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A Vingança de Valentina

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 24 de set.
  • 18 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano



Di Cavalcanti, 1959, Mulhercom Flor nos Cabelos
Di Cavalcanti, 1959, Mulhercom Flor nos Cabelos

Valentina sempre fora um prato cheio para as futriqueiras da pequena cidade do sul brasileiro. Casara-se aos 18 anos com o mais rico comerciante local, dono de um próspero armazém que dominava o abastecimento de gêneros de primeira necessidade do município.

As más línguas de plantão diziam que a fortuna de Homero Fontoura fora construída por seus antepassados às custas de muitas pilhagens e outros atos ilícitos. Havia até uma história misteriosa sobre o suposto assassinato de um outro comerciante que fazia, em velhos carros de boi, a mesma rota comercial do avô de Homero.  Mas, a despeito de todos os boatos sobre um passado obscuro, o dono do Armazém Geral fora, na década de 30, o mais cobiçado partido entre as filhas casadoiras dos próceres do município.


Para a surpresa de muitas famílias, que cobiçavam unir-se ao prestígio e ao dinheiro dos Fontoura, o jovem preferira casar-se com Valentina, filha da costureira que atendia às famílias ilustres. Era uma moça bela, é verdade, e dona de uma famosa cabeleira negra que lhe batia à cintura. Sempre bem vestida, graças ao profissionalismo da mãe que a usava, inclusive, como modelo, herdara do pai anarquista um estranho gosto pelas questões políticas, cultivava o hábito da leitura e outros hábitos incomuns para as moças de então, como mandar vir da capital, todas as semanas, os jornais. Bem informada, identificada com as lutas feministas que campeavam no Rio de Janeiro e em São Paulo, fora vista muitas vezes defendendo o direito do voto para mulheres e, por tudo isso, assustava um pouco os rapazes que poderiam se interessar por ela e que, certamente, prefeririam ter por esposa uma moça mais recatada, mais dentro dos moldes submissos e decentes.


Por tudo isso foi uma surpresa o casamento de Homero com Valentina. Apesar de sua origem de classe média baixa, a sociedade local a engoliu bem, já que sua mãe frequentava as melhores famílias, embora em posição serviçal.


Os Fontoura celebraram a união com uma festa que ficou nos anais da história local. Mandaram vir uma orquestra de Buenos Aires e abriram os portões de sua mansão para todo o povo, indiscriminadamente.


Quatro anos depois do casamento, todos se perguntavam porque o casal, que se instalara numa bela casa de quatro cômodos no mais chique bairro da cidade, ainda não tinha filhos. Alguns diziam que Homero era na verdade infértil ou, pior, impotente. Outros, que era ela, Valentina, que tinha alguma doença que a impedia de conceber. E ainda havia a versão de que ela, com suas ideias libertárias, acreditava que os filhos significassem a escravidão feminina, negando-se, portanto, a dar a Homero o tão sonhado herdeiro. Corria mesmo uma história de que ela abortara em uma de suas frequentes viagens ao Rio de Janeiro.


Indiferentes aos boateiros de plantão, Homero e Valentina levavam uma vida alegre. Os negócios só prosperavam, as viagens ao Rio, S.Paulo, Porto Alegre e Buenos Aires eram constantes e, nestas, eles frequentavam cassinos, teatros... O pequeno jornal local dedicava grandes espaços aos hábitos sociais e culturais do casal, os jovens procuram imitar-lhes a maneira de vestir, portar-se, falar.


Em 1934, quando as brasileiras conquistaram, afinal, o direito de votar, Valentina foi alvo de uma grande reportagem no jornal da cidade e quem antes a criticava passou a dar-lhe razão, pelo menos neste quesito. Por causa dessa reportagem e da grande simpatia que se estabeleceu entre ela e o repórter, que era também o editor, acabou ela ganhando uma coluna na edição semanal, sobre literatura, coisa que conhecia bem.


Foi por causa dessa coluna que, em 1935, algumas senhoras católicas se reuniram e foram, indignadas, protestar na redação. Que a dona Valentina fosse uma figura importante da sociedade, que escrevesse sobre literatura, que tivesse ideias avançadas demais, tudo isso estava muito bem, mas que ela se atravesse a escrever sobre livros pornográficos, isso não era admissível e as senhoras em questão ameaçavam forçar os seus maridos a retirarem a propaganda que faziam no jornal, caso a colunista não se retratasse publicamente, negando o valor da obra que comentara, o livro Lucíola de José de Alencar, um péssimo exemplo para as moças da cidade, no entender daquelas senhoras.


Pressionado, o editor foi falar com Valentina, cuja reação foi uma bela gargalhada.


- Se a minha coluna incomoda, Messias – disse ela então – sugiro que você a elimine.


- Não, dona Valentina. De modo algum. Mas a senhora sabe, o jornal não sobrevive sem os reclames locais. E a senhora poderia escrever sobre o mau exemplo de Lucíola e sobre a conduta ideal para moças de boa família, embora sem negar o valor literário dessa obra do nosso grande Alencar.


- Eu não vou fazer nada disso, Messias. Afinal, se os maridos delas anunciam no seu jornal é porque precisam dele, precisam dos anúncios para sustentar seus negócios. Façamos o seguinte: vou pedir ao meu marido que ocupe todos os espaços que porventura sejam cancelados.


- Mas o sr. Fontoura não poderá sustentar eternamente o meu jornal e eu não desejo perder os meus anunciantes.


- Não perderá, Messias. Eles é que vão ter as vendas diminuídas à medida que seus anúncios sumirem. Na verdade, é bem provável que Homero desista de anunciar no seu jornal caso você resolva me submeter a essa humilhante censura. Já não basta a ditadura de Getúlio nesse país? Onde está o seu decantado espírito democrático, Messias? Olha, vamos fazer o seguinte. Pra amenizar a revolta delas eu prometo que, na próxima edição, escreverei sobre a Biblioteca das Moças, da Companhia Editora Nacional. E vou telefonar a algumas dessas mulheres, como quem não quer nada, quase me desculpando, falando na ousadia de Alencar. Além disso, encontro todas na missa de domingo e darei um jeito de me penitenciar com elas. Confie em mim, você não vai perder os seus anunciantes, não.


De fato, Valentina conseguiu acalmar as mulheres e, na semana seguinte, muitas estavam mesmo dispostas a perdoá-la, depois de ler o artigo, que soava realmente como uma penitência. Na outra semana, quase todas aceitaram o convite de Valentina para um rico chá da tarde, servido em sua casa.


O tempo ia passando e pouca coisa mudava na rotina dos jovens Fontoura.


Em 1937, Homero foi convidado a fazer parte do Conselho Consultivo do Estado que, na ditadura de Getúlio Vargas, supostamente deveria acompanhar e criticar a ação dos Interventores. Era uma grande deferência. Incomodado pelas insinuações de seus colegas na vida política e também de seus parceiros comerciais sobre o fato de ainda não ter constituído família, Homero chamou Valentina para uma conversa e foi absolutamente taxativo. Ele a amava, é claro, estava contente com sua brilhante condução da casa, das recepções sociais e chegava mesmo a se orgulhar de sua erudição, mas duas coisas, segundo ele, estavam erradas naquele casamento.


Primeiro, ela deveria calar-se publicamente no que dizia respeito às críticas políticas ao governo, fosse ele municipal, estadual ou federal. Deveria passar a ocupar-se de coisas mais condizentes com o seu sexo, literatura estava bem, mas política definitivamente não. Segundo, ela teria que dar-lhe e, rápido, um filho. Afinal, isto não estava certo. Ele, um próspero comerciante, o mais próspero aliás, da cidade, iniciando uma vida política, tinha que ter, como todo mundo, herdeiros. E chegou a ameaçá-la dizendo que se ela insistisse em deitar fora uma eventual gravidez, usando as tais ervas da velha Ernestina (conhecida curandeira local) ele, mesmo com graves prejuízos sociais, se desquitaria dela e se casaria, no Uruguai, com uma mulher mais adequada aos seus propósitos.


- E para provar que estou decidido, minha cara, - arrematou ele - fui conversar esta tarde com o Dr. Ananias. Ele me explicou que as mulheres concebem entre o décimo e o vigésimo dia depois de seu sangramento mensal. É a época certa. Então, a partir de hoje, eu irei ao seu quarto todas as noites e você vai me dar, queira ou não queria, esse filho. Já estou cansado de ouvir insinuações sobre o nosso casamento ou até mesmo sobre a minha masculinidade. Tenho sido um bom marido para você, faço as suas vontades, você tem tudo o que quer. Agora vai me dar o que eu quero, está bem?


Valentina sentiu a raiva explodir-lhe no peito. Então era assim? O ato sexual, que sempre fora prazeroso para ambos, agora seria com hora marcada e com o único objetivo da concepção? Por que, só por ser mulher, ela teria a obrigação de dar um filho a ele? Para provar publicamente a sua masculinidade?


Não era ela, porém, dada a grandes arroubos de humor e sabia muito bem que diplomacia era o melhor caminho na resolução de conflitos. Assim, fingiu- se submissa, aproximou-se dele, deu-lhe um beijo na testa e disse com falsa resignação:

- Está bem, Homero. Se é tão importante para você, eu lhe darei um filho.

Homero ficou radiante de alegria, a tomou nos braços e levou-a, ante espanto dos empregados que ainda retiravam a louça do jantar, para o quarto.


Valentina casara-se com Homero sem amor. Gostava dele, é verdade, o moço era bonito e simpático e, sem dúvida, um dos melhores partidos disponíveis na pequena cidade. Sabia que, com ele, teria uma vida confortável e abastada. Mas, com o passar dos anos, só viu crescer sua afeição pelo marido. Descobriu com ele a alegria do sexo, pois Homero era um ótimo e atencioso amante. Além disso, ele apreciava a inteligência dela e, diferentemente da maioria dos homens de então, respeitava a sua opinião e frequentemente ouvia seus conselhos.


No entanto, a insistência dele em torná-la mãe pôs por terra todos esses sentimentos de afeto e respeito. Valentina decididamente não queria ser mãe. Era com uma revolta insuportável que imaginava-se grávida, doente, enjoada, com uma horrenda barriga a crescer-lhe mês a mês.

Por isso esperava, todas as noites, que ele dormisse e ia sorrateiramente ao banheiro para fazer suas lavagens de mostarda, receitadas pela eficiente Ernestina.


Suspirou de alívio quando, vinte dias depois daquela conversa, suas regras vieram. Não comentou com ele, mas ele, não se sabe como, percebeu e disse a ela:

- Ainda não foi dessa vez, mas para garantir que não passe de um mês agora vamos ter ato sexual à noite e pela manhã, todos os dias.


Foi por essa época que surgiu o Professor Marcondes. Vindo diretamente do Rio de Janeiro, causou grande alvoroço na pequena cidade.


O professor, designado para dar aulas de Língua Pátria para os cursos normal e clássico do colégio mais importante, logo virou alvo de grandes paixões entre as moças que disputavam sua atenção em todas as ocasiões sociais. Marcondes era o grande assunto da sociedade local. Um verdadeiro dândi, sempre muito bem vestido, os cabelos louros, os olhos claros e o seu sotaque, com aqueles esses puxados, deixavam alvoroçadas as moças. Era um tal de trocar bilhetinhos nas aulas, de corações disparados a espera de ser a escolhida para uma dança, nos bailes dominicais do clube...As mães redobravam a vigilância em cima das jovens. Mas de nada podia ser acusado o professor. Sempre muito respeitoso e educado, dando atenção a todas sem favorecer nenhuma, na verdade ele só tinha olhos para Valentina.


Na semana em que chegara a cidade o professor, Valentina e Homero estavam em viagem para a Capital, mas ele logo ficou sabendo da existência daquela senhora com hábitos considerados avançados demais e interessou-se pela coluna que ela publicava no jornal. Três semanas depois ele também conquistara um espaço no pequeno matutino e já se apaixonara intelectualmente por ela quando, numa festa da prefeitura, que comemorava a passagem do General Góis Monteiro pela cidade, foi finalmente apresentado ao casal Fontoura. Desde então o pobre professor perdeu o sossego. Apaixonou-se perdidamente pela figura forte e esguia daquela mulher e atormentado pelo desejo passava as noites em claro, andando pela praça principal, doente de paixão e torturado pela consciência da impossibilidade desse amor. Emagrecia a olhos vistos, os lindos olhos delimitados por profundas olheiras e os poemas que publicava no jornal local foram se tornando cada vez mais emocionados. Não tardou muito a cidade a desconfiar que o professor padecia de paixão. Muitas moçoilas suspiravam e sonhavam ser elas o alvo do amor de Marcondes. Mas nada indicava que o moço estivesse caído por qualquer uma delas. Valentina, porém, percebeu. Lia nos olhos deles quando se encontravam socialmente. Embora ele nada fizesse ou dissesse que não pudesse ser dito e feito na frente de qualquer um, foi impossível para a sensibilidade de Valentina ignorar-lhe o interesse. E ela começou a prestar atenção nele. Lia seus apaixonados poemas, publicados na coluna ao lado da dela no jornal. Certo dia mesmo, com o jornal nas mãos, ouviu do marido:


- Esse Marcondes não passa de um romântico maricas! Veste-se como um efeminado e ninguém jamais o viu com mulher alguma!


Valentina não fez comentários. Efeminado, ele? Com aqueles olhos apaixonados? Com aquelas mãos fortes e belas?


Vira e mexe, quase sem perceber, Valentina começou a arrumar pretextos para ir ao colégio. Uma palestra sobre literatura para as moças. Ajudar as voluntárias a fazer fraldas para as mães pobres. Participar da organização da Festa dos Estados e outros eventos cívicos. E sempre que Marcondes estava presente, seus olhos encontravam os dele e ela lia, nesses olhares, o fogo da paixão.


Cada vez mais seus pensamentos voltavam-se para ele. E começou a ansiar pelas edições do jornal local para ler os seus poemas. Comprou um rico caderno e começou a colecionar-lhe as poesias impressas, recortando-as cuidadosamente e colando-as nas páginas decoradas com flores.


Num fim de tarde de sexta feira, Homero chegou mais cedo em casa e encontrou Valentina terminando de colar um poema no caderno:


- O que é isso? Colecionando os poemas daquele maricas?


- São lindos poemas, Homero. Gosto de poesia, você sabe.


- Mas nem rimam! Ora, o que vão dizer se souberem que a minha esposa coleciona poemas de outro homem?


- Homero, todos sabem que eu gosto de literatura.


- E você chama essa palhaçada romântica de literatura? Esse homem é um hipócrita, Valentina. Sei de fonte segura que ele tem fortes ligações com o DIP e que veio aqui apenas para espionar os estudantes que sejam porventura contrários ao Getúlio.


- Calúnias! – explodiu ela. Um homem sensível como esse não pode ter ligações com aqueles brutamontes do Gregório!


- Você está muito interessada em defender esse professorzinho.


- Homero – disse ela subitamente calma – não vamos brigar por causa dele. Eu apenas gosto das poesias dele, nada mais. E além disso, justo hoje, que eu ia lhe dar a tão sonhada noticia...


- Você engravidou! – disse ele, com súbita alegria.


- Estive hoje no Dr. Ananias. Já estou de três meses.


- E por que você não falou nada antes? Não lhe faltaram as regras? Não sentiu nada? Enjoo, essas coisas? Ah, que alegria, minha Valentina!


Mas para ela, era um terror. Estava enjoada, sim, mas de Homero e não por causa da gravidez. Sentia que já odiava aquele filho e, por três meses, tomara toda a sorte de misturas de ervas que a velha Ernestina lhe preparara, tentando se livrar daquilo. Em vão. Hoje tivera a confirmação, depois de examinada pelo médico da família. Este lhe dera os parabéns, mas ela preferiria que ele tivesse lhe dado pêsames.


Naquele sábado foram a uma recepção na casa de um importante e tradicional político da cidade. Valentina estava entediada até a morte, com a conversa tola das mulheres, ela que gostaria de participar das discussões dos homens que comentavam a nomeação de Oswaldo Aranha para a pasta de Relações Exteriores.


Foi naquela festa que o professor criou coragem e, num dado momento, pedindo licença a Homero, tirou-a para dançar, sob o olhar invejoso de todas as jovens presentes.


- O sr. Fontoura é um homem de sorte – disse ele – tendo por esposa uma criatura tão bela, meiga e, sobretudo, inteligente. É para mim uma grande honra poder publicar meus poemas ao lado de tão sensatas observações literárias contidas em seus artigos.


- Gentileza sua, professor – respondeu ela subitamente tímida.


A ousadia de Marcondes, ao escolher Valentina para uma dança, indignou muitas mulheres. Todas a invejaram, é claro e, por isso mesmo, trataram de maximizar a importância de um ato que poderia ser encarado como uma rotina social. Logo a cidade comentava: por que Valentina, que antes nunca se interessava pelas atividades do colégio, agora participava de todas as iniciativas de lá? Por que emagrecera, se estava grávida finalmente? Por que o professor, já há tanto tempo na cidade, ainda não se resolvera a arrumar uma namorada? Por que o professor e Valentina tinham colunas juntinhas no jornal?


E a coisa foi crescendo.


- Valentina – disse-lhe Homero certa noite, à mesa do jantar – agora que você está esperando o nosso filho, não deve mais se cansar com essas atividades no colégio. Telefonei à diretora esta tarde e disse que você não vai mais participar de nada, que precisa repousar durante a gravidez.


Valentina, que já andava enjoada do marido e tentava evitá-lo de todas as formas, sentiu o ódio invadir-lhe o coração. Teve vontade de dar a ele uma resposta estúpida, dizer que afinal ele não podia decidir por ela, mas, sabiamente, calou-se. Disse apenas:

- É, acho que você tem razão.


Mas uma profunda tristeza atingira-lhe a alma. Até então jamais cogitara a possibilidade de ficar sem encontrar-se com o professor. Não era nada demais. Trocavam breves frases, comentários literários, coisas inocentes, quase sempre na frente de tantas outras pessoas... Mas Valentina percebeu que eram aqueles breves encontros, aqueles apertos de mãos (sempre tão quentes as mãos dele...), o olhar apaixonado, todos aqueles pequenos rituais cotidianos, que estavam dando a ela forças para aceitar a maldita gravidez, a indiferença cada vez maior que sentia por Homero...


Naquela noite, trancou-se no quarto, alegando uma horrível dor de cabeça, fugindo da presença do marido que, agora ela sabia, odiava.


A súbita ausência de Valentina das atividades do colégio, ao contrário do que pretendia Homero, causou ainda mais comentários maldosos nos fuxiqueiros da cidade. Diziam que ele descobrira a paixão do professor, diziam mesmo que Valentina o traíra.


No fim daquela semana, Homero já se preparava para sair do armazém, quando um desconhecido o abordou:


- Parabéns, seu Homero, pelos lindos cabelos da sua esposa.


Intrigado, foi para casa e encontrou Valentina com o jornal, recém publicado, nas mãos. Arrancou o exemplar das mãos dela e leu o poema de Marcondes, lá estampado:

 

Os Cabelos de Tua Filha, professor Marcondes.

 

Os cabelos de tua filha

são como um mar todo feito

de brilhantes fios de seda.

Toda a luz, num repente, volta-se para eles

e é por eles absorvida.

(Só uns poucos raros raios escapam

do negror dos cabelos dela e

aí então se refletem, a pontilhar de luzes

este mar de escuros, que brilha.)

 

Ah! Sonho afogar-me

nos cabelos de tua filha.

(Destes se desprende

o mais verde cheiro de erva)

Ah! Sonho embriagar-me

dos cabelos de tua filha.

(São macios --intuo ao vê-los

à carícia do vento da tarde)

Ah! Sonho tocá-los,

os dedos neles mergulhados!

Ah! Sonho senti-los

deslizando sobre o meu corpo,

sob o corpo de tua filha.

 

Ah! Os negros cabelos de tua filha,

sonho com eles, penso só neles,

vivo da lembrança deles.

 

E tanto vivo, tanto penso, tanto sonho

que  vejo surgir em minhas mãos

uns tantos fios de cabelos negros,

que crescem assustadoramente

e brilham, como brilham

os cabelos de tua filha.                                              

 

Então, o rosto vermelho de raiva, a respiração ofegante, Homero arrastou Valentina até o quarto dela. Jogou-a sobre o banco em frente à penteadeira e gritou para a cozinheira:

- Benedita, traga uma tesoura!


- O que há, Homero? – protestou Valentina, levantando-se.


Ele deu-lhe um tapa violento no rosto.

- Sente aí e cale a boca se não quiser que eu a amarre numa cadeira!


Valentina começou a chorar, assustada com uma violência que nunca antes sequer vislumbrara no marido. Obedeceu.


Benedita, assustada, trouxe a enorme tesoura. E ele começou a cortar os cabelos dela, rente com a cabeça, enormes mechas negras inundando o chão do quarto.

Valentina chorava.


- Pare de chorar – disse ele, com voz soturna e autoritária.


Depois, ela quase careca, deixou-a jogar-se na cama e chorar, chorar, chorar. Calmamente ele abriu o armário de roupas e foi empilhando, um a um, os caros vestidos dela nos braços. Saiu carregando a enorme pilha de roupas, dirigindo-se ao quintal.


- Traga o álcool – ordenou à cozinheira.


E pôs fogo em todos os vestidos, saias, anáguas, casacos.


No guarda roupa restaram apenas duas grandes batas rústicas, que ela usava dentro de casa, e um pesado casaco de lã.


Homero voltou ao quarto onde Berta, a arrumadeira, recolhia do chão aquele mar de cabelos negros.


- De agora em diante, essas serão suas roupas. É isso que você vai usar, é tudo o que precisa – disse ele apontando para o armário.


E voltando-se para a arrumadeira:

- Pegue a caixa de joias da sua patroa.


Valentina soluçava.

- Homero, você quer que eu me vista como uma mendiga?


A empregada trouxe as joias e ele foi trancá-las no cofre. Ainda disse, antes de deixar o quarto:

- Você tem se portado como uma qualquer. Mas vai ser a mãe do meu filho, por isso, de agora em diante, trate de se portar com dignidade e simplicidade. E nada mais de escrever em jornal. Vou dizer ao Messias que se eu vir mais algum poema daquele maricas ou artigo seu no jornal, mando empastelar aquela porcaria, está ouvindo?


No domingo, arrastou-a para a missa. Quase sem cabelos, os olhos e o rosto inchado de tanto chorar, um deselegante casaco abotoado até o pescoço, nenhuma joia, Valentina foi o centro das atenções.


O professor, apavorado e temendo pela própria vida, na segunda feira pediu demissão de seu cargo na escola e pegou o primeiro trem que apareceu na estação.


O tempo foi passando. Os cabelos e a barriga de Valentina cresciam, assim como, calado, crescia o ódio em seu coração.


A cozinheira e os outros empregados estranharam o súbito interesse de sua patroa pela culinária, mas atribuíram-no ao fato de ela estar passando a maior parte de tempo em casa, sem quase nada para fazer, a não ser alguns vestidos, que ela mesma cortava e costurava, usando velhos moldes de sua mãe e tecidos que estavam há muitos guardados num baú. Era natural que, privada de seus passeios, compras e viagens, a patroa encontrasse no preparo das refeições um certo consolo.


Homero, que sempre fora um sujeito saudável, começou a sofrer do estômago. Tinha dores horríveis, injustificáveis para o Dr. Ananias que acabou diagnosticando uma úlcera.


- Homero – dissera o médico então – muitos colegas acreditam que as úlceras são de fundo nervoso. Você é jovem, rico, saudável. Não posso explicar como conseguiu essa doença. Talvez fosse bom você perdoar a sua mulher. Desculpe-me por tocar nesse assunto, mas eu sou afinal seu médico desde que você nasceu. E Valentina é uma boa esposa, está grávida. Vocês ainda podem ser felizes.


- Ela nunca mais falou comigo, doutor. Ela cuida da casa, costura lá uns vestidinhos, o cabelo até já cresceu, mas ela ficou muda, só fala com os empregados, responde ao que eu digo por sinais...


- Ora, isso é apenas um desentendimento de casais. Chegue em casa, dê um abraço nela, bem apertado, diga que você a ama. Passe numa loja, compre uns vestidos novos pra ela, leve flores. Enfim... faça as pazes. Lá na Madame Sarita agora tem até uns vestidos especiais para grávidas, já prontos. Vá lá. Faça isso. Não deixe que seu casamento se destrua por um episódio bobo de ciúmes...


Homero resolveu seguir o conselho do médico. A diaba da mulher estava ainda mais bela com a gravidez. Não tinha engordado quase nada, os cabelos agora curtos ainda tinham o mesmo brilho e o rosto era corado.


E ele já se arrependera, há muito, da violência com que reagira ao tal poema do tal maricas...Afinal, ela não tivera mesmo culpa. Chegou em casa carregando desajeitadamente as flores e os embrulhos com os mais lindos vestidos. Valentina estava sentada no mesmo banco da penteadeira, ajeitando os cabelos que agora, alguns meses depois, já lhe chegavam à altura das orelhas.


Ele disse:

- Vim pedir o seu perdão, Valentina. E lhe trouxe uns vestidos novos.


Ela levantou-se, pegou as flores, cheirou-as e saiu, sem dizer palavra, para colocá-las num vaso. Homero ficou lá, parado, até que ela voltou, abriu os embrulhos, pendurou os vestidos no armário, tudo com aquela irritante indiferença.


- Valentina, falei com você.


Ela aproximou-se, acariciou-lhe a face, deu-lhe um breve beijo no rosto e disse apenas:

- Eu o perdoo, é claro.


Ele a abraçou:

- Vamos voltar a ser como nos velhos tempos.


- Claro, Homero. Mas vamos esperar o bebê nascer, está bem?


Naquela noite, pela primeira vez depois do episódio dos cabelos, conversaram à mesa de jantar.


Homero estava preocupado com a possibilidade de Getúlio finalmente instalar no país aquelas leis trabalhistas que o Governo vinha estudando desde a Constituinte de 1934 com aquele tal de salário mínimo que Agamenon Magalhães propusera em 1936. Se a tal história virasse mesmo realidade, Homero temia os problemas que enfrentaria com seus empregados. Ela, como sempre o fizera, conseguiu tranquilizá-lo dizendo que Getúlio, por mais que favorecesse aos trabalhadores com leis paternalistas, jamais teria interesse algum em desagradar as oligarquias a quem ele próprio dera todo o poder na sociedade.


- O que ele quer – dissera ela então sobre o ditador – é acalmar o povo para que este não caia nos braços vermelhos do partido comunista ou do Prestes que, mesmo preso, ainda é um mito. Ele vai posar de bonzinho, pai dos pobres, tudo isso. Mas nenhuma reforma profunda, nada que abale o poder estabelecido ou faça com que o dinheiro mude de mãos. (O que, acrescentou mentalmente, é o seu grande temor!).


Lentamente, com o passar dos dias, Homero via sua mulher voltar a ser sua companheira, mas sentia nela, ainda, alguma distância.


No entanto, ao contrário do que o médico imaginara, a relativa volta da tranquilidade familiar em nada estava contribuindo para o alívio das dores estomacais e dos vômitos constantes que acometiam o pobre Homero. Ele parecia definhar a olhos vistos e nem mesmo conseguia comer as papinhas, os delicados pratinhos que Valentina preparava, com suas próprias mãos, para ele.


- Então Homero – disse o médico em uma de suas muitas visitas domiciliares – parece que a coisa, com a Valentina, está caminhando bem, não é?


- Ah, Dr. Ananias, foi um sábio conselho esse seu. Mas não consigo entender porque essa diaba dessa úlcera não melhora... Eu diria mesmo que está piorando, dia a dia.


O velho doutor saiu preocupado da casa dos Fontoura. Medicado, Homero deveria estar apresentando alguma melhora. No entanto, contrariando todos os seus prognósticos, o rapaz parecia piorar e o quadro estava se agravando. Sua mulher, por outro lado, parecia cada vez mais bem disposta e feliz, com aquela gravidez calma, que mal lhe deformara o corpo, ela ainda bela e desejável.


Anos mais tarde Dr. Ananias ainda se recordaria do grande fracasso que tivera com aquele paciente, que tinha tudo para recuperar-se, que tinha uma excelente compleição física e fora alvo de seus mais cuidadosos esforços. Um caso aparentemente inexplicável.

Homero morrera, de hemorragia interna, apenas um dia antes do nascimento de seu tão sonhado filho.


Valentina enfrentara velório e enterro com compostura, embora estampando na face uma expressão de profundo pesar. Saiu do enterro direto para a sua cama, onde a parteira a aguardava. O menino, feliz e sadio, nasceu algumas horas depois, na madrugada seguinte.

Berta, a arrumadeira que normalmente sofria de insônia, abriu a porta para deixar entrar aquela que ela julgava feiticeira e maldita, Ernestina, a velha curandeira. Sua patroa a queria por perto.


Era natural, pensara Berta já que, durante todos esses últimos meses de gravidez, vira, na calada da noite, a Ernestina entrar e sair daquela casa. Por que precisara a patroa da presença da curandeira e por que sempre no meio da noite? Mas Berta não perderia seu tempo pensando nisso. Confiava em Valentina. E o que ela fizesse, para Berta, estaria sempre bem feito.


 


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