top of page

Mariana Espancada

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 25 de set.
  • 11 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3




Africana, img iStock
Africana, img iStock

Mariana acabara de levar outra surra de seu marido. Ele a espancara, cruelmente, como sempre, e ela, chorando, começou a pensar no seu destino e na sua condição de mulher.

Ele simplesmente se fôra, saíra do apartamento batendo a porta com estrondo, sem sequer olhar para trás.

 

Certamente, satisfeito. Tinha descontado nela, através da pancadaria, todas as suas próprias infelicidades e frustrações. Os filhos, trancados num quarto, nem ousavam espiar pela fresta da porta. Sabiam muito bem que, quando tentavam defender a mãe das contínuas brutalidades de seu pai, acabavam também agredidos.

 

Hoje, porém, havia algo de diferente.

Há dias, Mariana acompanhava as discussões, on line, de um grupo de mulheres que conversavam, por teleconferência, sobre a trajetória da repressão e da intimidação sofrida por seu sexo ao longo da História. Mariana compreendera então todo o horror e toda a discriminação sofrida pelas fêmeas por vários séculos.

 

Era uma história batida:

- as bruxas, que passaram 600 anos sendo queimadas vivas nas fogueiras da inquisição;

- as meninas que não eram sequer alfabetizadas quando os recursos das famílias, para a educação, se voltavam para os filhos homens pois para que, afinal, tinham elas que estudar se iriam apenas cuidar da casa, cozinhar, lavar, passar e criar os filhos deles?;

- as esposas que, quando o casamento acabava, percebiam que, se quisessem sobreviver, teriam que continuar atadas àquele homem, que era seu marido e a quem já não amavam, sequer suportavam, pois, afinal, todo o seu patrimônio passara automaticamente para ele, ao se casarem, e

- as que não tinham patrimônio algum, raramente teriam como sobreviver sem o dinheiro dele, não tinham formação e nem oportunidades profissionais;

- as muitas que, quando incomodavam demais, eram simplesmente trancadas em hospícios pelo poder dos maridos ou da própria família;

- aquelas que, ao encontrar um novo amor fora do casamento tinham sido simplesmente assassinadas pelo seu “amo e senhor” que garantia a impunidade de seu crime pela então vigente figura jurídica da “legítima defesa da honra”;

- aquelas que, tendo perdido a virgindade antes do casamento, foram brutalmente castigadas pelas próprias famílias, humilhadas, expostas sexualmente e até mesmo expulsas do lar (já que não conseguiriam mais se casar e seriam para sempre uma boca a ser alimentada) e acabavam, por isso, “caindo na vida”, expressão popular para a prática da prostituição...

 

Tantas histórias de tantas mulheres cujo talento fôra sendo escondido e reprimido com o passar dos anos...

 

Mariana percebe que estava sendo mais uma vítima de toda essa condição social que, apesar dos avanços conquistados pelas feministas, ainda perdurava hoje, em pleno século XXI.

 

Percebia agora, com uma clareza monstruosa, que trazia introjetado em seu coração aquele sentimento de menos valia, de inferioridade mesmo, de uma culpa absurda por ser simplesmente mulher:

- Quando aceitava a agressão do marido que, muitas vezes, arrependido, jurava que não mais a agrediria;

- quando voltava à Delegacia da Mulher para retirar a queixa contra ele;

- quando acreditava que seu amor seria capaz de modificar as atitudes dele;

- quando se curvava aos empecilhos que se impunham para um divórcio, para a sua liberdade...

 

Não! Hoje ela diria não. Chega de se submeter às sessões de tortura e espancamento. Chega de submeter seus filhos à visão dessa violência gratuita e absurda.

 

Abre o seu notebook, algumas gotas de sangue caem sobre o teclado, ela tenta limpar os ferimentos e, depois, tecla o endereço daquelas mulheres desconhecidas que dirigem a ONG SOS Mulheres Agredidas. Vai pedir ajuda para sair desse inferno.  Não sabe quando nem como, mas sabe que ela não será mais uma vítima calada, conformada, constrangida pelo marido machista e cruel. Agora chega!

 

...

De volta para casa, o terror volta a invadir Mariana. Ela treme. Fôra muito bem recebida pelas companheiras da ONG que lhe explicaram, pacientemente, todas as  opções que havia para que ela se libertasse daquele tortura da violência do marido. Mas nada a entusiasmara muito. Ela já vira, inúmeras vezes, na TV as histórias trágicas de maridos feminicistas que, mesmo proibidos pela Justiça de se aproximar de suas ex-mulheres, as tinham assassinado em plena luz do dia, na rua ou em casa mesmo. A perspectiva de sair de seu próprio lar e ir viver, escondida, em algum abrigo cheio de mulheres espancadas como ela, não era nada animadora. Denunciá-lo poderia gerar um processo que, como todos, se arrastaria por meses e meses, talvez anos, e a deixaria à mercê do ódio dele.

Uma terapia familiar seria uma ótima opção, mas ele jamais aceitaria ir, com ela ou mesmo sem ela, a um “médico de loucos” como ele, apesar de sua alta escolaridade, ainda chamava os psiquiatras.

 

No entanto, não era por nada disso que ela tremia.

 

Ela tremia porque imaginava que, de alguma maneira, ele pudesse ficar sabendo que ela fôra procurar ajuda numa ONG de mulheres. Poderia, por exemplo, ter construído algum acesso remoto ao seu notebook e rastrear os sites por onde ela estivera navegando. Caso descobrisse, lhe daria uma surra ainda maior que as habituais.

 

Sentada em seu banco, junto à janela do metrô, mal viu aquela mulher negra acomodar-se ao seu lado.

-- Por que você está tremendo, minha amiga? Precisa de alguma ajuda? Está doente de medo ou o que? – perguntou à ela a mulher.

 

Ora, mas que ousadia! – pensou Mariana – dirigir-se à mim e, ainda por cima, chamando-me de amiga.

 

-- Não sou sua amiga – respondeu secamente.

A outra sorriu. Quando sorria, seu rosto se iluminava, seus olhos emitiam um brilho estranho e sua expressão gerava, em quem a observasse, uma indubitável confiança.

 

Mariana sorriu de volta, subitamente tranquila, e parou de tremer:

-- Desculpe-me – respondeu – Sou eu que estou amarga demais! Muito prazer em conhece-la, sou Mariana.

 

A outra estendeu-lhe a mão:

-- E eu, Aruanda! E, acredite, sou sua amiga. Sou amiga de todas as mulheres que sofrem por sua condição feminina. Sei que você está sofrendo por isso.

 

-- Sim – respondeu Mariana, meio assustada com o poder que sentia emanar daquela mulher, negra, muito negra, diferente daquelas que que, resultado de muita miscigenação, eram morenas, ou morenas claras. E as roupas! Aruanda parecia uma ilustração africana. Teve um pressentimento e continuou – Mas você não é daqui, não? Seu sotaque, seus trajes...

 

-- Sou africana. Vim de um país chamado Zimbora, mais precisamente da cidade de Cômbia, na costa ocidental do continente, antiga colônia portuguesa, onde nasci.

 

-- E veio para ficar? Está morando em São Paulo? – perguntou Mariana.

 

-- Não. Estou de passagem. Hospedada num bom hotel, vim para ministrar algumas aulas na Escola de Sociologia da USP.

 

-- Oh! É uma intelectual então.

 

-- Sou pós-graduada e doutorada em Sociologia pela Universidade de Londres. – E riu – O espanto que vejo em seus olhos é mais ou menos comum nas pessoas quando me conhecem. No fundo de suas almas, a maioria dessas ainda espera que os negros ocupem posições mais humildes. É cultural. Mas voltemos a você. Vejo que parou de tremer.

 

Mariana teve que rir: -- É verdade. Creio que tenha sido a sua presença.

 

-- Já estamos a duas estações de onde preciso descer – disse Aruanda – Vamos tomar um café no lobby do meu hotel? Lá você poderá me contar, afinal, o que a aflige.

 

Aruanda estava hospedada num hotel ótimo, a uma quadra da Avenida Paulista, com um café e restaurante num lindo terraço. Foram se esconder numa mesa discreta, junto às jardineiras floridas que ladeavam os muros rentes à rua, mas num nível bem mais elevado do que as calçadas. Mariana, quando percebeu, tinha despejado nos ouvidos da outra todo o seu sofrimento e toda a sua angústia. Lágrimas escorriam-lhe pela face e ela estava um tanto constrangida por ter conseguido desabafar assim com uma estranha. E põe estranha nisso! –pensou.

 

Quando terminou a narrativa de Mariana, Aruanda fitou longamente suas próprias unhas bem manicuras e disse, com um suspiro:

-- Espero que você não interprete mal o que vou lhe dizer. A despeito de toda a minha formação intelectual, sou africana e, em África, a feitiçaria tem grande poder. Eu mesma nasci num lar de feiticeiros. Minha irmã, Luanda, seguiu o caminho da magia do Mal. Já eu, sou o oposto dela. Trabalho com as forças do Bem. Senti, no metrô, que você precisava de ajuda, que estava sofrendo. Pois bem, estarei em São Paulo por quase três meses e, se você quiser a minha ajuda, podemos nos encontrar sempre que for preciso. Para começar, vou lhe dizer uma coisa. Você tem que concentrar sua mente em seu próprio poder. Tem que se livrar dessa culpa cultural que persegue o nosso sexo. Você é uma mulher poderosa, embora esteja vivendo subjugada. É preciso que compreendamos, nós mulheres, que a submissão do nosso sexo foi longamente construída por aqueles que justamente temiam o nosso poder. Nós somos muito diferentes dos homens, não apenas fisicamente, mas também mental e espiritualmente. A sonhada igualdade buscada pelos movimentos feministas sérios é apenas social. Uma questão de direitos na sociedade. Nós nunca seremos exatamente iguais a eles. Nós temos o grande poder da maternidade e a maternidade nos brinda com uma profunda intuição. Sem intuição feminina os nossos bebês raramente sobreviveriam. O poder com o qual a natureza moldou as mulheres é mera questão de sobrevivência. Nada tem de “sobrenatural”. O problema é que nós mesmas já não conseguimos, após milênios de repressão social e cultural, exercer plenamente o poder que a intuição nos confere. Precisamos abrir a nossa mente para esse poder, crer nele com toda a nossa alma.

 

-- Mas como fazer isso? – perguntou Mariana.

 

-- Com treinamento e com fé. Fé na força que mora dentro de todos os seres humanos, homens e mulheres e transcende, em muito, a mera racionalidade. Nas mulheres, o acesso a essa força é ainda mais facilitado, justamente por suas capacidades intuitivas. Tudo isso nem é tão mágico quanto possa parecer. Veja bem: a mente humana é dotada de uma inteligência interior que nunca chega totalmente à consciência. É essa inteligência que faz com que você respire, sem tomar consciência de que está respirando; ou faça a digestão sem saber que a está realizando. Em outro nível essa mesma força interior passa a realizar “automaticamente” tarefas repetitivas das quais você não precisa mais se conscientizar, depois que as aprende. Por exemplo, você pensa para levantar-se? Pensa para dirigir seu automóvel? Pensa para equilibrar-se nas duas rodas finas da sua bike? Pensa para deitar-se? Não. Você executa tudo isso, e muito mais, de maneira não-consciente. Está correto?

 

-- Sim, sim! – exclamou, já encantada, Mariana – Eu nunca me dei conta disso!

 

-- Então – continuou Aruanda – essa mesma força tem outras capacidades. Acesso, por exemplo, a outras instâncias, realidades simples ou complexas, sentimentos alheios e por aí afora. Você pode começar a treinar o acesso ao seu eu interior perguntando-se, por exemplo, que hora é essa? Não pense, não calcule onde estarão os ponteiros do relógio, ou melhor, hoje em dia, os números do relógio digital. Apenas formule a pergunta à sua mente e a resposta virá: são 15h36. Veja – mostrou seu celular, que estava com a tela voltada para a mesa, erguendo-o, que marcava exatamente 15h36.

 

-- Meu Deus! – exclamou Mariana ao ver a tela.

 

-- Pois é – respondeu Aruanda – esse é o nosso Deus, a nossa força interior, que mora dentro de nós. – e continuou: Faça esse pequeno exercício de “adivinhação” sempre que se lembrar dele. O acerto contínuo fará você ir ganhando confiança na Força que mora em você, em todos nós. Você começará a perceber outras coisas que nunca notara antes. Quando sua alma estiver convencida da existência dessa Força, comece a usá-la para a sua própria libertação dessa condição humilhante e submissa que a faz ser dependente, por exemplo, de seu amor pelo seu marido torturador. Entenda que ele a teme, com o mesmo medo que todos os homens têm, intuitivamente (sim, eles também têm intuição), medo das mulheres, do poder de sedução que elas têm sobre eles e desse poder, que eles adivinham, advindo de sua intuição, que é bem maior do que a deles.

 

-- Mas... não compreendo ainda como poderei usar essa força para me libertar dele... – disse Mariana.

 

-- Os homens foram criados para crer que seu maior poder está em sua atividade sexual. Seu desempenho no sexo é para eles, fonte de autoafirmação e, quando falham, de desespero. Diferente demais das mulheres. Quando seu marido a agredir, enfrente-o. Com seu olhar, com a confiança de que você é, mais do que fisicamente, mais forte e mais poderosa do que ele. Não se encolha. Não se curve. Enfrente cada golpe dele com a coragem de sua força interior e pense, olhando nos olhos dele, que cada vez que ele erguer a mão para bater em você, ele se enfraquecerá sexualmente. Pense nisso, com todo o seu ser.

 

Naquela noite, como Mariana temia, seu marido chegou em casa vociferando:

-- Sua vaca! – gritou ele ao vê-la – Você pensa que uma ONG de feministas imbecis vai fazer alguma coisa por você?

 

Mariana olhou bem nos olhos dele:

-- E você pensa que tem o direito de vasculhar o meu computador?

 

-- Claro que tenho! Você fica tramando contra mim, pelas minhas costas, prostituta! – já puxando-a pela braço e arrastando-a para o quarto.

 

As crianças, que acabavam de chegar da escola, correram para se esconder.

 

Ele deu dois tapas no rosto dela e jogou-a na cama.

-- Agora você vai ver o quanto vale um bom macho, sua puta. É isso que você quer, não é? Uma boa trepada por detrás vai acalmar os seus impulsos feministas.

 

Abaixou-lhe a calça, a calcinha e pegou seu membro, disposto a penetrá-la por trás, o que ele sabia que ela odiava. Mas... o membro continuava inerte, por mais que ele o manipulasse. Num segundo, ela saltou da cama, aproveitando o momento de perplexidade dele, e, sem nem mesmo recompor-se, tirou a chave da porta do quarto, saiu, e trancou-o lá dentro.

 

Pegou a bolsa, as crianças, quase arrastando-as, as chaves do carro dele, o elevador e, quando ele finalmente conseguiu arrombar a porta do quarto, ela já estava dirigindo em direção ao hotel de Luanda. Meteu o carro na garagem. Gargalhava. As crianças, encolhidas e assustadas, no banco de trás do automóvel, perguntavam-se se sua mãe enlouquecera.

 

Depois de registrar-se, com o cartão de crédito dele, perguntou ao recepcionista se poderia falar com a Dra. Aruanda.

 

-- É minha amiga – explicou.

 

-- Sim, eu as vi juntas essa tarde. – e ligou. – Passou o telefone à Mariana que disse apenas:

 

-- Estou me registrando no hotel. Não precisa se incomodar em descer. Amanhã falaremos. Deu certo. Ele brochou!

 

O recepcionista, constrangido, tossiu levemente.

 

E Aruanda, caindo na risada, disse apenas:

-- Menina, você é mais rápida do que eu poderia imaginar.

 

Mariana nunca mais voltou para casa.

 

Aruanda indicou-lhe uma boa advogada, sua conhecida. Moveram um processo de divórcio alegando maus tratos. A ONG feminista deu-lhe toda a assessoria necessária.  O juiz deu-lhe a guarda das crianças e outro processo, por agressão e estupro (forçar a esposa a ter relações contra a sua vontade), foi movido contra ele.

 

Com a pensão recebida dele, Mariana alugou um pequeno apartamento, colocou as crianças numa escola em período integral, conseguiu um emprego de recepcionista numa clínica de estética e seguiu com a vida.

 

Quando Aruanda ia partir de volta à África, Mariana acompanhou-a ao aeroporto. Disse:

-- Nunca poderei agradecer a você por ter me dado de volta a minha própria vida. Não quero nunca perder o contato com você. Você foi realmente a minha grande amiga nessa vida! – E acrescentou, suavemente: -- E talvez também em outras vidas...

 

Aruanda passou, com carinho, a mão no rosto dela:

-- Minha menina, vá atrás da sua felicidade. Desejo que encontre um companheiro digno e que seja muito feliz!

 

Mariana riu:

-- Ah... e tem mais uma coisa. Nunca mais precisei consultar o celular para saber que horas são...



Comentários


bottom of page