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Semeador

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 26 de mai.
  • 4 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


Sabiá Laranjeira na Árvore Amarela
Sabiá Laranjeira na Árvore Amarela

Depois que ele chegou nunca mais fez frio.

 

Dele diziam coisas. Foi se tomando conhecido, tanto por elaboradas versões de seus pensamentos como por seus pés estranhos, excessivamente curvos na sola e que lhe proporcionavam andar diferente, de gingado único.

 

Sempre disposto a ouvir, pensar e opinar, não tinha, porém, paciência alguma para com os jovens. Achava que não se devia perder tempo com os pensamentos muito jovens. São todos iguais, dizia. A juventude é uma fase de aprendizado e reconhecimento do mundo, por que deveriam preocupar-se os adultos com o que já lhes foi revelado e ensinado?

 

Não há maior prazer do que o prazer de conhecer— dizia com sua irrefutável tranquilidade— e perdemos esse prazer a cada vez que olhamos para trás, para o que está atrás de nós na estrada do conhecimento.

 

Tudo o que ele dizia, soava como revelação.

 

Tinha o estranho poder de contar a fábula certa, na hora certa, para a pessoa certa. E, com suas histórias, fazia refletir e pensar. Aquecendo os corações.

 

Portanto, depois que ele chegou nunca mais ninguém sentiu frio.

 

Antes dele, o frio era o tema de todos os dias em todos os lugares.

Logo depois dele, e de ele fazer-se conhecido e respeitado, logo depois, era um tempo de primavera.

 

Ele — que já analisara e confidenciara toda a população local— aproveitou a estação e pôs-se a falar na vida, essa vida que brotava da terra, que renascia, abrindo lentamente os braços para o sol.

 

De hábitos regulares, costumava sentar-se, às primeiras horas da tarde, sob uma velha árvore onde acumulava seus improvisados vasos. Qualquer recipiente servia-lhe. Era visto caminhando aos quatro cantos: aqui colhia pequenas pedras e seixos, ali adiante um pouco de areia, terra. E logo um novo vaso vinha juntar-se à coleção, una velha casca de árvore, pedras chatas unidas com barro, uma panela sem alças.

 

Não demorou muito para que a velha árvore, à qual ninguém emprestava atenção, se enfeitasse, rodeada de begônias, algumas orquídeas, flores e folhagens de espécies diversas.

 

De repente ficou impossível não notar que, independente e indiferente ao abandono em que sempre vivera, a velha árvore renovara seu esplendor, a chuva limpara-lhe as folhas, o sol a alimentara e ela, que estendera, ao longo dos anos, suas raízes para adiante, para adiante e para o fundo daquela terra, de repente ganhara nova vida.

 

Sim, certamente foram os vasos, ou antes, as begônias, quem sabe, as orquídeas, talvez as margaridas.

 

Era o que diziam todos, surpresos quando se flagravam a si próprios a falar na árvore. Parecia que se havia aceso uma enorme luz em torno da velha árvore. E todos tiveram sua atenção voltada para a beleza daqueles galhos, vivos, rasgando o céu azul; para a delicadeza das formas das folhas, a dança de seus finos traços ao vento; para a força e a solidez daquele tronco a erguer-se majestoso por sobre a terra; para a extensão dos domínios daquelas raízes arando a terra.


Aquelas raízes que modestamente se disfarçavam em fragilidade, com aqueles estranhos vasos de plantas pousados nelas, desenhando delicadezas na paisagem.

 

Sim, foram as begônias, ou talvez as orquídeas ou quem sabe as margaridas, que chamaram nossa atenção para a árvore, concordavam em uníssono, talvez temerosos de reconhecer o poder daquele, ele, que, de alguma maneira, devolvera-lhes a capacidade de ver.

 

Todos esqueceram-se do frio e da secura do ar, depois que ele chegou, parecia ter sido sempre assim, agradável, agradabilíssima primavera.

 

Todos começaram a conhecer-se melhor, uns aos outros, talvez por que tenham, com ele, começado a conhecer-se a si próprios, cada um deles, um pouco melhor. Queriam ver-se, conversar, conviver.

 

Começaram a dar festas. Ele, ele mesmo, era um bom pretexto.

Ele tocava violino. Ninguém ali tocava violino. Ele era a atração. Sempre o seria. Mesmo sem o violino. Ele sabia tocar a música dos sentidos.

 

Também, com ele, podia-se ver e sentir melhor o mundo e estar com ele era estar em calma. Numa doce comunhão com o mundo. Quem, dentre eles, antes dele, havia percebido os doces rumores, os adoráveis barulhos da natureza?

 

Tão preocupados, todos, com seus jogos de sobrevivência e seu racionalismo narcisista, que chance teriam, antes dele, de sentir-se parte?

 

Ele. Ele era muito importante na vida de todos eles.

 

Mas, outra vez para não admitir-lhe abertamente o poder, teimando em não dar a ele o crédito pela mudança da vida do lugar, todos se referiam aos tempos “do frio” e aos tempos de "depois do frio", quando na verdade queriam dizer de si mesmos nos tempos “sem ele” e nos tempos "depois dele”.

 

De onde viera ele? Ah, quem o sabe?

 

Surgiu. Alguém falou nele um dia. Depois todos sabiam quem era.

E todos ficaram seus amigos. Ou ele ficou amigo de todos. E os fez, a todos, mais amigos de tudo.

 

Por isso, depois que ele chegou, nunca mais fez frio.

 

Bel, 1984, agosto

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