A Maldição dos Guardanapos
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 25 de set.
- 7 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3

Para Leda Galotti da Cunha
- 1941-2019, Amiga e Guia.
Em 1958 havia, na cidade de São Paulo, uma loja maravilhosa, e famosa, de artigos finos para a casa. Foi lá que aquela senhora, Dona Leda, – que festejaria suas Bodas de Prata dali a algumas semanas – encomendou uma fina toalha de linho, branca, com as bordas decoradas em baixo relevo, também branco, para uma mesa de 24 lugares, com seus respectivos 24 guardanapos, igualmente decorados em baixo relevo. Cada um deles media 40x40cm e a tolha... nem sei, de tão grande!
Naquele ¼ de século, desde o seu casamento, ela e o marido muito haviam progredido, por obra e benção de seus trabalhos. Ela, decoradora, num tempo em que essa ainda era uma profissão simples. Ele, José Augusto, diretor de uma grande empresa, onde começara a carreira como contador. Viviam tempos muito prósperos e podiam, com tranquilidade, se dar a esses pequenos luxos.
Tinham uma filha única, nascida quando já estavam casados havia 18 anos, e era portanto, uma garotinha. A menina acompanhou a mãe à loja, toda entusiasmada com os preparativos para a festa, que reuniria toda a família e alguns amigos íntimos. A mesa estava sendo montada na maior sala do sobradão onde moravam o casal e a menina e onde ficava uma enorme biblioteca. O casal tinha o bom hábito da leitura e a menina Antônia, recém alfabetizada, seguia já esse costume dos pais.
No dia em que Leda foi buscar a toalha que encomendara, estava na loja a bruxa Mirna. Era, infelizmente, uma bruxa do Mal. E discutia com o comerciante. Queria levar 12 daqueles guardanapos maravilhosos. O atendente da loja chamara o proprietário para explicar a ela que os guardanapos tinham sido confeccionados por encomenda de uma distinta senhora e que, portanto, já estavam vendidos. Mas ela insistia. Foi aí que chegou a Leda. Sempre muito educada, cordata, mestre em resolução de conflitos (não existia essa expressão – resolução de conflitos – em 1958, mas Leda já a praticava), tentou argumentar com Mirna, que parecia irredutível. O proprietário da casa explicou que poderia confeccionar outros 12, iguais, para ela, desde que aguardasse uns poucos dias. Mirna vociferou: seriam para um coquetel que ela daria no dia seguinte. Não podia esperar. A outra, que esperasse. A outra, claro, era a Leda que, com toda a delicadeza, tentou mostrar outros exemplares de guardanapos, disponíveis na loja e tão lindos quanto os que ela encomendara. Na verdade, surpreendeu-se com a teimosia de Mirna. Normalmente, conseguiria convencer qualquer pessoa, com seus delicados e gentis argumentos. Mas não à Mirna que, irritada, exclamou entredentes: “Enquanto durarem esses guardanapos, você e sua família não mais prosperarão!”
Leda, que tinha uma alma prática e não acreditava em maldições, deu de ombros. Pediu que embrulhassem sua encomenda, pagou e foi embora sem olhar para trás.
No carro, Antônia disse:
-- Mãe, a senhora deveria ter deixado essa mulher levar os 12 guardanapos que ela queria e substitui-los por outros que também combinassem com a tolha.
Leda riu:
-- E por que eu faria isso, minha filha?
-- Porque – respondeu a menina, decidida – ela é uma mulher poderosa e lançou uma maldição sobre a nossa família.
-- O que é isso? – respondeu Leda – Uma menina inteligente como você acreditando no poder de umas simples palavras?
-- As palavras não são simples – respondeu a menina – você mesma me ensinou isso, elas têm poder sim.
Leda acariciou os cabelos da filha:
-- Esqueça. Só têm poder as palavras às quais nós mesmos atribuímos poder.
E mudou de assunto.
A verdade é que, coincidência ou não (mas estas não existem), alguns meses depois da sensacional festa das Bodas, a empresa onde José Augusto trabalhava começou a ter problemas. Era uma empresa familiar, fundada no começo do século XX por um imigrante italiano que simplesmente desprezava toda e qualquer técnica de administração. Dizia: “Construí um império sem usar nada dessas bobagens modernas. Por que as usaria agora?”
O fato é que as “bobagens modernas”, que o patrão de José Augusto descartava, eram as técnicas de marketing que começavam a prosperar no Brasil dos anos 1960 e as empresas que as utilizavam iam, lentamente, passando para trás aquelas que as ignoravam.
Também, naquela supostamente revolucionária década de 1960, os costumes iam mudando. A decoração – ramo em que Leda atuava – ganhava novos contornos, novos e muito diferentes designs e conceitos iam se instalando na preferência dos ricos e ela viu reduzirem-se drasticamente os seus clientes. Eles começaram a julgá-la velha, ultrapassada.
José Augusto acabou perdendo o emprego. Ganhou uma polpuda indenização por seus 30 anos de trabalho e, com parte desta, comprou um escritório no centro da cidade, onde se estabeleceu como uma espécie de consultor para novos negócios. Errou o endereço. Nos anos 1960, o centro perdia seu charme para outros novos locais: os jardins, a avenida Paulista, a avenida Brasil, a rua Augusta.
Vendo despencar a renda da família, começou a cortar despesas. O primeiro a ser demitido foi o chofer e Leda começou a levar, ela mesma, a filha ao colégio. Os amiguinhos comentaram e logo começaram as gozações:
-- Sua mãe vem trazer você? O que aconteceu? Estão ficando pobres?
-- Mãe, – perguntou Antônia certa ocasião – estamos ficando pobres?
-- Não, minha filha. – tentou tranquilizar – A vida financeira é assim mesmo, em altos e baixos.
No entanto, prosseguiram os baixos e, no final dos anos setenta, tendo cortado todas as despesas possíveis, venderam o sobradão e foram morar, de aluguel, em um apartamento, num bairro mais distante, bairro de classe média alta, mas, ainda assim, bem diferente do padrão a que estavam acostumados. Antônia foi estudar num colégio particular, mais barato e muito diferente dos que ela conhecia.
Começou a se perguntar por que não recebia mais convites para as férias nas casas de praia ou de Campos do Jordão, tão comuns quando ela era rica.
Concluiu que agora era pobre.
Engajou-se, portanto, na luta dos pobres. Tornou-se uma jovem militante da esquerda, contra a Ditadura Militar que assolava seu país. E seus pais, ao vê-la sair de casa no seu modesto fusquinha, passavam noites insones, temendo que ela caísse nas garras do regime, pois sabiam que ela passava noitadas em bares considerados “subversivos” e, para piorar, era uma estudante de jornalismo na ECA, Escola de Comunicações e Artes da USP, considerada uma das mais “perigosas” pelo Estado.
Foi então que, no meio dos anos 1970, José Augusto começou a beber. Primeiro, scotch. Depois os nacionais mesmo. Bebia o dia inteiro. Morreu, de cirrose, em 1979. Deixou um bom seguro de vida e o escritório no centro. Leda investiu na poupança, alugou o escritório do centro da cidade e arrumou um emprego de auxiliar numa firma de decoração (graças ao bom nome que conquistara duas décadas antes) e, mãe e filha, foram morar no bairro do Brooklin, ainda com algum status. Venderam o velho automóvel de José Augusto e Antônia pôde conservar seu antigo fusca. Logo conseguiu também um emprego num jornal, como secretária de redação mas, estranhamente, passados cinco anos e já formada, nunca conseguira uma promoção. Viveram humildemente, mãe e filha, até os anos 1980. Leda morreu, de infarto fulminante, em 1981. Foi quando Antônia conheceu Alberto e se casou com ele.
Alberto, bem mais velho que Antônia, era um ex-executivo de multinacional, que já trabalhara em vários países do Exterior. Acabara de perder o emprego quando conheceu Antônia e montaram um jornal comercial, desses que divulga ofertas de qualquer coisa e foram sobrevivendo. No começo dos anos 2000 foram pioneiros na Internet e, mal ou bem, entre altos e baixos, sobreviviam.
Em 2021, cansada de lutar, Antônia viu Alberto adoecer e morrer. Ficou com parte da aposentadoria dele e com o seu jornalzinho na Internet.
Aos setenta anos, julgava que mereceria uma aposentadoria. Estava cansada de viver com tantas restrições financeiras, mas o seu jornal era a única fonte de renda. Tentara, sem êxito, publicar alguns livros que escrevera. Mas publicar como? As editoras não investiam em autores nacionais. Era muito mais lucrativo publicar os que já vinham prontos do Exterior. Além disso, o mercado editorial brasileiro estava uma lástima, pouquíssimos leitores, livrarias tradicionais falindo...
Um dia, nas suas longínquas lembranças do Facebook, encontrou uma foto onde sua mãe, Leda, passava a ela aquela velha toalha de linho das Bodas de Prata. A toalha ainda estava boa, mas restavam apenas 5 guardanapos. 19 haviam se esgarçado e tinham sido descartados.
Antônia, então, passou a usá-los. Os que restavam. Mas logo eles foram se desfazendo, afinal eram tecidos de mais de 60 anos de idade. A cada lavada, abriam um rasgo em algum lugar.
Naquele mesmo dia, em que começou a usar os guardanapos, uma horoscopista, na Internet, disse a ela que, no dia 25 de julho, aconteceria uma grande virada na sua vida. Antônia riu. Não acreditava nessas coisas. Mas, de repente, lembrou-se que sua mãe morrera em 25 de julho de 1981.
No dia 5 de julho de 2021, Antônia, tirando a roupa da máquina de lavar, viu que o último dos lindos guardanapos, que ela insistia em lavar e passar, mesmo quando estavam esgarçando, se desfizera. Jogou-o no lixo. Foi só então que lembrou-se daquele dia distante em que aquela mulher lançara uma maldição sobre sua família.
“Enquanto durarem esses guardanapos, você e sua família não mais prosperarão!”
Riu, jogando fora o último guardanapo.
Mas, no dia 6, recebeu um telefonema de uma das editoras a quem enviara seu livro. O contrato de edição – investimento da própria editora – foi assinado no dia 25 de julho.
E seu livro tornou-se um best seller internacional, permitindo a Antônia recuperar uma vida próspera e de sucesso, até o dia de sua morte, no ano de 2038, aos 97 anos, com, então, 24 livros publicados e nenhum guardanapo nas gavetas.
Comentários