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Vivo num Mundo Triste

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 6 de mai.
  • 6 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Foto do Universo, by Zé Reynaldo. Repare: há uma imagem de mulher dentro da estrela...
Foto do Universo, by Zé Reynaldo. Repare: há uma imagem de mulher dentro da estrela...

Estava pensando que vivo num mundo muito, muito triste.

 

Acabo de doar um casaco para uma instituição espírita e a amiga que o pegou disse que é um casaco lindo, de grife, de pura lã. Um privilégio. Num mundo onde milhões passam fome, passam frio.


Pensava nisso, de manhã, no chuveiro. Um privilégio. Quantos não têm água? Quantos não têm água quente? Quantos estão presos a um leito de hospital e nem banho...?


Pensava, também, por contraste, no escândalo da menina, aos berros, reclamando que o bolo que a mãe comprara para comemorar os 7 anos de idade que ela completava, não era bonito o bastante. Mimos. Privilégios. Inconsciência.


Lendo os comentários do Twitter, sobre a China ter criado artificialmente o Novo Coronavírus, fiquei horrorizada com o português usado pelos internautas: erros de concordância, erros de grafia, erros, erros, erros e uma mentalidade estreita, tacanha, de gente cuja formação escolar e social deixa muito, muito a desejar. Eu, escritora, milhões de páginas escritas, um privilégio.


Quantos não têm acesso a uma educação digna? Quantos não têm acesso a educação alguma?


Pensando no amor e no carinho que sempre recebi na vida, dos meus pais, de tantos amigos, do meu amor... Pensava no menininho morto por um sujeito doente, um espancador contumaz. Pensava nas crianças do ambulatório de maus tratos do Instituto de Pediatria do Hospital das Clínicas da USP, onde a minha grande irmã Vera Krausz fez estágio quando cursava Enfermagem. Pensava nas meninas africanas, sem direito à escola, sem direito ao prazer, com o clitóris extirpado à frio e sem anestesia. Pensava na imensa crueldade de marginais, medievais, que queimaram vivo o jornalista Tim Lopes e que, até hoje, 20 anos depois, continuam, através de seus sucessores macabros, a praticar os mesmos horrores.


Pensava na guerra, a que sempre houve. Pensava no saudoso Gaiarsa que, vira e mexe, quando entrevistado por mim na TV, lembrava que o mundo, em 10 mil anos de história, jamais viu um dia sequer em que não houvesse guerra em algum lugar do planeta.


Pensava no sofrimento das mais de 400 mil famílias brasileiras que perderam um ente querido para a Pandemia sem sequer poder se despedir dele. O horror de um caixão fechado, anônimo, distante.


Pensava no inacreditável egoísmo dos que se aglomeram para festejar e no inacreditável risco dos que têm que se aglomerar para garantir o pão nosso de cada dia.


A aldeia global que McLuhan sonhou nos anos 1960, essa, onde cada ser humano, sobre a Terra, pode ter seus 15 minutos de fama, não era bem a aldeia global em que vivemos hoje. Um aldeia feita de individualistas munidos da mais alta tecnologia em vez de uma aldeia feita de humanistas munidos da mais alta tecnologia.


Ai, Deus Meu, até quando o coletivo humano permanecerá nessa ignorância violenta da sua própria interdependência?


Aqui na Paulista é muito raro faltar energia elétrica. Outro dia, faltou. Por 10 minutos, às 8 da manhã. Percebi então que, sem energia, eu quase nada poderia fazer. Trabalhar no computador. Lavar roupa na lavadora. Preparar o café-da-manhã no microondas ou no forno elétrico (há mais de 20 anos não temos fogão). Peguei meu livro do George Martin, voltei pra cama, abri a cortina e me pus a ler, esperando a energia voltar para poder voltar a viver. Quantas pessoas são responsáveis pelo abastecimento da energia que chega até à nossa casa? Sou dependente delas. E isso é apenas UM entre milhares e milhares de exemplos semelhantes que eu poderia dar aqui. Mas a maioria de nós vive como se não dependesse de nada ou de ninguém. Inconsciência.


O nosso way-of-life, se fosse estendido a todos os povos do planeta, seria completamente inviável. Vivermos todos os quase 8 bilhões de humanos no conforto em que vive a minoria privilegiada da Terra consumiria os recursos do planeta, completamente, em menos de um ano.


Vou completar 70 anos de vida daqui a uma semana. Pensava que quando (e se) chegasse a esse dia estaria vivendo num mundo mais evoluído, bem mais, do que esse. A maioria, concluo, é apenas muito burra. Muito cega. Muito insensível. Muito estúpida. Muito infeliz e, por isso mesmo, muito violenta. Esse é o mundo mais triste onde já vivi, em todas as minhas vidas. E estou ficando parecida com ele: Triste.


Então, para me alegrar e alegrar aos que estão no entorno, penso nas milhões de coisas maravilhosas que alguns seres humanos, famosos e anônimos, são capazes de fazer. Penso nos que se sacrificam para que outros, estranhos, não morram, como acontece com todo o imenso batalhão de trabalhadores da saúde que hoje luta contra a COVID-19 em todo o mundo, do mais eminiente professor de Medicina ao mais humilde servente do hospital, nivelados em suas diferenças pela mesma urgência pandêmica.


Penso nos inumeros gestos de solidariedade gerados pela COVID-19. Penso na minha amiga e vizinha, Tânia Miura, tão querida e tão solícita, pegando o casaco de lã do começo desse texto para levar a quem está precisando dele. Penso nas toneladas de alimentos, cuidadosamente dispostas em mesas improvisadas na garagem do nosso prédio, doadas, pelos moradores, a ONGs que se encarregam de leva-los a quem está passando fome, desempregados, desalentados. (São toneladas, sim. Somos 240 apartamentos, a maioria deles doando 1kg de10 mantimentos diferentes, são 10kg por apartamento, ou seja, mais ou menos 200x10=2000kgs).


Penso nos que se aglomeram, se espremem, nos transportes coletivos para ir em busca de sua sobrevivência, todos os dias, sobrevivência essa que, na maioria dos casos, serve a todos nós: nos supermercados, farmácias, cartórios, bancos... Tanta gente trabalhando por todos nós.


Penso na minha amiga médica Tânia Santana e em seu filho, Dudu, vindo aqui, gratuita e espontaneamente, ajudar o Caetano, meu marido, em sua recuperação. Assim como eles, tantos profissionais emprestam seu tempo a quem precisa dele.


Penso, ainda, nas obras de arte que encantam os olhos e a alma. Penso na música, de Mozart a Roberto, passando pela voluntariosa e genial Elis.


Penso na literatura e nos mundos que se me descortinaram a cada leitura encantadora. Penso no êxtase de um grande poema, que revela, em cada sílaba insubstituível, o encantamento da vida.


Penso no céu e nas estrelas, que meu amado irmão Jose Reynaldo, vive a fotografar com seu possante telescópio. E no sem-folego que nos atinge quando -- urbanos cidadãos sem céu estrelado -- estamos em algum lugar onde se pode realmente ver o céu coalhado de luzes -- em alto mar, numa montanha afastada das cidades, na selva... Estrelas que já se foram há milhares de anos e cuja luz ainda permanece no nosso céu. Estrelas que estão nascendo e que não podemos sequer imaginar. A beleza e o mistério do Universo nos preservam da crueza de tantos seres humanos que são ainda tão primitivos e violentos e ignorantes e infelizes...


Ah! A vida é uma enorme contradição, um monstruoso paradoxo, um eterno oscilar entre os opostos. Equilibro-me, um pé na tristeza, outro na maravilha. Há 70 anos.


Bel, 2021, maio, 6


Que texto lindo. Aqui no prédio não dá tudo isto de comida. Somos bem mão de vaca.


Muito lindo.. triste e verdadeiro, este seu texto!


Li com bastante atenção...

Sinto que estamos tristes mesmo.

Vou tbm fazer aniversário esse mês e tenho a sensação de que não mudei de idade...

Até me esqueci qtos anos farei por esses dias...

O grande Suassuna disse:

- Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto.

Obs: por curiosidade, como viver 20 anos sem fogão?


3 respostas

Wow! Um soco na boca do estômago. Só verdades aqui. Ah, Bel... Que mundo vivemos?! Muita tristeza, principalmente nos dias atuais.


Muitos motivos mesmo para estarmos tristes...

No entanto “o poder requer corpos tristes. O poder necessita de tristeza porque consegue dominá-la. A alegria, portanto, é resistência, porque ela não se rende. Alegria como potência de vida, nos leva a lugares onde a tristeza nunca nos levaria.” Filósofo Gilles Deleuze


Belo texto Bel. Verdadeiro. Mais triste do que alegre. Não dá para ser diferente.


Um belo texto!


Texto lindo amiga. Eu quase não leio textos grandes, mas gosto do que vc escreve. Gostaria de mais pessoas pensasse como vc. Esse mundo está muito esquisito. Parabéns pelo belo texto.


Brilhante, como sempre. Vamos nos ligar a Deus, pai misericordioso, que não admite privilégios mas sim MÉRITOS. Somos merecedores de tudo que fizemos e continuamos a fazer, sempre no caminho do bem.


Texto lindo, Bel !!!


Maravilhoso texto contemplando opostos e trazendo à tona a tristeza em constatar qual dos opostos se sobressai.


Belos 70 anos !!


Bel o texto está simplesmente lindo!


Que lindo, triste mas esperançoso




Comentarios


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