Goulasch
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 24 de set.
- 4 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
(do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 2)

Elisa tivera, por toda a vida, uma grande ligação com a avó paterna. Uma ligação muito forte, mais forte ainda do que tinha com a sua própria mãe. Eram sentimentos diferentes, reconhecia. É claro que amava a mãe, mas para com a avó, o que Elisa sentia ultrapassava as fronteiras do amor.
Era um entendimento quase mágico, uma confiança cega, um misto de admiração e paixão. Tanto que a velha senhora, com tantos filhos e netos, tinha escolhido morar com ela e ambas, há já uns cinco anos, dividiam o apartamento de Elisa e nunca tiveram problemas. Viviam em harmonia, amigas e cúmplices em tudo na vida.
Marta, a avó, nascera em Viena e viera para o Brasil já adulta, acompanhando o marido que assumia a direção de uma empresa europeia no país. Morara muitos anos em Copacabana, mas com a morte do marido e a consequênte diminuição de sua renda, acabara mudando-se para a casa de um dos filhos, o pai de Elisa, em São Paulo. Quando a neta mais velha adquirira condições de morar sozinha, escolhera a avó por companheira e essa, imediatamente, aceitara o convite.
Há coisa de uns poucos meses, Marta começara a sofrer de um câncer de mama. Era um nódulo pequeno e, segundo os médicos, apresentava bons prognósticos. Depois da cirurgia, porém, Elisa começara a ficar seriamente preocupada com o estado da avó. A quimio e a radioterapia pareciam estar sendo ineficientes e o médico foi franco com ela:
- Não consigo entender, Elisa – dissera ele – porque sua avó não está apresentando os resultados que esperávamos com o tratamento.
Se o médico não entendia, ela menos ainda. Mas desconfiava que essa reação negativa do corpo da velha senhora tivesse alguma coisa a ver com o estado emocional dela. Afinal, o câncer apareceu logo depois que ela perdera o filho, o pai de Elisa, que morrera, em poucos meses, vítimas de um dos mais terríveis e desafiadores cânceres que podem acometer um paciente: o de pâncreas.
Assim como sabia que, dentre os parentes que amava, sua avó era sua preferida, Elisa sabia também que, dos filhos da avó, ela sempre preferira o mais velho, seu pai. Fora um duro golpe a morte dele. Para ambas, avó e neta, que se revezavam nos cuidados que a esposa, ocupada com a casa e com os outros filhos, alguns ainda pequenos, não pudera dedicar a ele.
Elisa, naquela mansa manhã de sábado, pensava, parada diante da tela de seu computador, em que como poderia, depois de tanto sofrimento, alegrar um pouco a sua avó. Pensava também em tudo o que aprendera com ela sobre a vida, sobre as pequenas alegrias e chegou a sorrir lembrando-se das guloseimas que Marta preparava para ela na sua infância e juventude. Os deliciosos doces austríacos, os bolinhos de miolo e o goulasch... esse, absolutamente imbatível!
Elisa desprezava as muitas receitas de goulasch que via nas revistas femininas ou na televisão. Todas estavam erradas. Algumas refogavam a carne antes de começar a cozinhá-la, aliás, quase todas, talvez na tentativa de abreviar o tempo de preparo daquele prato, que exigia horas e horas ao fogo. Outras usavam temperos demais. Mas ela sabia como era, aprendera com Marta que, para se fazer um bom goulasch, é preciso colocar o mesmo peso de carne cortada em cubinhos e de cebola picada, num caldeirão com muita água, por tempero, apenas sal e um pouco de páprica. Aí é só deixar o fogo agir. A panela fica lá, cozinhando tudo, fabricando a mágica do sabor, até que toda a cebola desapareça e forme aquele caldo espesso. Leva de quatro a cinco horas para se fazer um goulasch de verdade. Mas hoje em dia, pensa Elisa, ninguém mais quer ficar vigiando o fogão por quatro ou cinco horas... Lembra-se de quando Marta lhe contara a história desse prato. Sua origem estava em antigos trabalhadores europeus que, tendo que passar vários dias na floresta, no rigor do inverno, levavam pedaços de carne cercados de muita cebola e, todos os dias, cozinhavam e recozinhavam aquilo. No fim, sobrava uma carne muito bem cozida, temperada pelo sabor das cebolas que haviam se desmanchado pelos seguidos cozimentos, com um molho escuro e forte.
Foi então que Elisa teve uma ideia. Sua avó ainda estava dormindo mas sabia que ela combinara um jogo de buraco na casa da vizinha do oitavo andar. E as velhinhas, quando se reuniam em torno de uma mesa de cartas, costumavam passar horas e horas ali, jogando e fofocando. Daria muito tempo para ela preparar uma surpresa. Nunca, em toda a sua vida, Elisa cozinhara para a avó. Era sempre o contrário. Nunca também preparara um goulasch e sorriu ao imaginar a avó chegando do jogo, encontrando a mesa posta e, no centro, fumegando, um maravilhoso goulasch! Imediatamente telefonou para o açougue e encomendou 1,5 quilo de músculo, foi à geladeira, tirou as cebolas e pesou-as.
A avó acordou às onze da manhã, foi ao banheiro para a sessão de mal-estar de todos os dias provocada pela quimioterapia, tomou banho e arrumou-se toda para o jogo com as amigas. Então, Elisa foi para a cozinha.
Encheu de água quente um panelão, pensando na alegria de sua avó. Jogou na água um punhado de sal, pensando na alegria de sua avó. Uma pitada de páprica, pensando na alegria de sua avó. A uma da tarde acendeu o fogo do caldeirão, com a mistura, pensando na alegria de sua avó. Às três, lembrou-se de que aquela era a hora planetária da cebola, regida por Marte, e foi à cozinha ver como estava indo a mistura, pensando na alegria de sua avó.
Às oito da noite quando Marta entrou no apartamento, encontrou a mesa ricamente posta, com uma travessa de arroz, uma garrafa de vinho tinto e uma linda sopeira de louça que escondia um goulasch maravilhoso.
Quando Elisa abriu a sopeira e mostrou o prato a Marta, esta exclamou:
- Menina, você fez um goulasch de verdade!
Há muito tempo Elisa não via a avó comer com tanto apetite.
Talvez tenha sido coincidência, mas, daquele dia em diante, Marta começou a reagir bem às terapias e, em breve, estava plenamente recuperada.
Comentários