Marina e Eneida
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 24 de set.
- 12 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Marina crescera na fazenda. Ansiava pelas luzes e pelo glamour das grandes cidades, que via pela televisão. Seu pai era o homem de confiança do dono do lugar, um velho coronel do cacau, que fora, inclusive, deputado e senador. O coronel era amado ou odiado, não havia meio termo. Mantinha seus homens, e suas famílias, sob um regime de ferro, mas não lhes deixava faltar alimento ou mesmo conforto. As casas dos trabalhadores eram abastecidas por luz elétrica, água, bem mobiliadas, de móveis toscos e simples, mas com conforto. Todos tinham televisão porque o coronel trouxera grandes antenas parabólicas, um bom técnico de Salvador, e construíra um sistema de cabos que levavam as imagens das três grandes antenas a todas as casas da fazenda.
Dizem que o sistema custara ao patrão uma pequena fortuna, mas de fato nem fora tanto dinheiro assim, e o coronel queria ver seus homens satisfeitos e não queria saber de eles envolvidos com as tais eternas reivindicações dos comunistas, aquela praga, como ele costumava dizer. Mandou sintonizar, além da grande rede que dominava a audiência no país, apenas as emissoras públicas e educativas. Não queria correr o risco de divulgar ideias espúrias entre os seus. Mas todos ficaram felicíssimos. Assistiam às novelas, aos filmes e até algumas aulas. Marina logo se apaixonou pela telinha. Começou a querer ter roupas, andar pintada, cheia de frescuras, como dizia sua velha avó. O pai comprava-lhe alguns mimos quando ia à cidade e ela mesma lavava e cuidava de suas roupas e guardava tudo numa pequena cômoda, onde também ficava o seu precioso estojo de maquiagem.
De manhã, ia à escola rural, como todas as crianças do lugar, levada na carroceria de um caminhãozinho da fazenda, dirigido por uma das mulheres dos trabalhadores. De tarde ajudava a mãe nas coisas da casa, assim como faziam suas duas irmãs, enquanto os meninos, que eram mais dois irmãos, trabalhavam na horta da casa, orgulhosos por ser a única casa da fazenda que tinha horta, e jogavam futebol no campinho à beira do rio. Marina gostava de andar pelo mato e, todo o fim de tarde, antes que começasse a novela das sete na TV, saía para caminhar. Aprendera, também na TV, que caminhar fazia bem pra saúde e ela queria ter sempre saúde porque via o sofrimento da avó, com tantas dores e doenças, que seu pai atribuía ao fato de ter parido muitos filhos e de viver com aquele cigarro de palha pendurado nos lábios. A mãe achava estranha aquela preocupação de uma menina de apenas 15 anos com a beleza, a estética e a saúde, mas achava também tudo isso bem melhor do que ela se meter naquela loucura da juventude, pois sabia que muitos jovens, mesmo ali na vida calma da fazenda do coronel, se metiam a ficar fumando maconha e saíam a pé ou a cavalo para a cidadezinha próxima para namorar e fazer coisas piores.
Semana passada mesmo, aparecera uma meninazinha, de apenas 13 anos, grávida. Marina não se interessava muito por aquelas “baladas” da garotada, ficava um tempão caçando coisas para ver na TV, caminhava todas as tardes e sempre tirava boas notas na escola. Ano que vem terminaria o primeiro ciclo e os estudos e a mãe se preocupava um pouco com o futuro daquela menina meio diferente, a sua filha mais velha.
Numa noite de lua cheia, Marina, afinal, resolveu uma das preocupações da mãe: ficou mocinha. A mãe sabia que, hoje, as jovens menstruavam mais cedo do que as mulheres de sua geração e ficava um pouco apreensiva por Marina já ter quinze anos e ainda não lhe terem vindo as regras. A mãe era uma mulher um pouco diferente do padrão das habitantes da fazenda do coronel. Casara-se aos 30 anos com o então jovem capataz: fora uma paixão fulminante e ela era uma das professoras da escolinha da cidade próxima. Abandonou o magistério, foi morar com ele na pequena casa e nunca se arrependeu de tê-lo feito. Amava o marido e lhe dera cinco filhos sadios.
Comentara com o doutor, que aparecia uma vez por mês na fazenda para ouvir as queixas de saúde dos trabalhadores e cuidar dos doentes, o atraso na chegada da menstruação da sua mais velha, que a preocupava, uma vez que a segunda, que só tinha 13 anos, já era mocinha fazia um certo tempo. Mas o doutor dissera que provavelmente não havia nada de errado com Marina.
Por isso, a mãe suspirou aliviada, naquela noite, em que a filha sangrou pela primeira vez.
Mas enquanto para a mãe foi um alívio, Marina não gostou nem um pouco da ideia. Aquele negócio de sangrar era uma chatice, tirava-lhe a liberdade, além de dar uma certa dor na barriga. A mãe argumentava: isso é sinal de saúde, sinal que você já é, finalmente, mulher e pode ter bebês. Mas Marina não se interessava muito por bebês. Afinal, ajudara a mãe, desde muito pequena, a cuidar dos filhos dela, seus irmãos, e achava aquela história de criança, fralda, leite e vômito, outra chatice sem par.
À medida que se tornava mais mulher, Marina também lentamente foi mudando. Às vezes ficava muito irritada, às vezes uma tristeza inexplicável lhe tomava o peito, às vezes olhava com gula para os rapazes, os mesmos que até então lhe pareciam apenas uns bobos bagunceiros. Mas era muito observadora das coisas da natureza. Sempre cortava o cabelo no crescente e plantava sementes na lua nova. Por isso, percebeu que seu ciclo menstrual estava se ajustando também às fases da lua. No quarto minguante, estava sempre inchada e nervosa, na lua escura, ela invariavelmente sangrava e por apenas três dias, não como no começo da sua menstruação, que sangrava por cinco ou seis.
Certa tarde caminhava, como sempre, pelo mato, quando foi atraída por uma pequena trilha irregular que nunca notara antes. Seguiu por ela, subindo, e caminhou por uns dois quilômetros até se deparar com a cerca que delimitava a fazenda. A trilha, porém, continuava. E ela seguiu, pensando que era estranho que nunca, nunca mesmo, tivesse se aventurado por aquelas bandas.
Atravessou a cerca, continuou subindo e estava achando que a paisagem mudava, sendo mesmo muito diferente dos campos aos quais estava acostumada. Ali as árvores pareciam mais altas, havia emaranhados de cipós e um pequeno córrego acompanhava a trilha. Para onde irá essa água? pensou Marina. Já estava se aproximando a hora do por do sol e, por um instante, ela temeu que, se escurecesse, talvez não achasse mais o caminho de volta. De repente avistou, por entre os galhos da vegetação, algo que se parecia com um telhado. Ué, quem será que mora aqui? Ou seria uma casa abandonada? pensou. Aproximou-se e viu que realmente era uma casa habitada. Havia uma luz lá dentro, um velho cão descansava à porta. Pensou em bater, em saber quem, afinal, se esconderia ali. Pois, quem quer que fosse, ela jamais ouvira falar. Antes que batesse, um vulto abriu a porta.
- Boa Tarde! – disse uma voz forte e redonda de mulher.
Marina chegou mais perto e viu a velha senhora, um lenço colorido a esconder-lhe os cabelos, saias rodadas como as das ciganas que às vezes apareciam por ali. Era velha, mas vinha dela uma tremenda vitalidade, uma energia que Mariana quase podia tocar.
- Boa tarde – respondeu com timidez.
- Eu ia mesmo fazer um chá. Quer me fazer companhia?
- Quem é a senhora? – perguntou Mariana – Mora aqui há muito tempo?
- Você deve ser Marina, a filha do capataz da fazenda. Já a vi caminhando por aí.
- Sim, sou a Marina. Mas como nunca encontrei a senhora antes?
- Moro aqui há muitos, muitos anos. Muito antes de você nascer – respondeu a mulher – tocando de leve o braço da moça, conduzindo-a para dentro da pequena casa.
Eneida era o nome dela. E contou à Marina que raramente saía de casa. Tinha uma horta, três ou quatro árvores frutíferas, um galinheiro, uma pequena criação de porcos e pouco precisava do que quer que fosse, além do que possuía ali mesmo.
- Mas vive tão isolada aqui, eu mesmo nunca a tinha visto.
- E tenho o Sol e a Lua e os pássaros e toda a natureza. Por que sentiria solidão?
- Mas não gosta de conversar, como estamos fazendo agora?
- Não com qualquer um, minha menina. Não com qualquer pessoa. Quando eu era jovem, vivia cercada de gente e o meu coração se sentia solitário. Agora muito raramente vejo alguém, ou vem alguém aqui, como você, e meu coração está repleto de alegria, vivo feliz aqui, cuidando da terra e dos bichos.
- Engraçado – disse Marina – saboreando seu chá – eu vinha caminhando e achei a trilha e quase que sabia que alguma coisa me esperava aqui.
Eneida riu:
- Ah, você sabia, sim! Nada acontece por acaso. Foi a sua vontade, mais o meu pensamento que atraíram você para cá.
- A senhora é muito gentil e simpática, mas por que seria importante eu vir aqui?
- Porque você é jovem e precisa de alguém para guiá-la pelos caminhos da vida.
Marina achou a resposta de uma pretensão enorme e lembrou-se que tinha seus pais e professores e muita gente para guiá-la, se achasse isso necessário.
Eneida parecia ler seus pensamentos:
- Eu sei que você tem quem a oriente na vida, mas eu posso guiá-la pelos caminhos mais profundos da sua alma, eu e a minha solidão descobrimos, a cada dia, mais e mais sobre os mistérios.
- Que mistérios?
- A vida, minha Marina, a vida é o maior dos mistérios. Você, por acaso, sabe por que nasceu ou por que vai morrer? – disse ela, rindo – Esse é o maior dos mistérios. As pessoas da cidade estão se esquecendo de que são irmãs de tudo o que está vivo. E, acredite, até mesmo as pedras têm vida. Nesses anos todos que tenho vivido aqui, quase todos os dias sem falar com nenhuma pessoa, só conversando com as plantas e com os bichos, aprendi muito e para você, Marina, vale a pena ensinar.
-Por que especificamente para mim?
- Porque para você está na hora.
- Como a senhora...
- Eneida. Chame-me de Eneida e não de senhora. Quero ser sua amiga.
- Então, Eneida, como sabia quem eu era? Disse que me viu algumas vezes caminhando, mas eu nunca a vi...
- Estou sempre me escondendo das pessoas, nunca caminho pelas trilhas, vou pelo meio das moitas, quando preciso ir.
- E vai aonde?
- Às vezes vou à cidade, recebo algum dinheiro do tempo que eu trabalhava, você sabe, então vou lá buscar, no banco, e aproveito para comprar umas poucas coisas de que preciso.
- Nunca ouvi o povo falar na senho...em você.
- Mas eles falam. Fingem que eu não existo porque têm medo de mim, da minha solidão, da minha recusa de viver como eles ou com eles, mas quando uma criança ou um velho adoece e os médicos modernos não conseguem curá-los, aí, sim, eles se lembram que eu existo e sobem para cá, em busca das minhas ervas – Eneida deu um suspiro e fitou as unhas da mão direita – Eles me chamam de bruxa, o padre tem horror de mim e os médicos falam que sou curandeira, por isso pretendem esquecer que eu existo. Mas quando precisam, a velha Eneida está sempre aqui.
- Está ficando tarde – disse Marina, subitamente também com medo. – Preciso ir. Foi um prazer conhecê-la.
E saiu correndo, trilha abaixo.
Depois, enquanto servia o jantar para os pais, quase falou em Eneida. Mas achou melhor ficar quieta. Naquela noite, nem quis ver televisão. Lavou a louça e meteu-se na cama. A Lua estava cheia e, como agora sempre acontecia nessa época, ela tinha uma umidade de clara de ovo entre as pernas. Pela janela aberta, na noite quente, podia ver a Lua. Os irmãos ainda não tinham vindo para o quarto, estavam vendo um jogo na TV, faziam muito barulho e brigavam, cada um torcendo por um time, e Marina saboreava seu momento de solidão. Pensava na estranha mulher que conhecera. E que chá delicioso era aquele, Marina nunca tinha tomado nada tão gostoso, era melhor do que coca-cola! Mas como é que uma mulher, ainda mais já tão velha, podia viver naquela solidão? E como nunca lhe acontecera antes ter visto aquela casa?
Marina sabia que voltaria lá. Uma curiosidade irresistível a dominara.
O dia seguinte passou e Marina, entretida com os seus afazeres, pouco pensou em Eneida. Mas, fim da tarde, seus passos a levaram de novo para a casa da velha. Encontrou-a cutucando a terra em torno de um arbusto:
- Essa danada tem raízes delicadas – foi logo explicando – precisa de terra fofa para crescer com saúde!
Todos os dias, por um ano inteiro, Marina visitou Eneida. Com ela aprendeu os segredos do cultivo das ervas, todas elas, para todos os tipos de usos: do curativo ao culinário e aprendeu a magia das plantas, que sempre respondem aos nossos cuidados, principalmente para quem sabe ler os movimentos e os ciclos da terra e das estrelas. Nunca falou a ninguém sobre tudo isso. Jamais revelou as histórias encantadas de fadas e sereias e estranhos seres antigos que eram metade homem, metade cavalo e de deuses que voavam e tinham vindo para a Terra viajando através das estrelas do céu.
Assim, a mãe viu desenvolver-se na sua mais velha um estranho gosto pelo cultivo da terra. A pequena casa se encheu de plantas ornamentais, a horta ganhou ervas que vinham direto do quintal de Eneida e Marina sabia curar muitas das dores de sua avó, sempre doente e também aliviava os ferimentos de trabalho dos irmãos e de todos, na fazenda. Um dia, a mãe quase lhe arrancou o segredo mas, era estranho, cada vez que Marina resolvia contar para alguém sobre a velha Eneida, uma força maior a fazia calar, temerosa nem ela saberia de quê.
Nesse ano, Marina apaixonou-se pela primeira vez. Era um jovem professor que chegara à cidade e arrancava suspiros da moças nativas. Quando pensava nas suas chances com ele, quase sempre desanimava. Havia tantas moças mais belas que ela na escola e na cidade. Por que ele prestaria atenção nela?
Mas, um dia, aconteceu. Encontraram-se na praça, num domingo, ela voltando da missa. E ela leu nos olhos dele o amor. Ficou radiante e não podia esperar a hora do por do sol para subir até a casa de Eneida e contar a ela que sabia que, afinal, ele também a amava!
No entanto, quando estava, naquela tarde, se aproximando da casa da velha, sentiu que alguma coisa na paisagem estava diferente. Tudo muito quieto. Não havia o canto dos pássaros. As árvores pareciam outras. Marina sentiu uma ausência no ar, mas não saberia dizer o que era.
Quando avistou a casa, percebeu. Eneida se fora, pensou. Tudo estava mudado. A casa em ruínas, como se há muito tivesse sido abandonada. Nem sinal dos bichos, muito menos das plantas. O quintal fora tomado pelo mato e a casa estava cheia de ratos (Marina podia ouvi-los). Entre as ruínas, dentro da casa, reconheceu os restos da mesa onde tomara seu primeiro chá com Eneida e também uma cristaleira, muito linda, que havia no canto.
Marina ficou estarrecida. O que acontecera? Ainda ontem estava tudo lá e agora parecia que o lugar estava desabitado há cem anos...
Voltou, desolada e sem encontrar uma explicação para aquele estranho acontecimento. À noite, sonhou com Eneida, que flutuava, sentada numa nuvem, nunca respondia às suas perguntas e dizia apenas: Estarei para sempre com você.
Na cidade havia um velho, quase tão velho quanto Eneida, que era dono do maior armazém do lugar. Marina pensou que talvez ele pudesse lhe dizer alguma coisa sobre Eneida. No dia seguinte, quando as aulas terminaram, foi para o armazém e teve que esperar que ele acabasse de atender alguns clientes. Por fim, quando se desocupou, ela perguntou:
- Desculpe incomodar o senhor, mas eu preciso saber se o senhor, que está aqui há tanto tempo e conhece todo mundo, sabe de uma senhora que mora lá pra cima do morro, depois da fazenda do coronel, sozinha numa casa.
O velho corou subitamente. Olhou bem dentro dos olhos da moça e disse:
- Que senhora? Como é o nome dela?
- Eneida.
- O que é que uma jovem como você sabe sobre Eneida? Quem lhe contou?
- Não, ninguém me contou. Eu mesma fui lá várias vezes e agora, de repente, encontrei a casa e todo o local em ruínas...
- Há anos e anos está em ruínas – disse o velho. – Eneida viveu anos lá e hoje ninguém mais se lembra dela. Morreu em 1958, muitos anos antes de você nascer.
Marina arregalou os olhos:
- Mas eu a vi! Eu conversei com ela.
O velho riu:
- Só se foi o fantasma daquela velha bruxa.
- Ela era uma bruxa?
- Era o que povo dizia, mas todo mundo, quando estava doente, subia o morro para ir buscar seus remédios.
- E o que mais?
- Como o que mais?
- Quem era ela? Como chegou aqui?
- Olha, moça, sua mãe não vai gostar se eu lhe contar.
- Juro por Deus – e Marina cruzou os dedos sobre os lábios, beijando-os – que eu nunca repetirei para ninguém o que o senhor me contar. Mas eu preciso saber.
- Eneida era... era... bom, ela tinha uma casa de mulheres em Salvador. Veio para cá, mocinha, com o coronel. Ele estava louco por ela e mandou construir aquela casa, ao lado da fazenda. Com o tempo, enjoou dela. Todos pensavam que ela voltaria para a capital, mas ela ficou lá, sozinha de tudo, cada dia mais isolada e o povo foi descobrindo que ela sabia preparar remédios e benzer os doentes. Morreu de velha, sempre sozinha. Levaram um monte de dias para descobrir o corpo e só o fizeram por causa dos urubus. É só o que eu posso dizer.
- Muito obrigada.
Marina saiu para a praça cheia de sol. Pensou no namorado, mas o pensamento não tinha a mesma força de dois dias atrás. Então decidiu: quando terminasse os estudos, no final do ano, que já se aproximava, ia tomar um ônibus, levando tudo o que era seu, e partiria para Salvador. Arrumaria um trabalho na cidade e continuaria a estudar. Um dia, quem sabe, seria importante em algum trabalho no Rio de Janeiro, a cidade das novelas. Sentia uma estranha certeza, uma confiança, nenhum temor. Afinal, Eneida estaria sempre com ela.
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