bonito. Ou antes, era realmente feio. Mas muito, muito atraente. Forte. Seguro. Rocha. Não tinha idade alguma, assim como parecia não ter época (Que era estaria o mundo vivendo lá fora? Que tempo? Que realidade?).


Barba em desalinho, cabelo sem corte, óculos e nenhuma preocupação com a roupa poderiam enquadrá-lo como intelectual contestador, teórico revolucionário de mesa de bar dos anos 1960 ou 1920. Mas era único. No dia em que Elizabeth o viu, achou que ele usava uma camisa que só por ele poderia ser usada. Perfeita nele. Em qualquer outro, apenas absurda.

 

Sim, ele era único!

 

Rude, pequeno, troncudo. Um touro disfarçado em homem. Se entrasse numa loja sofisticada qebraria os cristais sem tocá-los, tropeçaria no tapete e, a um simples toque de suas mãos, reduziria a pó os ossos da frágil vendedora.

               

Entretanto seria possível imaginá-lo a apreciar uma delicada estatueta chinesa, a porcelana a deslizar-lhe suavemente por entre os dedos. Suas mãos, de indóceis, se farão ternas e leves ao contato da beleza. Ou do amor. Elizabeth pode ler tudo isso em seu olhar. Olhar que às vezes se trai e lança faíscas de um interior apaixonado, em aparente contradição aos gestos bruscos que lhe enfatizam a voz forte e ritmada. Contradição aparente sim, enquanto considerada a súbita ternura nos olhos perfeitamente de acordo com a postura orgulhosa de quem já viveu o suficiente para não precisar fingir. Sua lógica não se contrapõe à emoção e sua força não se contrapõe à ternura.

               

Diante desse homem é o homem primeiro que Elizabeth imagina, o homem origem, na luta pela sobrevivência. O homem a lutar pelo ser humano. Imagina a manifestação silenciosa e lenta do amor: tapinha gentil no lombo do cavalo, beliscão despudorado no traseiro da companheira, festa no cão estimado a lamber-lhe as mãos e as botas; o amor furioso, o apetite voraz, as palavras – sempre poucas – ditas na hora certa. Não necessita esse homem de atitudes estereotipadas, normas de comportamento. Não há nenhuma regra na simplicidade. Este homem, primitivo, convive muito bem com seus mistérios. Convive pacificamente com a beleza e com a dor do mundo.

 

Nessa medida, Elizabeth impressionou-se com o feio orador. E, ali, na semi obscuridade da plateia do teatro – mais uma anônima a beber as palavras do inacessível professor que sacode o palco – Elizabeth disse pra si mesma: Quero esse homem. Gostaria que me amasse sem sequer trocarmos palavra, gostaria dessa energia vibrando em meu corpo, sentir-me-ia camponesa, sentir-me-ia como as antepassadas, aquelas que sabiam ler no corpo de seu homem. Mas talvez nunca mais o veja. Talvez ele nem exista...

 

Vivendo numa cidade imensa, pouca, quase nenhuma possibilidade de um encontro casual. Ele nem sabia quem era ela, um rosto a mais em mais uma anônima plateia. Ele jamais imaginaria que ela estivera ali e o amara.

 

Mas, de fato, tudo isso não tinha importância. Importava, porém, que, a cada vez que dele lembrasse, lhe invadiria um delicioso e inexplicável cheiro de terra.

 

23 de agosto de 1976

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