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Encontro com Wanda

Foto do escritor: SAUDE&LIVROS FommSAUDE&LIVROS Fomm

Atualizado: 31 de dez. de 2024

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano


Minha mãe, Wanda, fotografada por meu pai, Alfredo, em 13 de maio de 1945 .
Minha mãe, Wanda, fotografada por meu pai, Alfredo, em 13 de maio de 1945 .

No Dia das Bruxas, quando se abriu aquela porta que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, embora eu não tivesse providenciado nenhuma abóbora iluminada, saí a caminhar pela beira da praia ao entardecer e, de repente, na orla já bem deserta, uma figura muito esbelta que vinha em sentido contrário, chamou a minha atenção. Era uma mulher longilínea, usava um vestido fora de moda e um elegante blazer de albene, certamente colocado às pressas para protege-la do friozinho de fim de tarde.

 

Quando nos cruzamos ela sorriu e eu a achei incrivelmente familiar. Parecia ter saído de um velho álbum de fotos. Demos apenas alguns passos e ela me chamou:

 

- Seu nome não é Isabel?

 

Eu me voltei.

 

- Sim, eu sou Isabel.

 

Ela riu, meio tímida, levando a mão direita aos lábios. Então a reconheci. Era a minha mãe, Wanda, aos 18, talvez 20 anos de idade.

 

- Você é Wanda? – perguntei.

 

- Como sabe? – respondeu ela se aproximando.

 

- E como você sabia que eu era Isabel?

 

- Não tenho certeza, foi um palpite. Sabe, um dia, terei uma filha e darei a ela o nome de Isabel, em homenagem à Princesa, a Redentora, que acabou com a escravidão no Brasil. Isso porque minha filha vai nascer em 13 de maio.

 

- Você parece muito segura do seu futuro, Wanda.

 

- Ah, -- riu ela, tirando um cisco imaginário da saia godê de seu vestido, -- isso é porque eu já vivi essa história e parece que estou pronta a vivê-la de novo...Não sei explicar muito bem.

 

Lá adiante, sob os coqueiros, havia um quiosque. Propus:

 

- Vamos nos sentar numa daquelas mesas e conversar um pouco? Isto é, se você não se importar de ser vista conversando com uma mulher tão mais velha como eu...

 

- Imagine, Isabel, você é uma simpatia e nem parece velha...

 

- Bom, eu tenho um bom cirurgião plástico, mas nem ele consegue fazer milagres quando se está a um passo dos sessenta...

 

Ela riu:

 

- Você é vaidosa!

 

- Muito.

 

- Ah, você pode ser mais velha, mas tem um corpo muito bom, muito sensual. E olhe para mim: meus primos costumam me chamar de Chico Esqueleto de tão magra que sou.

 

- Mas você, magra assim, é o sonho de todas as mulheres de hoje.

 

Ela pareceu desconcertada.

 

- Hoje? Que dia é hoje?

 

- 31 de outubro de 2010.

 

Desta vez, o que li no rosto dela foi alívio e logo veio uma gargalhada, daquelas bem sinceras, que eu passei a vida admirando nela.

 

- Ah, bem que eu sabia que estava sonhando. Bem bonito esse sonho com o futuro. Porque todo mundo sabe que hoje é 11 de agosto de 1933...

 

- E você deve estar preparando o seu enxoval... – interrompi eu.

 

- Ué, você é alguma adivinha?

 

- Você vai se casar com o Alfredo em dezembro. É uma vitória, não? Vocês lutaram contra o mundo para ficar juntos.

 

- Ainda bem que isso é mesmo um sonho. Você sabe até o nome dele.

 

- Sei muita coisa sobre você.

 

- Mas olhe – disse ela então com aquela praticidade que sempre a caracterizou—se você tem quase 60 anos em 2010, então no meu tempo você está longe de nascer...

 

- Nasci dia 13 de maio de 1951.

 

Ela deu um pulinho, um sobressalto, como num soluço. Nós estávamos sentadas, então, nas mesas do quiosque e a noite estrelada descia rapidamente sobre nós.

 

- Você é a minha filha.

 

- Sim, eu sou Isabel de Almeida Fomm de Vasconcellos Caetano, sua filha caçula, nascida 15 anos depois do seu filho mais novo. O mais velho é o Alfredinho, nascido em 1934 e o mais novo é o Alvan, de 1936.

 

- Eles morreram antes de mim, não é?

 

- Sim.

 

- Eu sabia. Ainda ontem eu disse à Jeannette, minha irmã, que sabia que morreria depois dos meus filhos... oh... me desculpe.

 

- Depois dos seus filhos, não da sua filha...

 

- Eu já morri, não é? Não poderia estar viva em 2010... eu teria 98 anos... ah, mas melhor não saber. E você, filha? Como tem sido a sua vida? Você é feliz?

 

- Sim, mãezinha, sou feliz, mas trago no peito uma dor aguda, a mesma que me fez infartar...

 

 - Por que, minha filha? Que dor é essa?

 

- É a dor de imaginar que não fiz tudo o que podia por você.

 

- Ah... Mas você fez sim. Você fez até mais do que podia.

 

- Como você sabe, mãe? Para você eu ainda nem existo.

 

- Não sei como eu sei, mas sei e pronto.

 

Eu ri.

 

- “...E pronto”. Você vivia dizendo isso. Estava sempre ocupada com seu trabalho e eu, acostumada com o excesso de mimos do meu pai, vivia pedindo beijos pra você e você me beijava e dizia: “pronto.” Como quem acaba de cumprir uma obrigação... – e eu ri: -- agora eu acho engraçado mas me lembro que ficava muito puta da vida...

 

-- E hoje? Você tem quem te mime?

 

-- Ah, claro, o Caetano vive me mimando, o meu marido.

 

Então ela aproximou a mão do meu peito e fez um gesto parecido com aquela brincadeira da minha infância, em que os adultos fingiam arrancar o nariz das crianças e, ato contínuo, ergueu o braço com a mão fechada e fingiu jogar alguma coisa ao vento.

 

- Pronto – disse ela. Joguei fora a sua dor no peito.

 

- Simples assim? E as tuas dores, as dores que eu te causei?

 

- Não me lembro de nenhuma. Você se lembra de alguma dor que eu te causei?

 

Tive que sorrir:

 

- Imagine, se houve alguma eu já a esqueci.

 

- É isso – disse ela, com firmeza, e já se levantando.

 

- Onde você vai?

 

- Não sei, mas tenho que ir. Meu tempo nesse tempo está esgotado.

 

Fiz um gesto para me levantar também.

 

- Não. Fique aí, Bel – disse ela, usando o meu apelido. – Peça uma cerveja e curta um pouco as estrelas. Eu vou indo em direção ao mar. E o mar me levará às estrelas, essas mesmas que você estará fitando.

 

- Adeus mãezinha – disse eu com lágrimas nos olhos e querendo abraçá-la, mas já sabendo que isso seria impossível. -- Você é linda, maravilhosa e chique com esse vestido esvoaçante e esse chiquésimo casaco de albene.

 

- Acha mesmo? – perguntou ela toda coquete. – Fui eu mesma quem fiz.

 

- É claro – disse eu, lembrando do sucesso dela como modista das ricaças paulistanas nos anos 1950 e 60.

 

Então ela se voltou e saiu caminhando em direção ao mar. Foi sumindo, se esmaecendo de leve, e eu pensei ter vislumbrado o vulto de um homem ao lado dela.

 

Pedi uma cerveja à garçonete. A noite estava muito estrelada.

 

Isabel, 31 de outubro de 2010.

 

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