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Irmãs

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    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 26 de set.
  • 18 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3




Elon Brasil, Mãe, Filha e Pássaro
Elon Brasil, Mãe, Filha e Pássaro

-- Minha irmã é uma jornalista importante, é mais velha do que eu, sete anos mais velha. Seu primeiro sucesso foi, há um ano apenas atrás, com um matéria sobre a Usina elétrica do Maranhão (que o nosso pai ajudou a construir para levar progresso a aquele pobre estado nordestino) onde ela defendia os índios e falava mal do nosso próprio pai. Ela dizia que a Usina teria prejudicado o meio ambiente da aldeia de uns tal de awá alguma-coisa...Não me lembro. Imagine! Eles não chegavam a 400 indivíduos e acreditavam que, para que não tivessem que se adaptar a uma nova realidade, poderiam ter o direito de prejudicar a economia e o progresso de um estado com mais de 7 milhões de habitantes. A romântica da minha irmã – Talita é o nome dela – ficou contra o próprio pai e ao lado dos índios bocós! Por isso que a Globo nunca convidou ela para trabalhar lá! Ela está até hoje naquele jornal comunista da Internet e tem um séquito de seguidores nas redes sociais. Por eles, o Brasil ainda viveria na Idade Média!

 

-- Mas você não acha – perguntou Elton – que é possível construir usinas sem destruir a casa dos outros?

 

-- Não, Elton. – respondeu Rosa com firmeza. – Você veja os europeus, por exemplo, eles estão muito preocupados com a preservação da Floresta Amazônica. Mas o que eles fizeram com as florestas de seu próprio continente? Destruíram quase tudo! Por que? Em nome do progresso e do avanço tecnológico. Agora, que perceberam a besteira que vieram fazendo durante séculos, querem que nós, brasileiros e outros povos da Amazônia, preservemos a floresta em nome da suposta saúde do planeta.

 

-- Calma lá, mocinha! – disse Elton – Os europeus têm colaborado, e muito, com a preservação da Amazônia. Com grana mesmo! Muita grana! E, a cada dia mais, trabalham para encontrar soluções de continuar o progresso tecnológico e material, mas agora com sustentabilidade. O seu pai poderia ter planejado essa Usina de outra maneira, de forma a não agredir tão violentamente o habitat dos povos indígenas.

 

-- Começa que não foi o meu pai quem construiu a Usina, eita! Ele foi só um dos engenheiros e continua que você mesmo, sempre tão ecológico, chamou a aldeia de “habitat”, quem tem “habitat” é bicho, cara! Índio é gente, não bicho. No fundo você também acredita que as reservas são uma espécie de jardim zoológico! – respondeu Rosa, não sem uma certa irritação.

 

-- Tá bom! Me enganei! Mas você sabe que o português não é a minha língua original. Eu nasci em Nova Iorque, não domino tanto assim a língua de vocês. Eu queria dizer “meio ambiente”.

 

-- Não conheço tanto assim a região da Usina para saber se havia alguma forma de realizar o projeto sem afetar a aldeia deles! E mesmo assim eles são cerca de 400 pessoas, contra 7 milhões e duzentas mil que se beneficiam da obra até hoje. E olhe que isso aconteceu quando eu nasci: há 18 anos! Você diz que não domina a nossa língua, mas me chama de Rosa... você sabe que odeio esse meu nome! Prefiro Rose ou simplesmente Rô.

 

Os pais de Elton estavam já havia 5 anos no Brasil, como funcionários, os dois, do Consulado Americano em São Paulo. Ele completara seu ensino médio numa escola bilingue e dominava, sim, muito bem a língua portuguesa, até porque, se não dominasse, dificilmente teria sido ingressado na Escola de Arquitetura. Fôra lá, na faculdade, pouco antes das escolas fecharem por causa da Covid-19, que conhecera Rosa e sentira, imediatamente, uma forte atração por aquela caloura. Estavam namorando havia uns três meses, tempo suficiente para que Elton descobrisse que a moça era voluntariosa, temperamental, ciumenta e dada a grandes crises de uma raiva súbita que ele não conseguia descobrir de onde vinham. No entanto, era ali, nas camas dos motéis da cidade, que eles se davam bem demais, o suficiente para que ele esquecesse o temperamento da namorada.

 

Tudo o que Elton queria era ouvi-la gemendo quando ele lhe mordiscava os seios, ou quando os seus grossos dedos faziam malabarismos com o clitóris dela, antes que ambos se deliciassem com o, para ele muito espirituoso,  “sixty nine”, expressão que só poderia ter sido inventada por brasileiros. Ela gozava antes mesmo que ele a penetrasse e depois gozava de novo, transformando os gemidos em urros, quando ele estava dentro dela. Por esses momentos de prazer, ele a perdoava pela difícil convivência.

 

Naquele fim de tarde, no motel, como em quase todos os dias, tinham feito sexo e, agora, se punham a conversar, tomando suas taças de vinho tinto. Os celulares, desligados. Primeiro para que não fosse interrompidos e, depois, para honrar o que Julieta, mãe de Rosa, julgava um compromisso importante: evitar os benditos smartphones, sempre que houvesse a possibilidade de uma boa conversa presencial. Elton não sabia disso porque Rosa, ou Rose, jamais falara de sua própria família para ele. Hoje fôra a primeira vez que se referira a ela. Leitor ávido do site em que Talita atuava, ele ficara realmente surpreso ao saber que aquela jornalista era irmã de Rosa.

 

-- Você disse que sua irmã é sete anos mais velha que você. Ela tem família? É casada? – perguntou ele.

 

-- Eita! E por que você quer saber da minha irmã?

 

-- Porque eu sou um dos seguidores dela, adoro o que ela escreve! Suas matérias são excelentes e bastante esclarecedoras, principalmente as que tratam dessa confusão política em que o Brasil está metido. -- respondeu ele.

 

-- E o que tem a ver ela ser casada ou não? -- perguntou Rosa.

 

-- Nada não. Só curiosidade mesmo -- disse ele, tomando um gole de vinho -- Você nunca me falou da sua família.

 

-- Ah, meu pai nos abandonou quando eu ainda estava na barriga da minha mãe. Eu detesto ele! Nunca vinha me ver quando eu era criança e eu ficava, nos fins de semana, esperando por ele. Chorava porque ele não vinha. Até que percebi que não poderia mesmo me importar com alguém que não se importava comigo. Se o vi umas quatro ou cinco vezes na vida, foi muito.

 

-- E sua mãe? Casou-se novamente?

 

-- Não. Ela tem uns namorados fixos, faz tempo. Mas nunca quis se casar com nenhum deles.

 

-- E moram só você, ela e a sua irmã? Têm mais irmãos?

 

-- Não. Moramos só eu e a mãe. A Talita tem seu próprio apartamento e viaja bastante por causa daquele site comunista.

 

-- Por que você fica dizendo que o site onde sua irmã trabalha é comunista? Nada a ver. Eles têm uma posição de denúncia de corrupção e peculato na política e nas grandes empresas. Mas isso não quer dizer que sejam comunistas, pelo amor de Deus!

 

-- Você é que pensa, todo mundo sabe que uma geração inteirinha de jornalistas, entre eles a minha irmã, é de esquerda! – respondeu ela, já quase gritando.

 

-- Errado. Ser de esquerda não é a mesma coisa que ser comunista. À esquerda estão os humanistas, os cristãos, os de centro-esquerda e todos os cidadãos dispostos à solidariedade, à empatia com o sofrimento de seus irmãos menos afortunados.

 

-- Tá vendo? Tudo um bando de comunistas. Além disso os evangélicos são cristãos e não têm nada a ver com isso que você está chamando de esquerda. Eles apoiam o Bolsonaro!

 

-- Ora, Rose, você sabe que os evangélicos são cristãos, como dizem vocês, “pra inglês ver”, ou seja, eles são, mas é mercantilistas! Fazem lavagem cerebral nos fiéis só para arrancar os dízimos e mais um monte de dinheiro dos coitados dos iludidos...

 

-- A igreja católica faz exatamente a mesma coisa!

 

-- Você sabe muito bem que a igreja católica é muito diferente deles. E, veja bem, eu que venho de uma família de protestantes, sei que a igreja católica está revendo seus próprios erros, agora, desde que surgiu esse Papa Francisco, que luta para humanizar a igreja.

 

-- Outro comuna, esse Papa, isso sim!

 

-- Qualquer pessoa que defende a democracia e a liberdade não pode se comunista. Essas duas coisas não existem nos países que adotam o regime comunista!

 

-- Ai, que papo mais chato esse nosso. Pode parar. Vamos embora que eu prometi encontrar a minha irmã no shopping às nove horas.

 

-- A sua irmã que você chama de comunista? Pensei que vocês não se davam.

 

-- A gente se gosta, até. Afinal, somos irmãs. Mas eu não concordo com as ideias dela, assim como ela não concorda com as minhas. A gente só se encontra, quando ela não viaja a trabalho, a cada duas quartas-feiras. Pra fazer compras e jantar na Praça de Alimentação. Combinamos não discutir mais política. E, aliás, acho que nós dois deveríamos fazer a mesma coisa!

 

-- Não acho, não. É da discussão que nascem novas ideias, mas acho que no Brasil e hoje ninguém mais sabe discutir, só se xingar e brigar. Em que shopping vocês vão?

 

-- No Morumbi, é perto das nossas casas.

 

-- Sempre no mesmo?

 

-- Sempre. Vamos lá desde que éramos crianças. Por que você quer saber?

 

-- Por nada, não. Só curiosidade.

 

-- Você hoje está muito curioso pro meu gosto.

 

A verdade é que Elton ficara muito curioso mesmo com a possibilidade de conhecer pessoalmente a jornalista Talita, de quem ele era um fervoroso seguidor nas redes sociais. Irmã da namorada! Incrível. Um dia, acabaria por conhece-la. Quase pediu para ir junto ao Shopping, mas sabia que Rose não ia gostar nem um pouco disso.

 

Enquanto Talita e Rose jantavam, Elton foi para casa e enterrou-se, de corpo e alma, em seu notebook. Passou horas e horas navegando pelas matérias e postagens de Talita, viu novamente suas fotos e postagens no Facebook, Instagram e TikTok. Estava cada vez mais curioso. Seria Talita – que era tão ou até mais bela que sua irmã – o mesmo vulcão na hora do sexo, disposta e tarada como era Rose? Quem sabe?

 

Continuaram, Elton e Rosa, indo ao motel, mas foram diminuindo a frequência. Por ela, não diminuiriam, mas ele alegava que tinha que estudar, que precisa levar os pais ao supermercado porque o carro deles estava na oficina (o que era mentira) e qualquer outra desculpa que conseguisse. A verdade é que ele estava ficando bastante incomodado porque, agora, sempre que fazia sexo com ela, imaginava que estava com Talita.

 

Numa quarta-feira, em que ela disse que iria encontrar-se com a irmã, ele não aguentou. Não sabia bem o que iria fazer. Só sabia que precisava ver, de perto, Talita. Estacionou seu carro na garagem do shopping e foi para a Praça de Alimentação. Começou a procura-las e, de repente, lá estavam elas, sentadas num restaurante vegetariano. Foi sentar-se ele também, no restaurante ao lado, meio escondido numa mesa de canto, mas sem perder as irmãs de vista. Quando elas saíram, depois de quase duas horas, Elton – que tinha pago a conta adiantada – foi atrás. Tentando não perde-las de vista. Entraram no elevador. Ele entrou também espremendo-se e escondendo-se no meio das pessoas. Ainda bem que todo mundo agora usa máscara, pensou ele, que estava com os cabelos presos num boné enterrado até o meio da testa. Por sorte, elas estavam conversando sobre os bons preços que tinham encontrado em algumas lojas e não olharam para ninguém. Rose desceu no primeiro subsolo, como a maioria dos que estavam no elevador. Elton aproximou-se de Talita e disse:

-- É uma honra conhece-la pessoalmente. Sua irmã Rosa sempre fala muito de você. Eu sou Elton – finalizou estendendo-lhe a mão.

 

Talita retribuiu o cumprimento e olhou-o nos olhos... Azuis. Aquele sujeito deveria ser bem bonito mesmo – pensou – e disse:

--Elton? Você é o namorado de Rose? Olha, ela desceu no primeiro subsolo.

 

E ele, munindo-se de todas a coragem que era capaz:

-- Não vim aqui para encontrar a sua irmã. Vim para conhecer você.

 

A porta se abriu, saíram. Talita, assustada, não sabia o que dizer, mas disse:

-- Se queria me conhecer deveria ter pedido a Rose que nos apresentasse.

 

Elton disse:

-- Ela não faria isso. Sabe que eu sou seu fã, seguidor fiel, há meses, nas redes. Sabe que me identifico com as matérias que você escreve. Ela é ciumenta demais para correr o risco de me apresentar a você.

 

Talita riu:

-- E eu? Estou correndo algum risco agora?

 

-- Sei que você já jantou – respondeu ele – O único risco que você corre agora é o de ir tomar um licor comigo naquele bar tradicional lá na Avenida Paulista.

 

-- Que bar tradicional? – perguntou ela, já rindo.

 

-- O Riviera.

 

-- Não é aquele bar que passou anos fechado e foi reaberto depois? Minha mãe me contou que foi lá que conheceu meu pai. Eles eram estudantes e o bar era um reduto de esquerdistas ainda no tempo da ditadura militar. No tempo dos meus pais, porém, ir ao Riviera não passava de uma curiosidade histórica, o bar vinha decaindo desde o começo dos anos 1990. Mas todo mundo queria conhecer o Riviera, que fôra o reduto dos intelectuais, artistas, todos contra o regime militar e na verdade – riu de novo – talvez esperassem encontrar alguns dos famosos, ainda por lá.

 

-- Você não conhece, então, o novo bar? É lindo! Vamos lá tomar um coquetel histórico, eles, os novos donos, criaram um coquetel diferente para cada década do Riviera, desde a década de 1950.

 

Foram.

 

Aquela foi a última noite, em 2020, em que o bar funcionou. A pandemia estava destruindo toda a alegria de conviver e isso incluía um dos bares mais tradicionais de São Paulo. Enquanto os paulistanos se arriscavam nos shoppings e em outras aglomerações perigosas, ali havia muito pouca gente. Talita, que só queria matar a sua própria curiosidade em conhecer o namorado da irmã, de repente percebeu que há muito não se entendia tão bem com alguma pessoa, como estava se entendendo com Elton.

 

Saíram de lá direto para o apartamento dela.

 

Assim como se haviam deliciado com a produtiva e incansável conversa que tiveram no Riviera moribundo (de novo!!) e que durou horas, também se deliciaram um com o corpo do outro.

 

O celular de Talita a acordou, como sempre às sete horas. Às nove ela entrava em vídeo conferência com a redação de seu famoso jornal da WEB.  Meteu-se no chuveiro. Elton roncava, mal despertara com o alarme e voltara a dormir. Embora trabalhando em Home Office e quase em total solidão, a não ser contatos virtuais e entregadores de compras, Talita sempre se vestia bem. Salto alto, roupa caprichada e maquiagem, pois afinal muita gente a veria pelas telas dos computadores e celulares. Estava se olhando no grande espelho da sala quando viu Elton, completamente nu, sem máscara e de pau duro, aproximando-se. Ele a enlaçou por trás e disse, com o sorriso mais belo que ela já vira:

 

-- Good morning, my love.

 

Ela voltou-se, ficando de frente a ele e se afastou do abraço, empurrando-o delicadamente:

 

-- Escute bem o que vou dizer, little boy! Essa noite nunca aconteceu, você está me entendendo? Never! We’ve never actually met! Forget it! Don’t say anything of this for anyone. Principalmente para minha irmã!

 

-- Talita – disse ele, desconcertado, e sentindo o pau ir baixando – Como assim? Você é o amor da minha vida! Vai me dispensar desse jeito? Sua irmã, para mim, nunca passou de uma boa trepada! Você é a mulher que eu tanto admirei e, depois que soube que você era irmã dela...—titubeou – nunca mais consegui ir pra cama com ela sem pensar em você.

 

-- O que? Você é tarado ou o que? Vá se vestir e vá embora. Nunca mais quero vê-lo. Nossa noite juntos não passou de uma aventura irrefletida, causada pela sua bajulação, por meu ego inflado por sua bajulação e por coquetéis de várias décadas, sabe-se lá com que esdruxulas misturas de álcool!

 

Ele ainda tentou abraça-la. Mas ela se esquivou e disse, com a voz mais triste do mundo:

-- Por favor, vá embora e esqueça essa noite. E, principalmente, não cometa a crueldade de contar essa aventura à Rose.

 

Ele foi, mas não estava disposto a esquecer nada e, muito menos, a renunciar àquela mulher, que agora ele sabia, seria para sempre o amor de sua vida. Decidiu dar um tempo. Chamou Rose para se encontrar com ele num parque. Ela foi. Mas já chegou muita brava:

 

-- O que viemos fazer aqui? Apreciar as árvores e os passarinhos?

 

Sentaram-se num banco e ele disse:

-- Rose, sem rodeios. Precisamos terminar o nosso relacionamento.

 

-- Por que? – perguntou ela assustada.

 

-- Porque encontrei o verdadeiro amor e vou me casar com ela.

 

-- Bem que eu desconfiava que para você eu nada mais fui além de uma boa trepada! – disse ela, furiosa e já ficando vermelha.

 

-- Nós fomos muito felizes juntos – respondeu ele – mas eu não sou o seu amor e você não é o meu. Vamos terminar por aqui e, um dia, você também encontrará o seu verdadeiro amor e será feliz.

 

-- Feliz como você está agora? – perguntou ela, cheia de sarcasmo.

 

-- Ainda não estou. Ela me rejeita nesse momento, mas acabará reconhecendo o nosso amor.

 

-- Pois espero que ela não reconheça! Passe bem, Elton! Até nunca mais! – e saiu, pisando duro e deixando o agora ex amante a imaginar o que ela faria quando descobrisse quem era o seu amor.

 

Naquela noite Talita sonhou que estava de volta à aldeia dos awá-guajá. Mas não àquela aldeia onde ela fôra fazer a reportagem sobre a Usina. Era diferente, não existia lago, nem barragem e as florestas eram muito mais densas, muito mais verdes. Nenhum dos indígenas que estavam ali lhe pareceu familiar. E ela passara muitos dias com eles. De repente, estava numa oca, onde também estava Tainá, a quem ela entrevistara.

 

-- Salve, minha mãe Niara, sábia feiticeira! – disse Tainá -- Bom revê-la. Ainda mais agora que o nosso povo vem sofrendo todas as ameaças que sempre sofreu dos caraíbas e mais essa doença deles, essa nova, a tal de covid, que já matou muitos de nós. Niara, mulher poderosa e determinada, me aponte algum caminho... Nosso povo está doente, sem amparo, sem assistência alguma dos nossos inimigos... Pergunte às estrelas! Descubra alguma erva que possa nos preservar dessa doença horrorosa, pior do que todas as outras que eles já nos trouxeram... Minha mãe, ajuda!

 

Então, Talita se viu na aldeia, tal qual a conhecera quando fôra lá fazer a reportagem. Barragem, sem rio, lago inerte, poucas árvores na floresta, nenhum canto dos pássaros. Gritou de pavor!

 

O grito do sonho a despertou com um salto, sentada na cama, empapada em suor.

 

Manhã seguinte contatou seu editor pela what’s app:

-- Preciso voltar para os awá-guajá!

 

-- Por que? Você enlouqueceu? Em plena pandemia? O que você quer ir fazer lá? – perguntou ele.

 

-- Sonhei que eles estão sofrendo com a COVID-19 e sem ninguém que os ampare!

 

-- Ora, Talita – respondeu ele – todos os indígenas estão na mesma situação. O que você poderá fazer por eles?

 

-- Ao menos o mínimo – respondeu ela – Vamos denunciar a situação deles! Vamos dar visibilidade ao sofrimento deles e ao descaso que, como sempre, o governo federal têm para com os que padecem. Farei fotos, mostrarei tudo...

 

-- Bem, OK. Mas você levará um médico junto. Com o que conseguirmos de testes, máscaras de boa qualidade, litros de álcool em gel e o que mais o doutor quiser. Vacinas, infelizmente, dependem do SUS. Mas, se houver um posto próximo, leve os indígenas mais velhos primeiro e, depois, todos!

 

Talita riu:

-- Isso está mais me parecendo uma expedição do que uma reportagem.

 

-- Se é pra ser humanitário – respondeu o editor – então, serviço completo!

 

Foram. Mal tinha descido do pequeno avião monomotor que os trouxera de São Luiz e Tainá viu de novo aquela repórter, veio correndo ao seu encontro.

 

-- Eu sabia que você voltaria – disse a awá-guajá à Talita – Sonhei essa noite com a minha mãe, Niara, eu contei, você sabe, a minha mãe feiticeira, e pedi a ela que mandasse pro meu povo alguma solução! E agora você está aqui.

 

-- Calma lá – disse Talita com toda ternura que conseguiu colocar na própria voz – Eu não sou nenhuma solução. Sou uma simples jornalista e vim aqui para tentar mostrar ao resto do Brasil a situação em que os indígenas se encontram, agora, com essa pandemia.

 

-- Sim – disse Tainá – caminhando ao lado dela – Essa é uma solução. Nós precisamos de médico, de assistência... Já somos tão poucos, assim, com essa, mais essa, doença terrível que os caraíbas nos trouxeram, acabaremos de vez. Muitos já morreram aqui na nossa aldeia.

 

Talita estava assustada. Será que tinham, ela e Tainá, sonhado o mesmo sonho? Até o nome da feiticeira era o mesmo... Niara... Ou será que ela agora é que estava imaginando isso? Fôra um sonho tão nítido, tão diferente dos sonhos habituais...

 

Os dias que passou na aldeia foram de fato mais semelhantes a uma expedição do que a uma matéria. O jovem médico que a acompanhara levava os indígenas, aos montes, para a cidade mais próxima e exigia que eles fossem vacinados. Da primeira vez, a funcionária disse: “Nós estamos vacinando apenas os cidadãos, os índios terão a vez deles” – Escolhera mal a palavra. O médico respondera:

-- Os indígenas são cidadãos brasileiros como quaisquer outros.

 

Na véspera da manhã em que o avião iria busca-los, Jaci convidou Talita para ir à floresta com ela. O sol se punha e avermelhava as águas paradas do grande lago que substituíra o leito do rio. A feiticeira disse à Talita:

-- Eu era muito criança quando construíram a usina. Mal me lembro de como era então a nossa aldeia. Porém, se eu fecho os olhos e peço ao espírito que tudo sabe, consigo ver claramente como era antes: a floresta mais densa, o solo mais úmido, muito mais pássaros e animais. Chovia muito mais e com mais frequência. Agora o chão tem uma camada de areia por cima e o vento se encarrega de levar a poeira até nós, ressecando nossos narizes, fazendo doer a nossa garganta, sujando as nossas ocas. Quando me canso disso, eu fecho os olhos e os espíritos do passado me levam para a paisagem que estava aqui antes da destruição. Quer experimentar ir comigo?

 

Talita riu:

-- Só vocês, bruxas, são capazes disso.

 

A jovem balançou a cabeleira negra numa negativa:

-- Todas as mulheres são bruxas, mas se esqueceram disso. Venha comigo. Sentemo-nos aqui nesse velho tronco. Feche seus olhos, me dê as suas mãos e tente ver o filme que passa dentro das minhas pálpebras. Você não pode duvidar, como agora está duvidando em seus pensamentos. Eu sei que você já viu essas imagens num sonho. Veja agora, dentro dos seus olhos, mas sem dormir.

Talita titubeou. Mas as mãos de Jaci pareciam dotá-la de uma certeza. Eram mãos rudes, fortes, calejadas. Suspirou. E, de repente, como se uma cortina se abrisse, lá estava a aldeia como fôra há décadas passadas. E lá estava Niara, a avó de Jaci, coletando frutos e folhas e ervas no solo úmido da floresta.

 

Não saberia dizer quanto tempo durou aquela visão.

 

Quando as mãos das duas mulheres se soltaram e elas abriram os olhos, Jaci riu:

-- Estivemos num tempo que já não existe mais. Minha avó esteve conosco. Não estaria, se não tivéssemos, ela e eu, esse laço de sangue. Mas você é caraíba. Certamente não tem uma gota sequer de sangue awá-guajá. Você pode vê-la porque, em outra vida, o seu espírito estava no corpo dela e agora é o espírito dela que habita seu corpo. E esse laço é mais forte que o sangue, mais forte que a própria morte. Você vai partir amanhã, de volta pra sua grande cidade, onde seus semelhantes caraíbas perseguem valores que, de fato, nada valem. Leve com você a nossa lembrança, o nosso laço com a Terra e com tudo o que está vivo sobre ela.

 

Talita acariciou os cabelos de Jaci:

-- Jamais poderei me esquecer. E, quando puder, eu volto.

 

Nunca pôde voltar. A sua vida seguiu outros rumos.

 

Quando desembarcou no aeroporto de São Paulo, Elton a esperava. Sem querer, ela sorriu. Disse:

 

-- Como você sabia?

 

Ele a abraçou e, desta vez, ela aceitou o abraço. Ele respondeu:

-- Fiquei amigo do seu editor.

 

-- Você é impossível! – disse ela e percebeu que estava feliz.

 

-- Olhe – disse ele, entregando-lhe um pequeno embrulho de papel pardo – eu comprei isso para você, na loja virtual do Léo Rocha, aquele indigenista do Discovery TV, a loja se chama Tucum.

 

Ela abriu. Era lindo demais!

 

-- Os colares Voltas do Xingu são usados nas festas e rituais dos povos do Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso. – explicou Elton— Chegam a ter 200 voltas de miçangas em fio de algodão. Este aqui foi desenvolvido por uma artista chamada Ynê Kuikuro. Escolhi-o por ser branco, a cor da paz. Uma cor que combina com você. E também porque vai ficar lindo com o vestido que você escolher para a nossa cerimônia.

 

Talita riu:

-- Cerimônia? Que cerimônia?

 

-- Não sei – respondeu ele – Ainda não sei, mas será a cerimônia que você escolher para selar a nossa união. Case-se comigo.

 

-- Não, Elton. Não posso fazer isso com a minha irmã.

 

-- Nas três semanas – uma eternidade – que você esteve com os awá-guajá, eu avisei a ela que encontrara o amor da minha vida. Não disse que era você. Ela saiu pisando duro, mas já arrumou outro cara, outro namorado. Não vai se importar conosco.

 

Talita e Elton foram viver juntos e juntos ficaram até a morte de um deles. Não vou dizer qual. Deixo para a imaginação de vocês.

 

Na sua segunda reportagem sobre os awá-guajá, em 2021, Talita perdeu boa parte de seus seguidores na Internet. “Dessa vez, ela extrapolou” – diziam alguns. E outros: “aqueles índios devem ter dado alguma erva pra ela fumar”. Ou ainda: “endoidou de vez”.

 

Sua matéria, então, começava assim:

Pelas mãos de Jaci, transportei-me para a beleza das terras awá-guajá antes que os brancos pusessem suas patas nela e muito a prejudicassem. Pelas mãos de Jaci, fui ao passado, quando a floresta era majestosa e as águas correntes do rio a irrigavam, e o povo era feliz, corado, de pele hidratada e ouvidos embebidos pelo canto dos pássaros. Hoje, tudo mudou. Menos o espírito dos meus irmãos e minhas irmãs, guerreiros e belos, que agora lutam para que essa destruição não arruíne completamente a sua etnia. Pelas mãos de Jaci consegui compreender que todos nós somos de fato irmãos de tudo o que está vivo sobre o nosso planeta. Compreendi a nossa extrema dependência da Natureza e a verdadeira beleza do mundo.

 

Bel, 2021, setembro, de 22 a 25

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