Jornalistas
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 26 de set.
- 14 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3

Talita sempre soubera, desde muito criança, que seria jornalista. Seus pais separam-se em 2004, apenas sete anos após o seu nascimento. A mãe, Julieta, que estava grávida da que seria a sua irmãzinha caçula, não esperava que Norberto, seu marido, tivesse coragem de sair de casa deixando-a com a filha pequena e a barriga grande. Ele não apenas teve coragem, como também a notícia da gravidez de Julieta precipitou ainda mais a decisão dele.
Uma noite, ao chegar do trabalho, tiveram uma briga daquelas. Ela, vinda da Rede de Televisão, onde era administradora financeira. Ele da empresa multinacional, onde era engenheiro.
Julieta calculou mal a hora de dar-lhe a notícia de sua gravidez. Ele tivera um dia difícil na fábrica de turbinas, recebendo uma delegação de chefes indígenas que era contrária à construção da barragem que desviaria o rio que margeava a reserva onde eles viviam. Diziam que a obra os mataria, tiraria deles o seu principal sustento – a pesca, a caça e a coleta – e que mudaria toda a paisagem, prejudicando a flora e a fauna.
Em vão, Norberto e mais dois diretores da fábrica tinham argumentado, mostrado o projeto, explicado que a Usina* que construiriam, bem ao contrário do que eles pensavam, em nada faria sofrer nem aos peixes e muito menos ao ambiente entorno. Mas os cretinos daqueles pés-rapados – pensava ele— não conseguiam entender os argumentos que foram apresentados na reunião.
Na verdade, Norberto também não entendera e sentia-se, agora, um pouco culpado porque sabia que os índios (como ele os chamava) na verdade tinham alguma razão. A barragem mudaria mesmo o estilo de vida deles. Mas – com mil demônios – eles se adaptariam e não tinham o direito de impedir o progresso daquela região do nordeste brasileiro. A usina traria energia elétrica ao povo mais pobre do estado do Maranhão. Energia mais barata, mais acessível a aquela gente sofrida. Mas teria que ser construída ali, já fôra muito complicado conseguir que a FUNAI aprovasse o projeto que se localizaria na fronteira da reserva dos Awá-Guajás, uma aldeia de pouco menos de 400 habitantes.
Os teimosos dos índios tinham viajado quilômetros e quilômetros, junto com os chefes de outras aldeias também distantes deles, e ameaçavam mesmo sabotar as obras, se os brancos (os caraíbas, como eles diziam) não escolhessem outro rio e outro sítio para instalar a sua Usina.
Tudo o que Norberto não queria, quando chegou em casa naquela noite, era descobrir que a cretina da sua esposa armara aquela nova gravidez para tentar salvar um casamento que, há muito, já estava morto e enterrado. Ele se casara porque estava apaixonado. Mas paixão é uma coisa que dá e passa. Ele lera num site da Universidade de Pádua, na Itália, uma pesquisa que provava esse fato: a condição de apaixonado dura, em média, um ano. Às vezes se transforma em amor. Mas, ele sabia, amor é uma fruta raríssima nesta vida.
Ele gostava de Julieta, gostava da filha deles, mas tudo aquilo, aquele casamento, fôra um erro. Afinal, ele jamais fôra um homem de uma mulher apenas. Tinha muitas. Era louco por sexo, várias mulheres o atraíam de tal maneira que era impossível resistir. Julieta sabia disso, tentava tolerar as aventuras dele, desde que ele sempre voltasse para casa. Às vezes, não voltava. Passava fins de semana inteiros e feriados prolongados com a desculpa de viajar a trabalho, ela sabia que era mentira, que ele viajava sempre com alguma de suas “aventuras”.
Naquela noite fatídica, quando ele a acusou de ter deixado de prevenir a gravidez, de ter armado aquilo para tentar prendê-lo, ela disse:
-- Um filho não é “aquilo”, é um novo ser que nascerá daqui a seis meses, é o seu filho.
Ele respondeu:
-- Meu filho? Quem me garante? Eu sei muito bem que você anda enrabichada por aquele atorzinho de novela! Bem que eu vi o jeito que ele te olhava, na festa de lançamento lá na boate. Você até aceitou dançar com ele, debaixo do meu nariz!
Julieta desandou a chorar:
-- Como você pode me acusar de ser capaz de trair o meu próprio marido? Sou muito diferente de você, que quer comer qualquer cabo de vassoura que use saias!
Seguiu-se aquele velho conhecido quebra-pau que se repete sempre muito parecido em casais desencontrados, a diferença é que esse terminou com Norberto fazendo as malas.
A gritaria acordou a pequena Talita que, cheia de medo e angústia, saiu da cama para o corredor onde ficou sentada no chão, chorando, ouvindo a briga.
Quando Talita percebeu que seu pai estava jogando, com raiva, as roupas dentro da mala, quando ouviu o bater furioso das portas dos armários, criou coragem e apareceu à soleira do quarto dos pais.
Julieta correu para pegá-la no colo e leva-la de volta ao seu próprio quarto. A menina chorava. A mãe tentava acalmá-la.
-- O papai vai viajar de novo? – perguntou Talita.
-- Vai sim, querida. Mas ele sempre volta.
Desta vez, não voltou.
No processo de divórcio, ficou acertado que ele poderia ir buscar a filha para passar os fins de semana com ele. Mas ele raramente aparecia. Era de cortar o coração ver Talita vestir a melhor roupa e ficar à espera dele que, afinal, não viria. A garota, porém, cansou de entristecer, chorar, decepcionar-se com aquele homem que, verdade, era seu pai, mas que fôra capaz de deixa-las, a ela e a mãe, sozinhas e a mãe com aquela barriga que crescia e crescia, onde crescia também a sua irmãzinha (ela vira a imagem do feto no dia que Julieta a levou a Dra. Guilhermina para mais um ultrassom). Sua mágoa foi se transformando em raiva e, num fim de semana, quando ele finalmente apareceu, ela lhe disse:
-- Eu não quero sair com você, não. Pode ir para o lugar de onde veio!
Ele ainda tentou fazer um carinho na filha, meio desajeitado, mas ela saiu correndo e trancou-se no quarto.
Raivoso, ele disse à Julieta:
-- Você está fazendo a cabeça da nossa filha contra mim. É melhor parar com isso ou eu te meto um processo por Alienação Parental.
Com calma, ela respondeu:
-- Faça isso e Talita nunca poderá perdoar você.
Ele foi embora batendo a porta.
Nunca mais voltou. Tentava falar com a filha pelo celular, ela nunca atendia e, um ano depois, aprendeu como bloquear o número dele.
-- Que se dane! – pensou ele, que andava irritadíssimo, preso no meio da selva maranhense e tendo sempre aqueles malditos índios plantados à porta da planta da obra, carregando cartazes, protestando, convocando a imprensa, tentando, em vão, resistir à construção da barragem. – E a idiota da minha filha ainda quer ser jornalista, profissão para aventureiros, vagabundos, que vivem viajando e se divertindo em suas coberturas fora de suas redações, fazendo orgias noturnas nos hotéis onde se hospedam, falando contra o progresso, querendo proteger esses índios imbecis – pensava, revoltado.
Talita queria ser jornalista. Sempre quisera.
Quando, afinal, nascera sua irmãzinha, ela, recém alfabetizada, teve a chance de escrever a sua primeira reportagem. O título era “A Minha Irmãzinha” e o texto descrevia, com indiscutível talento, o parto de sua mãe, a alegria de ver o bebê mamando no seio dela, a volta do hospital para casa, o novo quarto, todo enfeitado, as paredes cor-de-rosa, os mobiles sobre o bercinho...
Julieta ficou tão orgulhosa daquela pequena repórter que a cobriu de beijos e carinhos e, por isso, Talita teve a certeza de sua mãe não a amaria menos apenas por ter mais alguém para amar. Julieta vivia mostrando o texto, repassando por e-mail para os avós, os tios e os amigos. Até a TV, onde sua mãe trabalhava, foi lá na casa delas para entrevistar a repórter mirim e Talita ficou toda orgulhosa quando viu a reportagem ir ao ar no programa feminino da tarde.
Norberto e Julieta se encontraram no cartório onde registraram a nova filha. Ele, emburrado, tendo vindo às pressas, do Maranhão, apenas para isso.
-- Onde está minha outra filha? – perguntou ele, irritado.
-- Na escola – respondeu ela.
-- Você quer mesmo que essa coitadinha desse menina se chame Rosa? É um nome antigo! Vão zombar dela, quando crescer e for à escola. – reclamou ele.
Mas Julieta estava irredutível. O nome da menina seria Rosa e pronto!
A pequena Rosa foi uma criança profundamente irritadiça. Embora Julieta e Talita a cobrissem de carinho e tolerassem suas crises de criança mimada, às vezes perdiam a paciência diante de tanta birra.
Julieta se culpava. Tive uma gravidez angustiada – pensava ela – com a separação de Norberto, com a tristeza... Bem que a Dra. Guilhermina me alertou para isso, me encaminhou para a psicóloga, para a hidroginástica... Mas, mesmo assim, eu transmiti para ela essa minha melancolia, o meu desespero... Por isso ela saiu assim, nasceu revoltada pela minha própria revolta.
Quando Talita, em 2013, com apenas 16 anos, conseguiu um estágio no Jornal de Bairro, como fotógrafa de reportagens comerciais, ficou maravilhada! Afinal, estava dentro de uma redação e tinha a oportunidade de observar o trabalho e o cotidiano dos jornalistas. Sua irmãzinha tinha apenas 8 anos, mas apesar da pouca idade, soube destilar uma de suas maldades:
-- Ué – disse ela – nunca imaginei que jornalista ia ficar fazendo fotos de lojas...
Talita não se dignou a responder.
Em 2015 entrou para a Faculdade de Jornalismo. Na Escola de Comunicações e Artes da USP, a Universidade de São Paulo. Foi uma aluna excelente e logo conseguiu estágio e, seis meses depois, efetivação como repórter num jornal tradicional e importante, primeiro na versão Internet do periódico e, depois, também na versão impressa.
Foi na faculdade que ela conheceu a triste história de uma importante e pioneira jornalista mulher da década de 1930, um tempo em que as mulheres nada mais eram do que esposas e mães e poucas se arriscavam em carreiras profissionais, consideradas à época um privilégio masculino. É verdade que as mais pobres, por sobrevivência, trabalhavam como operárias e em outras funções mais simples, como empregadas domésticas ou serviçais em bares e restaurantes, ou, ainda, como costureiras.
Eunice Brandão Gabardo** nascera em Juiz de Fora, nas Minas Gerais, no ano de 1920. Prima de Eugênia Brandão Moreya, crescera ouvindo falar nessa mulher, uma doidivanas, segundo sua família, que se fôra para o Rio de Janeiro, tentando aplacar a fúria que ia em seu peito. Trabalhou como balconista no começo, mas acabou sendo uma grande jornalista, respeitada, apesar de mulher, e casou-se com Álvaro Moreyra, um importante intelectual carioca. A casa deles, no Rio, era o equivalente à casa de Tarsila do Amaral, a pintora, e Oswald de Andrade, escritor, em São Paulo: ponto de encontro de intelectuais importantes no cenário nacional, pintores, poetas, os que passariam para a história. De Pagu a Drummond e Mário de Andrade.
Sabedora de toda a história da prima, Eunice juntou o dinheirinho da mesada que recebia dos pais e, quando completou seus 18 anos, fugiu de casa e foi, de ônibus, para o Rio. Bateu à porta da prima ilustre e ela – embora não a conhecesse – a acolheu com todo o carinho e escutou com atenção o sonho da jovem prima, de ser também jornalista. Deu-lhe teto, comida e afeto. Uma semana depois, Eugênia arrumou-lhe um lugar de “reportisa” num dos jornais em que trabalhara, convencendo o editor de que a menina tinha talento, que acabaria sendo uma profissional tão boa quanto ela própria, ou até melhor.
Assim, Eunice, apesar dos preconceitos que sentia nos seus colegas de trabalho, que acreditavam que redação de jornal não fosse o ambiente correto para o sexo feminino, foi, por suas reportagens, conhecendo o verdadeiro Brasil onde nascera.
Em 1937, apenas um ano antes da entrada de Eunice no jornal, Getúlio Vargas fôra bem-sucedido em seu golpe e instalara-se no Palácio do Catete como ditador, com plenos poderes e reprimindo toda e qualquer oposição, de maneira brutal. Era o chamado “Estado Novo”, que colocou o Partido Comunista na ilegalidade e instaurou a censura à imprensa.
Eunice cansou de ver as matérias que escrevia tendo largos trechos censurados pelo próprio editor, que sabia muito bem que estavam vivendo, naqueles tempos, a “política da rolha”, ou seja era preciso colocar uma rolha na própria boca, não dizer tudo o que pensavam, sob pena de ver seu jornal empastelado e seus empregos perdidos.
Eunice não se conformava. As matérias censuradas, ela as reproduzia, com a anuência e auxílio de Eugênia, no mimeógrafo que tinham em casa e distribuíam as cópias pelas ruas, com a ajuda de moleques contratados para isso. Era uma espécie de imprensa paralela.
Não demorou muito para que a Polícia Política de Vargas detectasse de onde vinham aquelas panfletos que defendiam a liberdade de expressão, a legalidade do PCB, as reivindicações das feministas, dos operários e dos sindicatos.
Um dia, quando Eunice saía para o trabalho, foi interceptada por um furgão, violentamente jogada dentro do veículo e levada à prisão. Lá, foi barbaramente torturada para que confessasse sua ligação com os comunistas. Foram 3 semanas de martírio. Além dos habituais métodos de tortura, ela teve seus dedos quebrados a marteladas. Finalmente, a jogaram, em frente à casa de Eugênia e Álvaro, numa madrugada, deixando-a ali, agonizante, na calçada.
Em vão, seus primos a tentaram reanimar. Ela dizia:
-- Quebraram os meus dedos! Nunca mais poderei escrever!
Confinada ao leito, três semanas depois adquiriu uma pneumonia que a matou em apenas sete dias.
Talita horrorizou-se com a história de Eunice.
Foi quando, em 2018, parte dos brasileiros conduziu a direita mais estúpida e ignorante ao poder, que Talita começou a sentir dores nos dedos da mão. E, muitas vezes, isso a dificultava de digitar seus textos no computador. Formou-se em 2019. Já havia consultado vários médicos para saber o que eram aquelas dores inexplicáveis.
Não era artrite reumatoide. Na verdade os médicos não conseguiam fechar um diagnóstico satisfatório. Foi para a fisioterapia, onde a fizeram movimentar os dedos dentro de água quente. Tomou anti-inflamatórios. Mas ainda assim, escrever, digitar, era um enorme sacrifício para ela. Foi aí que lhe falaram da feiticeira Circe, a mais festejada bruxa paulistana que atendia políticos, milionários, em seu casarão num bairro nobre de São Paulo.
Marcou a consulta, era caríssima, mas era também uma esperança.
Circe disse a ela:
-- Vejo aqui os resquícios de uma outra vida, anterior. Nela, você teve seus dedos quebrados a marteladas. Não posso dizer quando e muito menos porquê. Mas sei que aconteceu. Você escreve, é jornalista, e continuam as forças do Mal insistindo para barrar-lhe a expressão. Também existem indícios de uma grave oposição paterna à sua profissão. Você já procurou um médico especializado em Medicina Psicossomática?
-- Não – respondeu a moça.—Mas meu pai virou bolsonarista, está cheio de ódios contra o mundo e, em particular, como seu mestre americano, Trump, contra os jornalistas.
-- Procure um médico dessa área –disse Circe – conte a ele que eu vi seus dedos quebrados numa vida passada. Ele deve encontrar uma solução. Trate também de enfrentar a oposição paterna. Vá fazer uma matéria para o seu jornal lá, na Usina que seu pai ajudou a construir no Maranhão, vá à aldeia indígena, pesquise, não perca tempo escrevendo com dificuldade. Dite tudo o que escreveria, grave no celular e depois arranje alguém para digitar para você.
Talita saiu da consulta disposta a enfrentar a oposição paterna. Ela agora trabalhava em um site independente que, na Internet, vivia a denunciar os desmandos do atual governo. Conseguiu convencer seu editor a mandá-la ao Maranhão, onde uma Usina havia prejudicado grandemente a vida na terras demarcadas dos povos indígenas Awá-Guajá.
Na reserva, entrevistou alguns líderes indígenas, entre eles, Tainá.
-- Ah –disse-lhe Tainá – minha filha, Jaci, ainda era uma criança quando esses caraíbas desviaram o curso do nosso rio para construir essa Usina. Fomos obrigados a nos adaptar as novas condições de vida. Nossa pesca caiu muito. Somos um povo que vive da caça e da coleta, basicamente. Nossas florestas vêm sendo destruídas por madeireiros e outros predadores brancos. Nosso rio, que era corrente, agora é um lago de águas paradas. Muitas árvores morreram porque o solo deixou de ser irrigado pelas águas que se renovavam e agora estão inertes. Muitos pássaros se foram porque já não encontravam os galhos para fazer seu ninho. A vida, como o rio, acabou desacelerada. É por isso, e por muito mais, que temos nos organizado para ir à Brasília protestar. Queremos respeito às nossas terras demarcadas e mesmo aos seus limites. A Usina foi construída no limite das nossas terras e, nem por isso, deixou de agredi-las e modificá-las. Eles nos explicaram, e nós compreendemos, que a Usina traria muitos benefícios ao povo de nosso estado. Porém, como sempre, os benefícios dos caraíbas implicam o malefício dos povos originários dessa terra. Terá o nosso povo que perecer para que os caraíbas obtenham o seu chamado progresso?
-- Sua filha também é uma líder nos protestos? – perguntou Talita.
-- Não –riu Tainá – Ela é uma feiticeira, sua atuação em nossa causa, é diferente. Se dá entre as estrelas e sob a terra, nas raízes das árvores e pela comunicação entre todos os seres vivos.
-- Você poderia me explicar como isso se dá? – perguntou Talita.
-- Jaci, a minha filha, quando ainda era pequena, ficou sabendo que sua avó, minha mãe, fôra uma poderosa bruxa indígena, entendia a linguagem das estrelas e também a das plantas, principalmente a das árvores que, embora quase todos nem desconfiem disso, se comunicam umas com as outras através de suas raízes sob a terra.
Quando soube dessas histórias, Jaci passou dedicar muitas horas de seus dias a caminhar pela Floresta, atenta a todo e qualquer sinal. À noite, mirava o céu e, logo conseguiu entender as mensagens das estrelas, mesmo aquelas que já morreram e cuja luz só está chegando a nós agora, essa luz, dessas estrelas mortas, conta a ela histórias do passado distante. Minha filha tornou-se sábia e participa das reuniões em que discutimos a melhor estratégia para enfrentar a política ceifadora que ora se instalou em nosso país. Ela quase não fala. Mas, quando fala, tem sempre uma história sábia, ou mesmo apenas uma palavra sábia, que aprendeu com as estrelas e com a floresta.
Talita foi à Usina. O assessor de imprensa que a recebeu falou longamente sobre os muitos empregos gerados pelo empreendimento, sobre o custo reduzido da energia elétrica para todo o estado do Maranhão, mostrou-lhe as modernas instalações, todo o equipamento (importado) de tecnologia de ponta, com orgulho e satisfação. Mas quando ela perguntou sobre os awá-guajá, ele não foi assim tão amistoso:
-- De fato, esses indígenas não têm do que reclamar. Nossa localização é limítrofe às suas terras demarcadas e, embora eles digam o contrário, a construção da Usina não lhes trouxe prejuízo.
Talita argumentou:
-- Mas os awá-guajá afirmam que a obra não só danificou o rio que cortava a aldeia como também mudou o solo e, por consequência, a floresta.
-- Ora, minha cara – respondeu ele – No mundo todo e também aqui no Brasil, paisagens e paisagens são alteradas pelas obras que trazem o progresso tecnológico. Isso nunca prejudicou ninguém. Tudo se adapta.
-- Será? – perguntou ela.
De volta, Talita ditou uma longa matéria com todas as considerações de ambos os pontos de vista. Dos indígenas e da Usina. Veio gravando suas observações já no avião que a trouxe. Para sua absoluta surpresa foi a sua irmãzinha, Rosa, quem se ofereceu para transcrever as gravações e, depois, o texto final da matéria.
Matéria, aliás, que bombou na Internet. Gerou discussões, comentários, alguns indignados, outros de puro aplauso. Ilustrada pelas lindas fotos da Natureza, na aldeia, e pelas fotos da moderníssima Usina, a matéria de Talita foi sucesso em todas as redes sociais. O editor estava radiante. Talita também. Sabia que estava dando sua contribuição para o debate de questões que a grande mídia preferia varrer para baixo do tapete.
Imagine – pensou ela – se Eunice tivesse as ferramentas da WEB no tempo em que viveu... Se tivesse a liberdade de expressão mais assegurada (mas nunca totalmente!) por um regime democrático!
Enquanto Julieta se orgulhava do primeiro sucesso de sua filha na carreira, Norberto se debatia entre o ódio pela jornalista brilhante e o amor, que ainda sentia, pela filha. Mas o ódio sempre o vencia.
O médico psicossomático que atendeu Talita, Dr. José, por sugestão de Circe, explicou a ela que a sua dificuldade de digitar, as mãos trêmulas, eram mais que uma reação psicológica, que os transtornos funcionais realmente poderiam ser uma resposta física a um estado mental. A oposição do pai dela e mais a história verdadeira da jornalista que morrera por ter seus dedos quebrados a marteladas, criaram uma situação, em sua mente, que se traduzia pela impotência.
No entanto, ela enfrentara essa impotência e a vencera!
Aos poucos, o tremor das mãos, a semiparalisia dos dedos, foram sendo superadas.
Talita foi crescendo na carreira e agradecia a todos: à Tainá, líder dos awá-guajá; à sua irmãzinha, que surpreendente a apoiara no momento mais difícil; à sua mãe; ao seu editor que apostara nela e, principalmente, ao médico, à Circe e aos seus leitores.
Afinal, ela sempre soubera que seria jornalista. E era. Sempre fôra.
*Usina fictícia
**personagem fictício
Bel, 2021, setembro, 17 a 22.
veja antes: Outro Saber (1a. história Awá-Guajá)
veja depois: Irmãs (outra história Awá-Guajá)
Comentários