Allana e Aline (O Preço Verde)
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 25 de set.
- 13 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3

Para minha tia,
Jeannette de Almeida Krausz (1923-2021)
e as Plantas do seu Jardim
Allana e Arthur se conheceram ainda crianças. Ela, a pedra e a beleza, a harmonia. Ele, a pedra e o urso. O poder feminino, o encanto, e o poder masculino, a força.
Não sabiam disso quando brincavam pelos bosques e quando, escondidos de seus pais, saíam dos leitos em plena madrugada, no equinócio ou no solstício, para ir espiar os adultos em seus rituais da fertilidade.
As sacerdotisas celtas de então, usavam as folhas da planta Belladona para esfrega-las nos cabos de suas rústicas vassouras, que colocavam entre as pernas, e viviam grandes êxtases sexuais e mentais. Pareciam voar. Assim, excitadas e mentalmente despertas, estavam prontas para fazer amor com os “ursos” druidas, entre as fogueiras e as abóboras iluminadas, e esse amor garantia a fertilidade da Terra, que, por sua vez, lhes garantia boas safras e alimentos e ervas sadias por todas as estações do ano.
Allana e Arthur, crianças escondidas nas copas de grandes árvores, espiavam os ritos e achavam tudo aquilo muito feliz e engraçado. Riam e tentavam imitar os adultos. Mas ainda não sabiam sequer beijar, se abraçavam, uniam suas bocas e seus sexos, mas era só isso. Apenas alguns anos mais tarde descobririam o segredo escondido por trás do verdadeiro prazer sexual. Tornaram-se inseparáveis.
Foram, aos poucos, com os mais velhos, compreendendo os grandes mistérios da união entre eles próprios e todos os seres vivos que habitavam o planeta. Era um grande amor que os unia e eles espelhavam esse amor por toda a comunidade, uma aldeia da paz. Paz com todos os outros seres que existiam. Respeito absoluto à fauna e à flora, que só utilizavam para preparar seus alimentos e suas poções de cura e alívio para os que, porventura, sofressem de alguma enfermidade. Sabiam que as dores do corpo nada mais eram que o reflexo das dores da alma. E sabiam que as almas, quando habitavam os corpos, traziam em si mesmas dores de outras vidas, de outras aventuras, que nem sempre tinham sido felizes.
Na grande casa que construíram para si mesmos, com as suas próprias mãos, Allana e Arthur viveram felizes por toda a sua vida. Não tinham filhos e recebiam várias crianças da aldeia para repartir com elas os conhecimentos que iam adquirindo ao longo do tempo.
Viveriam mais de 20 anos juntos, sem jamais ter filhos. Arthur talvez os quisesse, mas nunca se manifestou, temendo que um deles, ela ou ele, talvez não tivesse sido abençoado pelos deuses com a graça da concepção. Allana, no entanto, julgava que o sopro de juventude, que as crianças da aldeia traziam para dentro da casa deles, já era o suficiente para suprir as benesses que todo adulto deveria receber das crianças. Não queria ter as suas próprias crianças que acabariam por roubar dela um tempo precioso, tempo que ela queria dedicar ao estudo dos produtos da terra, suas ervas, suas flores, seus frutos sagrados. Por isso, a cada vez que seu ciclo lunar parecia querer cessar, ela sabia bem quais plantinhas deveria ferver em seu caldeirão.
Arthur era mestre na arte de trabalhar com a madeira. Já construíra desde mesas, bancos e estátuas, até a sua própria casa usando o que as árvores lhe forneciam. Jamais derrubara uma árvore sequer. Não era preciso. Bastava saber quais galhos, ou grossas ramificações de troncos, poderia retirar, sem que a árvore, por isso, viesse a morrer.
Já Allana usava as ervas e as flores no preparo de suas poções fitoterápicas, exatamente como viriam a fazer, no século XXI, pesquisadores de importantes universidades.
Mulheres à beira de dar à luz corriam para a casa deles onde, sabiam, teriam um parto mais tranquilo, graças às ervas e as mãos de Allana, e seu bebê nasceria sob as bençãos daquele jovem Arthur que todos já adivinhavam, no futuro, seria um dos mais sábios druidas que aquela aldeia já vira.
E era uma aldeia alegre. Dançavam, celebravam seus ritos na passagem da estações, faziam amor sem culpa ou possessividade. Não tinham consciência, de fato, do quanto eram abençoados por aquela forma de viver. Sabiam que os animais comiam uns aos outros, era a regra da sobrevivência. Eles, porém, só matavam animais no inverno, quando poucos deles sobreviveriam por ser uma estação de difícil caça e pesca e de árvores secas e sem frutos. Salgavam a carne dos animais que caçavam e estocavam para alimentarem-se em outras estações. Agradeciam aos deuses da Terra por tudo o que esta lhes proporcionava. Agradeciam aos frutos que tiravam das plantas e das árvores. Agradeciam aos animais que caçavam. Agradeciam às misturas que, ao longo de sua civilização, foram apendendo a fazer: os pães, o hidromel, as pastas de cereais.
Na noite dos mortos, na floresta, iluminavam abóboras ocas com velas, para que seus antepassados encontrassem o caminho até eles. Era o Samahin. All Hallow’s Eve. A véspera do dia de todos os sagrados.
Tinham uma boa relação com a Morte. Viam o envelhecimento de todos os seres, animais, vegetais e até as centenárias árvores que, mais dia menos dia, murchariam, perderiam o seu contato com as outras raízes das outras árvores, sob a terra, e morreriam, como morriam todos, sem exceção, nesse planeta. Viam seus pares envelhecerem, e os viam com carinho e respeito pela sapiência que tinham adquirido ao longo de suas vidas. Queimavam seus mortos, para que suas cinzas retornassem rapidamente à terra e a fertilizassem.
Allana e Arthur já estavam com os cabelos embranquecidos quando chegaram os cristãos.
Cristãos, cheios de culpa e ódio, escandalizados pela extrema liberdade daquele povo, que fazia amor sem regras, que usava ervas e plantas par atingir outros estados mentais, que comungava com o planeta o que a terra lhes proporcionava.
Os cristãos eram um povo triste. Cheio de regras absurdas. Cheios de medo do que chamavam pecados. E, como todos os seres muito infelizes, eram extremamente cruéis.
Allana e Arthur morreram, depois de barbaramente torturados, nas fogueiras da inquisição e seus bosques sagrados, seus pares amados, foram dizimados e banidos para sempre.
Alguma coisa, porém, daquele espírito Verde, sobreviveu.
Século XXI
Aline ia fazer 32 anos e ainda morava com seus pais. Era bonita, atraente, culta, independente. Formara-se em química e tinha um bom emprego. Muitos pretendentes. Alguns até muito ricos. Mas ela os rejeitava, a todos. Seus pais se desesperavam, mas externavam isso de uma maneira alegre:
-- Você vai ficar pra titia? Nenhum desses homens maravilhosos é bom o suficiente para você?
Ela ria:
-- Estou esperando o verdadeiro amor.
Tinha alguns amores. Amigos, com quem ia pra cama. Mas nada que a fizesse desejar realmente compartilhar a vida com algum deles.
Naquela sexta feira, tinha malhado demais na Academia. Chegou em casa, deitou-se em sua cama com a TV ligada e dormiu. Tinha se esquecido do que um casal amigo marcara com ela, queriam que conhecesse um amigo deles, que estava triste e recém-separado da mulher, para saírem todos juntos.
Ela ainda dissera:
-- Vocês só me trazem sujeitos problemáticos, hein? Não tem nenhum príncipe sobrando por aí?
Ás 11 da noite seu celular tocou:
-- Al, estamos aqui esperando – dizia a amiga, meio irritada – você não vem?
-- Ah! Esqueci! – Vou me arrumar. Venham me pegar aqui, senão vai ficar muito tarde!
Eles chegaram e se acomodaram na sala da casa dos pais de Aline.
Ela se arrumou e, ao descer a escada, avistou aquele homem, que lhe abriu, ao vê-la, o mais belo sorriso que ela jamais vira, e que jamais veria de novo, em toda a sua vida.
-- Aline, esse é o Auro – disse a amiga, quando ela se aproximou.
Olhou nos olhos dele e, subitamente, o reconheceu. Era ele! Era, afinal, o seu grande amor, pelo qual tanto esperara!
Casou-se com ele, mas foi logo avisando que não queria filhos. Acreditava que o seu trabalho, na indústria química, era mais importante do que criar filhos. Não queria ser mais uma mulher, como costumava dizer, “definida pela maternidade”.
Vinte anos depois, juntos e felizes, Auro e Aline, preparavam-se para a comemoração de seu aniversário de casamento. A bela casa que tinham construído na Serra da Cantareira, estava toda iluminada e, pelo jardim, penduradas em árvores, as luminárias com velas indicavam o caminho até a porta da frente. Dezenas de orquídeas, também presas às árvores, perfumavam o ar. Tudo era paz, apesar da angústia, que lhes dominava o peito, ao ver o Brasil ir se esfacelando sob um governo incompetente em todas as áreas, principalmente na saúde, na ecologia, na cultura, na economia, na educação... E a Pandemia, apesar deles e dos amigos estarem já vacinados, ainda grassava em todos os estados brasileiros e também no mundo.
Eram esperados alguns amigos e nenhum familiar. Os pais de Aline já estavam mortos, assim como os de Auro. Na divisão da herança, Aline acabara por se desentender e se magoar com os irmãos – todos homens – que pareciam acreditar que ela, por ser mulher, deveria ficar apenas com o osso enquanto eles dividiam o mocotó. A briga acabou na justiça e Aline recebeu a parte que lhe cabia por direito, mas nunca mais viu os irmãos ou suas famílias. Auro tivera apenas um irmão que morrera havia dois anos e ele também não via a cunhada e os sobrinhos desde a missa de sétimo dia. Auro tinha dois filhos, de seu primeiro casamento, mas estes pouco frequentavam lhe a casa, não gostavam das ideias políticas da madrasta, que era “Lula Livre”, enquanto eles tinham votado no Bolsonaro. Assim, a primeira reunião depois da Pandemia, seria realizada apenas com um pequeno grupo de seis amigos íntimos, dois casais hetero e um casal homo.
Auro, na verdade, também votara – escondido de Aline – no Bolsonaro. Mas não levara nem três meses de governo para perceber que, como a maioria que elegera o ex-deputado do baixo clero, todas as promessas de campanha eram apenas simples mentiras. O presidente governava amparado e baseado no invisível “Gabinete do Ódio”, uma turma supercompetente em comunicação virtual que espalhava as mentiras mais cabeludas pelas redes sociais, as famosas Fake News, que visavam realmente fazer crescer a desconfiança entre todos, acirrar o ódio político aos opositores do Governo e acabar de vez com qualquer possibilidade de diálogo. Todo o setor cultural do país sofria. Todos os ecologistas se desesperavam vendo retroceder as duras conquistas que levaram anos e anos para serem alcançadas. Para a turma do poder, cultura e educação eram apenas para a elite privilegiada, e essa coisa de levar arte ao povo era conversa de comunista. Além disso, não acreditavam em aquecimento global, a despeito das evidências saltarem à vista de qualquer um: o planeta sofria grandes catástrofes climáticas e um inacreditável desbalanço nas temperaturas. Só eles não viam, ou não queriam ver.
Quando Aline conhecera Auro, ele havia acabado de voltar da Europa, onde trabalhara por alguns anos, onde nasceram seus filhos e onde ele vivera com a primeira esposa, de quem se separou logo que voltaram ao Brasil. Ela dizia que queria encontrar um amor, que ele, Auro, não era o seu amor e queria o divórcio, então. Auro ficou abalado por ser forçado a separar-se dos filhos e da esposa que, se ele não amava, pelo menos gostava muito e a respeitava. Só veio, na verdade, saber o que era amor quando conheceu Aline.
No Exterior, Auro lecionara na Nottingham University Business School, como doutor em economia, que era, pela USP. A Universidade de Nottingham, é considerada a mais ecológica de todas as escolas superiores do mundo. Criada em 1881 e transformada em Universidade em 1948, a escola não é apenas campeã em sustentabilidade como também está na cidade que abriga a Floresta de Sherwood, onde se escondia o Príncipe dos Ladrões, Robin Hood. A cidade tem apenas 300 mil habitantes, mas recebe um fluxo intenso de turistas por ser o berço desse personagem. Auro e sua família estavam bem naquela pequena cidade – cujas origens remontam aos saxões do século V – quando ele recebeu uma proposta irrecusável para ocupar uma cadeira na Fundação Getúlio Vargas e voltou ao Brasil.
De sua estada no Reino Unido, porém, trouxera uma vasta cultura ecológica, cientificamente muito bem fundamentada.
Agora, aposentados em suas respectivas carreiras, Auro e Aline planejavam montar uma escola particular, nos moldes de sustentabilidade de Nottingham, quando a pandemia adiou os seus sonhos.
Falavam justamente sobre o grande retrocesso brasileiro nessa área, na reunião de aniversário de casamento, quando a casa foi subitamente invadida por um bando de 20 homens, encapuzados, armados com facões e revolveres calibre 45. Todos os seis convidados e os donos da casa foram facilmente rendidos. Os homens, foram amarrados às cadeiras de madeira, as mulheres, despidas, deitadas de bruços nos sofás e amarradas aos pés destes. Os homens foram forçados a assistir os seguidos estupros que suas mulheres sofreram por alguns dos bandidos, que se revezavam, enquanto outros andavam pela casa, supostamente em busca de objetos valiosos. Auro, identificado como o dono da casa e chamado insistentemente pelos bandidos de “professor verde” foi obrigado a dizer onde estavam computadores, notebooks e celulares, que os agressores iam recolhendo. Um deles, ao estuprar Aline, dizia: “A bruxa do bairro também gosta de uma boa trepada? Não se finja de morta. Mexa bem essa bunda pra eu gozar melhor”. Depois agrediram brutalmente o casal homoafetivo, chamando-os de “aberrações da natureza” e coisas piores.
Os homens, amarrados e amordaçados, eram obrigados a manter os olhos abertos e as cabeças voltadas na direção dos sofás onde suas esposas estavam sendo estupradas. Diziam: -- Depois de serem comidas por machos de verdade, essas fêmeas dondocas de vocês, não vão mais querer trepar com esses maridos frouxos que elas têm!
Satisfeitos, e com as mochilas lotadas dos eletrônicos furtados da casa, deixaram todos amarrados e amordaçados, no escuro e, ao despedirem-se disseram: -- Isso é pra vocês aprenderem, seus comunistas de merda, quem é que manda aqui.
Um dos amigos da casa, conseguiu quebrar a cadeira onde estava preso e, assim, soltar-se. Foi desamarrando os outros, primeiro as mulheres - ainda bem que estava escuro, pensava o homem constrangido pela nudez delas, pelas marcas em seus corpos, pois além de estupra-las, eles também haviam batido nelas. Depois soltou o casal homoafetivo, ambos bem machucados pela surra que levaram e, quando soltou Auro e tirou-lhe a mordaça, esse disse, alto e bom som:
--Bem, pessoal, já sofremos a nossa agressão. Vamos tratar de nos recompor. Aline, leve as moças aos nossos banheiros. Uma boa chuveirada, perfumes e cremes, farão bem a vocês, meninas. Mas antes veja se encontra a nossa caixa de primeiros socorros para cuidarmos dos nossos amigos feridos.
-- Você não vai chamar a polícia? – perguntou uma das mulheres.
-- Não. A menos que algum de vocês faça questão disso. A polícia nada fará contra esse bando, talvez alguns deles, mesmo, sejam policiais. Creio que sofremos não um assalto comum, mas uma intimidação de cunho político. Aqui no bairro moram apenas famílias abastadas, vocês sabem, e Aline e eu encontramos bastante oposição quando começamos a falar na fundação de uma escola moderna, que mostre aos estudantes o real estado de nosso planeta e eduque-os para a construção de um mundo melhor e mais sustentável. Vocês viram como eles passaram todo o tempo chamando a mim de “professor verde” e a Aline de “bruxa do bairro”. Eles sabiam muito bem quem éramos nós. Sabem que Aline planta ervas e desenvolve, em seu laboratório na edícula da casa, alguns medicamentos fitoterápicos. Sabem que sou professor e que sou ecologista.
Abraçada ao marido, em um dos sofás, uma das mulheres violentadas, soluçava tão alto que quase encobria o discurso que Auro fazia. Apesar de também abalado por tanta violência gratuita, Auro acreditava que deveria ajudar a todos a manterem-se íntegros e a não se deixarem levar pela emotividade.
Depois de servir whisky puro a todos, foi reestabelecer a ligação do telefone fixo que eles tinham arrancado da parede. Discou:
-- Dra. Angelina, desculpe-me por incomoda-la tão tarde da noite. É o professor Auro, marido de sua amiga Aline.
-- O que houve? – perguntou a doutora, assustada – Aline está bem?
-- Na verdade, doutora, nossa casa foi invadida por bandidos enquanto recebíamos alguns amigos. Creio que tenha sido uma intimidação de cunho político. Eles levaram computadores e celulares, mas fomos fisicamente agredidos também e três mulheres sofreram seguidas violências sexuais. Desculpe-me incomodá-la, mas eu sei que, como ginecologista, a senhora teria acesso as tais pílulas do dia seguinte e...
-- Mas, Auro – interrompeu à médica – essas mulheres devem ser levadas a um hospital, devem fazer ocorrência policial e exames...
Desta vez foi Auro quem interrompeu:
--Não vamos dar queixa, doutora. Já conversamos sobre isso e todos concordaram. Sofremos uma grande humilhação e esta já é suficiente. Não daremos a esse bando o gosto de nos ver ainda mais humilhados nas reportagens policiais da televisão e nas redes sociais. Vamos agir como se nada houvesse ocorrido. Mas as mulheres não podem correr o risco de engravidar desses bandidos.
-- Estou indo para a sua casa – respondeu decidida a doutora. Talvez demore uma hora ou mais porque passarei, antes, no consultório.
Estavam todos bastante abalados emocional e psicologicamente. O casal homoafetivo, abraçados e já meio bêbados, cochilavam num sofá. Os amigos de Auro, procuravam consolar as respectivas esposas, já de banho tomado e perfumadas, e todos estavam de copo na mão, quando a doutora e sua enfermeira chegaram.
A doutora trouxera as pílulas para evitar a gravidez das mulheres, mas trouxera também alguns benzodiazepínicos e analgésicos, mas resolveu não falar nestes, ao ver que todos estavam bebendo whisky. Num dos quartos da casa, foi examinando as mulheres e tratando seus ferimentos.
Na sala, um dos amigos de Auro vociferava que não poderiam deixar uma violência daquelas passar em branco. Se a maioria acreditava que ir à polícia seria inútil e causaria ainda mais humilhação, dizia ele, então deveriam procurar identificar alguns dos bandidos e elaborar um plano de vingança.
Aline chegou à sala nesse instante e disse:
-- É exatamente o que eles gostariam, isso que você está dizendo. Que trocássemos a nossa tolerância, a nossa paz de espírito, pelo ódio. Eles querem que os nossos corações se encham de ódio e sentimento de vingança; mas, creia, isso acabará conosco e não com eles. O ódio envenenará nossas vidas e nunca mais seremos felizes. Todos nós somos felizes, com nossos companheiros e amores, com nossos trabalhos e com as nossas convicções.
Enquanto Aline falava os olhos de Auro viram a sala ir escurecendo aos poucos. E, na semiescuridão, viu claramente Aline, em trajes medievais, sendo torturada por monges encapuzados. Depois viu a floresta dentro da sala e mais homens encapuzados pondo fogo em árvores centenárias.
-- Auro! Auro, meu amor! – gritou Aline, sacudindo-o pelos ombros – o que está havendo? Acorde! Você está bem?
-- Sim – respondeu ele, abrindo seu melhor sorriso – E estou bem, minha amadinha, creio que estive cochilando e sonhei alguma coisa.
-- É melhor pedir que a doutora dê uma olhada em você. Pensei que estivesse com algum trauma neurológico – dizia, mais calma e vasculhando lhe a cabeça.
-- Apesar de nossos avanços tecnológicos e científicos, ainda somos, sobre a Terra, uma tribo de bestas. –disse ele, com um suspiro.
Ajudada pela doutora e pela enfermeira e também por um dos amigos, Aline preparou uma linda mesa de café da manhã. Depois de tanto whisky, seus amigos mereciam pães quentinhos, café com leite, manteiga salgada, queijos e frutas frescas. Comeram calados. E, lá pelas sete horas, quando todos se despediram e voltaram para suas casas, viajavam, pelo trânsito matinal da cidade, também estranhamente quietos. Alguns olhos ainda com lágrimas.
Bel, Quarta, 18 a Sexta, 20 de agosto de 2021
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