Becca, a Africana
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 25 de set.
- 11 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3

Para Luciene Almeida de Figueiredo,
1978-2016, Parceira inesquecível.
Antonieta tinha 18 anos quando sua família mudou-se para África. Seu pai, engenheiro no Porto da Cidade do Salvador, na Bahia, fôra contratado pelo governo de Portugal para instalar e modernizar as docas da cidade de Cômbia, em Zimbora, na costa Ocidental do continente africano, que era já, naquele ano de 1898, apenas cinco anos após sua fundação, o maior centro pesqueiro africano e necessitava de um Porto que atendesse à enorme demanda de suas exportações, principalmente as de bacalhaus, capazes de resistir às longas viagens marítimas.
Descoberta em 1494, por um navegador português, que passara para a história, a pequena aldeia se espraiava como uma estreita faixa de terra, espremida entre o oceano e o deserto. As dunas de areia caminhavam lentamente, ao longo dos anos, ameaçando engolir a pequena faixa de terra. Por isso, naquele ano, os pescadores se travestiram em jardineiros e começaram a plantar árvores e mais árvores no limite entre a aldeia e as dunas, para contê-las. Cem anos depois, seriam mais de 50 mil árvores... mas essa é uma história para depois, para o futuro.
Naquele distante 1898, os colonizadores portugueses, que ainda dominavam Zimbora, começaram a construir, na parte mais alta de Cômbia, à beira do Rio que tinha sua foz ali na praia, o que seria hoje um condomínio fechado, as mansões em que habitariam as autoridades coloniais, militares, oficiais da Marinha portuguesa, e empresários que começavam a instalar suas primitivas indústrias de processamento das riquezas locais, os frutos do mar; enlatando óleos, sardinhas e outros subprodutos que os navios transportavam de Cômbia para o mundo. Era, assim, uma das cidades que mais crescia e prosperava em Zimbora.
António, pai de Antonieta e de mais 5 filhos, em uma escadinha liderada por ela, a primogênita, perdera sua esposa no ano anterior, num surto de cólera que ceivara muitas vidas em Salvador. O Cólera desembarcara em Salvador, de fato, em 1855, porém mais de 4 décadas depois ainda fazia suas vítimas, em surtos ocasionais, já que os médicos daquele tempo atribuíam a doença a “miasmas” e descartavam a possibilidade do contágio, ignorando assim algumas medidas preventivas que teriam poupado inúmeras vidas.
Desgostoso com a viuvez, António pensou que mudar-se com a família para outro continente poderia fazer muito bem a todos. Antonieta teve que substituir sua falecida mãe no cuidado e na educação de seus irmãozinhos, três meninos (de 14, 12 e 9 anos de idade) e duas meninas (respectivamente então com 7 e 6 anos). O casal tivera outros três filhos, mortos ainda na primeira infância, um de sarampo, outro de varíola e o terceiro de poliomielite, doenças comuns nas crianças em sua época, muito antes de surgirem as vacinas.
Atravessaram o Atlântico, num grande navio de cruzeiros para milionários (tudo pago pela Companhia do Porto de Cômbia), desembarcaram em Lisboa e ali se baldearam para um cargueiro para dobrar o cabo da Boa Esperança. O pequeno navio não tinha luxos e os passageiros eventuais foram instalados em acomodações modestas, mas faziam as refeições com o Capitão.
A viagem, em sua primeira fase, foi bem tranquila, sem incidentes, tormentas e outras agruras. Já no cargueiro, as crianças enjoaram, Antonieta teve uma febre brava, mas chegaram com saúde ao seu destino.
África, Cômbia, Zimbora, eram diferentes de Salvador, mas nem tanto. Salvador herdara a comida, alguns hábitos e costumes e as religiões dos africanos escravizados, recém libertos pela Princesa Isabel, em 1888, havia apenas uma década. Muitos deles viviam na mais abjeta miséria, já que a idealista Princesa os libertara e, um ano depois, com a Proclamação da República e a expulsão da Família Imperial Brasileira, partira para Portugal sem implementar medidas e políticas que proporcionassem trabalho e subsistência aos negros libertos. Oriundos principalmente de propriedades rurais, os antigos escravos ficaram à míngua e foram sendo gradativamente substituídos, na área rural, por imigrantes europeus: portugueses, ingleses, alemães e franceses.
Tanto em Salvador quanto em Cômbia, a feitiçaria corria solta. Ninguém comentava, oficialmente eram todos católicos e, tanto na Bahia quanto em Cômbia, mesmo com o sincretismo religioso entre candomblé e catolicismo, os feiticeiros e feiticeiras tinham um público fiel e endinheirado que os procurava para resolver questões mundanas, fosse no amor, fosse nos negócios.
A família de António foi instalada em uma daquelas mansões recém-construídas pelos portuguesas. O diretor do Novo Porto de Cômbia era, sem dúvida, figura ilustre, agora, na cidade e deveria, é claro, ir morar em terras habitadas pela elite local.
A casa da família era servida por escravos nativos. A escravidão, em Zimbora, era muito diferente do que fôra no Brasil. As pessoas escravizadas assim o tinham sido ou porque eram pertencentes a tribos derrotadas em guerras locais ou porque eram cativas de credores. No caso, o proprietário da casa, que ele alugara à Companhia do Porto de Cômbia, era o proprietário dos escravos que passariam a servir a seus novos habitantes.
Acostumada aos empregados de sua antiga casa em Salvador, geralmente emburrados e rebeldes e alguns mesmo desaforados, Antonieta surpreendeu-se com a cordialidade e gentileza de seus novos serviçais. Eles sequer permitiam que ela continuasse a cuidar dos seus irmãos mais novos. Cuidavam eles. E elas. Logo, António contratou um professor que vinha à casa todas as manhãs ministrar aulas aos meninos e indicar leituras às meninas, mais novas, para que se preparassem para a vida de senhoras do Lar. Trazia ele mesmo os livros, editados em Portugal, romances água-com-açúcar e alguns volumes sobre a economia doméstica.
As crianças reclamavam por ter aulas pela manhã porque queriam ir nadar no rio. Logo desistiram porém, quando depois de uma semana inteirinha de chuva, os jacarés vieram tomar sol na praia. Gonçalves, o professor, teve então alunos mais atentos.
António só voltava para casa nos finais de semana. Tinha acomodações no próprio Porto e trabalhava mais de 12 horas por dia para conseguir instalar, naquela original confusão, alguma ordem e estabelecer os procedimentos e treinar os trabalhadores para suas novas funções. Às noites de sexta passava no único bordel da cidade, onde logo se enrabichou por uma local muito bonita e pagava-a regiamente para que ela se deitasse apenas com ele. Pagava à dona do estabelecimento também para que conservasse bem guardada a chave do cinto de castidade que mandara instalar na rapariga – depois de confirmar, com o médico que as atendia, que ela estava livre de doenças venéreas – e do qual António só a libertava às sextas ou, quando a sua urgência de macho falava mais alto, também em algumas quartas.
Os primeiros meses em Cômbia tanto para António, como para seus filhos, foram de muitas surpresas e descobertas.
Estava em seu escritório, apenas 3 semanas após sua chegada, quando o prof. Gonçalves apareceu por lá, pedindo para vê-lo.
António o recebeu, pensando que talvez o professor tivesse adiantado, por qualquer motivo, o dia do recebimento dos seus honorários. O homem, porém, cheio de dedos, pedindo desculpas por incomodá-lo e parecendo mesmo muito pouco à vontade, explicou que sentira-se na obrigação de alertá-lo, afinal o doutor era novo na Terra, não conhecia os costumes e ali reinava a Feitiçaria.
António riu. Era um homem esclarecido, cursara Engenharia na melhor universidade de seu país, a do Rio de Janeiro que, como o professor deveria saber, fôra criada ainda por D. João VI, quando de sua estada naquela cidade.
Não. Não era uma questão de se acreditar ou não. O professor já estava em África o tempo suficiente para saber que aquelas coisas, por aqui, aconteciam de fato. Citou alguns exemplos (que a António pareceram inverossímeis) e acrescentou que, na própria casa do doutor, havia, escondido um menino albino.
Era o filho de Becca, Abayomi – cujo nome significava ironicamente “nascido para trazer alegria” – e, que por ser albino e, ainda por cima, filho ilegítimo de uma escrava, corria grande perigo.
Gonçalves então explicou ao doutor António que, em África, os albinos eram perseguidos e mortos pelos feiticeiros, pois esses acreditavam que os órgãos de um albino conferiam grande poder a quem os possuísse. Matavam as crianças albinas para extrair-lhes os órgãos do corpo e, depois de conservarem o coração (que conferia o maior poder), vendiam os demais órgãos a peso de ouro para outros feiticeiros.
-- Mas se esse menino mora em minha casa – respondeu o doutor – ele pode contar com a minha total proteção!
-- Nada impede que, na calada da noite – respondeu o professor – feiticeiros cruéis invadam sua casa em busca dele. O senhor deve proteger a sua família desses intrusos. Existem em Cômbia soldados mercenários e o senhor deveria contrata-los para guardar seus muros e portões.
Chegando em casa, no sábado seguinte, logo cedo, enquanto tomava o seu reforçado café da manhã africano, António mandou chamar Becca, que era uma espécie de governanta da casa e chefe dos demais escravos. Becca – cujo nome significava “profetiza” –confirmou que mantinha seu filho escondido no porão e que nunca o deixava sair porque, se alguém de fora o visse, ele seria certamente assassinado.
-- Uma criança não pode viver confinada num porão! Vamos acabar com isso. Esse menino tem que conviver com outros filhos dos empregados (António se recusava a chamá-los de escravos) e até com meus próprios filhos. Tem que tomar sol. Nadar. Brincar. Subir em árvores. Você vai soltá-lo imediatamente!
Becca estremeceu. Lágrimas vieram aos seus olhos.
-- Se o patrão ordenar – respondeu ela, esfregando as mãos no avental – eu o farei. Mas estaremos condenando meu filho à morte.
-- Não. Não estaremos – disse ele, com firmeza – Já contratei 20 soldados mercenários para guardar a nossa casa, com ordens explícitas de atirar, primeiro para assustar e depois para matar, qualquer um que tente invadir. Fique tranquila e dê ao seu filho o direito de viver, o que deveria ser dado a qualquer criança.
-- O patrão é um homem muito bom, muito diferente de qualquer patrão que já tive – disse ela, simplesmente.
Foi assim que os filhos de António, além de conviverem com outras crianças filhas dos escravos, ganharam mais um companheiro de brincadeiras, aquele estranho ser, totalmente pálido, de cabelos brancos e olhos que mal suportavam a luz, Abayomi, o trazido ao mundo para portar a alegria.
Antonieta porém, desde o primeiro dia, encantara-se com Becca. Era uma mulher muito alta, muito forte e executava as tarefas da casa com maestria. Nada faltava nas dispensas. Supervisionava a cozinha com excelência e talento e todos começaram a engordar com as delícias das comidas africana e portuguesa que ela conhecia tão bem. Algumas semanas depois ordenou aos escravos que desviassem a água do rio, construindo um canal que desembocasse num enorme buraco forrado por treliças de cana e com uma rede na entrada para barrar jacarés e outros bichos. A piscina primitiva destinava-se a fornecer às crianças do patrão uma maior oportunidade de exercício físico, para que parassem de engordar. Mandou construir ainda entrelaçados de madeira cortada fincados no chão para que as crianças brincassem de se pendurar neles e, assim, fortalecessem seus músculos dos braços e, ainda, mandou instalar balanços nos galhos das árvores.
Surpresa, Antonieta, observava as iniciativas de Becca. Um dia, perguntou a ela:
-- Becca, você é tão ativa, tão eficiente...e sabe ler e escrever, mesmo sendo uma escrava. A maioria das mulheres mal são alfabetizadas. Como é possível?
A negra riu:
-- É que nasci princesa, menina. A filha única do rei da tribo. Um dia, porém, meu pai, com os olhos crescidos pela ambição, resolveu que deveria reinar também sobre a tribo vizinha. Entramos em guerra e perdemos. Foi assim que passei de princesa à escrava.
-- Meu Deus! – exclamou Antonieta – E você não se revoltou? Como conseguiu mudar de vida dessa maneira? Como não enlouqueceu?
Becca teve um riso amargo:
-- A gente se acostuma a tudo, minha menina. Tenho meus afazeres gosto de cuidar dessa casa e gosto mais ainda tendo sua família, generosa e boa, aqui.
Foi o início de uma longa e profunda amizade entre aquelas duas mulheres tão diferentes. Antonieta passava os dias lendo, costurando e descobriu o prazer de cuidar de alguns canteiros de flores no jardim. O jardineiro ensinou a ela muitos dos segredos de sua arte:
-- As plantas querem muito mais que cuidados – dizia ele – Elas precisam de carinho também. Como qualquer ser vivo.
Nos fins de tarde, em dias quentes, quando as crianças já tinham abandonado o tanque-piscina, ela se punha a nadar de um lado pro outro e a natação deu-lhe músculos e tranquilidade.
À noite, Becca vinha ao seu quarto e conversavam horas e horas sobre o caminho das estrelas e os mistérios do Universo.
Poderia estar entediada, uma jovem presa ali naquela mansão, cercada de escravos e de crianças, mas não. Os passeios quinzenais de barco pelo rio, que seu pai proporcionava à família, a alegravam. O vento no rosto, o cheiro da mata, o barulho das ondinhas em torno do casco do barco e, depois, atracavam na cidade e iam almoçar no único restaurante de Cômbia. Fizeram algumas amizades entre outros membros da elite local. Cantavam, riam, brincavam. Antonieta era quase feliz.
A família viveu dois anos em Cômbia, até retornar a Salvador.
Na hora da despedida, abraçada à Becca, Antonieta, então não mais uma garota, mas uma mulher feita, chorava. Como viver sem os ensinamentos da princesa? Com ela, aprendera que ser é muito mais importante do que ter. Que não viemos ao mundo a passeio, mas que todos nós trazemos em nossas almas as diretrizes das nossa missões aqui na terra. Que a morte nada mais é que uma passagem e nasceremos de novo, em outros ou nesse mesmo mundo. Que o sofrimento que eventualmente enfrentamos é apenas mais uma lição, para o nosso crescimento interior. E que é o nosso Eu Interior quem, de fato, rege a nossa vida. Antonieta aprendeu, ainda, a se comunicar com ele, a sua Inteligência Interior, a pedir-lhe que lhe indicasse o melhor caminho, a melhor decisão. E a qualquer momento poderia dizer que hora é essa, sem olhar o grande relógio cuco da sala da mansão. Aprendeu a influência da lua sobre a maré e sobre o desenvolvimento dos seres vegetais e sobre o seu próprio ciclo menstrual. “Os homens são do sol e as mulheres, da Lua”, dizia Becca. Aprendeu a ler os sentimentos dos outros, por mais que estes tentassem disfarça-los, usando falsas expressões em suas faces. Aprendeu que todos os seres humanos nascem iguais, independentemente de sua condição social ou de sua aparência física e que, portanto, todos têm os mesmos direitos e deveres.
A única lembrança triste que Antonieta carregou de África foi a noite em que os feiticeiros tentaram invadir a mansão para levar Abayomi, o albino. Os mercenários sabiam muito bem quais as ordens do patrão: abater todos os feiticeiros e depois enterrá-los numa vala comum e profunda para que ninguém na cidade jamais soubesse que ocorrera aquele ataque. Antonieta acordara, em plena madrugada, com os tiros, os gritos, os socos, as facadas e o sentimento de brutalidade com que os mercenários exterminaram, um a um, todos os feiticeiros.
Quando os estavam enterrando, Becca desceu para o jardim e disse aos soldados que, se algum deles revelasse a alguém, algum dia, o que se passara naquela noite sangrenta, morreria atacado pela peste. Revelou a eles que era uma sacerdotisa e que suas profecias sempre se realizavam.
Aos vizinhos, no dia seguinte, disseram que uma manada de javalis os atacara e que tinham vencido os bichos, matando quase todos e espantando outros.
Os feiticeiros tinham escolhido a noite errada. Era lua nova e ninguém via nada, naquela escuridão, não tinham como saber se os mercenários estavam matando homens ou animais. Assim, a cidade estranhou o súbito desaparecimento de tantos feiticeiros, mas jamais desconfiou da verdade. António, antes de partir, gratificou o mestre Gonçalves com uma gorda soma em dinheiro, por seu sábio conselho com relação aos mercenários e este pensou que tinha apenas sido um professor exemplar para os filhos do doutor.
Agora, em prantos, ao se despedir de Becca, Antonieta tem a certeza de que aqueles dois anos em África haviam transformado, para sempre, a sua vida.
Antonieta voltou a Salvador, casou-se, teve filhos e uma vida aparentemente normal. Mas passou aos seus descendentes, filhos, netos, bisnetos, toda a sabedoria que adquirira de Becca, até que a vida se transformasse nessa materialidade e nesse consumismo e nesse individualismo estúpido e competitivo do século XXI e seus ensinamentos se perdessem nas redes sociais.
Becca e Antonieta voltariam a se encontrar em São Paulo, Brasil, dentro de um vagão de metrô, em 2021, quando se chamavam, então, Aruanda e Mariana.
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