O Dia em que Papai Telefonou
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 25 de mai.
- 4 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

Maria Cristina caminha assoviando. Não. Não fica bem, realmente, não fica bem. Uma jovem tão elegante a assoviar pelas ruas, como uma qualquer. Mas Maria Cristina agora é uma qualquer. Aí é que está. E, como uma qualquer, pode assoviar pelas ruas o quanto quiser ou bem entender. Não tem satisfações a dar. Nenhum jornal se interessaria em fotografá-la. Nunca mais levará Rex a exposição. Maria Cristina sorri à lembrança do collie. Pobre Rex. Talvez seja ele o único, em casa, que realmente sente a sua falta.
O ônibus vem lotado. Maria Cristina não se importa. Na verdade, até gosta. Gosta de gente, cheiro de gente, gente do povo. Gosta das cantadas dos homens da rua, gosta dos rostos amontoados do ônibus. Com dificuldade, passa pela roleta. Paga a passagem. Fechando a bolsa, num relance, vislumbra o envelope que chegou esta manhã. Fechado ainda. Ops. O carimbo dos Correios mostra a data de emissão: 28 de outubro de 1978.
Uma freada brusca, vai de encontro a um negro imenso. Sorri pra ele e se arrepende imediatamente de ter sorrido. O motorista aumenta o volume do rádio. Engraçado. Aqui no Recife os ônibus tem rádio. E pode-se fumar. É claro que não quando está assim lotado.
Pelas janelas do coletivo, a brisa do mar refresca os passageiros. Por entre duas cabeças, Maria Cristina vê o mar. Avança mais dois passos. Diverte-se imaginando o conteúdo do envelope, fechado ainda, em sua bolsa. Mas irrita-a um pouco a rapidez com que foi localizada. Irrita-a porque a leva de volta a um mundo que muito lhe custou abandonar. Uma coisa entristece: na verdade, reflete Maria Cristina, é muito fácil tentar uma vida nova quando se tem pra onde voltar.
Claro que pode voltar. Certamente, na carta, ele estaria pedindo. Ou ordenando. Voltar. Não. Não vai sequer responder ao pai. Duvida que ele venha, mas virá, não, certamente virá. Ficará horrorizado com o apartamento de subsolo, com a falta do carro, com a falta de amigos que ele chamaria "do seu nível". Ficará também horrorizado com suas roupas. Com licença. Maria Cristina desce em frente ao escritório. Até aquele emprego era falso. Bom. Deve ter sido pelo escritório que papai me localizou. Engraçado. É quase impossível livrar-se do dinheiro. Ainda que, nestes seis meses, tenha aprendido a viver sem ele, sem o maldito do dinheiro. E havia o Pedro. Certamente o namorado brigaria com ela, se soubesse quem ela era. Pedro... Deliciosamente simples, um sujeito puro, sincero. Diabos. Será que papai telefonaria?
Telefonou.
Ao meio dia.
Não papai, não recebi nenhuma carta e acho terrível que você tenha me localizado. É vendi. Vendi o carro sim. Pra pagar o depósito do aluguel... Não, é pequeno, muito confortável, tem redes e fiz algumas almofadas, não... Eu não quero que você mande nada, não, eu já disse...Olhe, vou desligar.
Desligou.
Talvez o velho estivesse certo. Meu Deus, meio dia e doze eu tenho que almoçar com Pedro. Á lembrança do caranguejo, que há quinze minutos faria vir água à boca, enjoa Maria Cristina. Droga. O pai amargara-lhe o dia.
Devia contar a Pedro? Sim, por que não contar?
Pedro tinha no rosto uma sombra desconhecida. O que é que está havendo, Tininha? Papai odiaria Pedro. Papai odiaria vê-la chamada de "Tininha". Nada. Não está havendo nada. Meu pai telefonou.
Pronto. Estava dito.
Pai? Você não me disse que não tinha família.
Era mentira. Tinha família e rica. Pois é. Era rica. Rica mesmo. Papai tem fazendas, fábricas, casas de campo, verão na Europa, curso superior nos EUA, como é que ele achava que ela, sem dinheiro e sem família, teria conseguido estudar e ter um emprego como aquele que a mantinha agora? Como, hein?
Rica. Rica de sair em coluna social. Rica de ganhar prêmio na exposição de cachorros. Rica de comprar o que bem quisesse, viver onde bem quisesse, mas estava cansada de tanto dinheiro e resolvera vir pro Recife, é tinha fugido mesmo, não, sem mesada, mas o velho tinha meios, claro, sabia que ele acabaria localizan...
Então... Isso... É como...uma brincadeira, Tininha, uma brincadeira, quando você cansar, sobe de volta pro seu mundo: ser pobre, lutar, aprender a cozinhar... foi tudo uma brincadeira para você! Eu agora compreendo, este mundo que você diz amar, os nossos passeios, os jangadeiros, eu, tudo...uma brincadeira? As ideias libertárias, as reuniões do partido... Tudo mentira, piada, Tininha. Você é do time dos tubarões da ditadura. Era até capaz de rir, se os homens baixassem no nosso aparelho* e levassem você com os companheiros... Bastaria dizer o nome do Papai...
Não, Pedro, não é nada disso. Eu realmente queria levar uma vida simples... Mas Papai é que faz parecer assim ...
Tá. Pedro também não entende.
Saiu. Indignado. Traído. E nem mesmo pagou os caranguejos. Não vai haver mais jangada, eu não sou mais do mundo dele, não sou simples, não posso ser mulher de pescador. Maria Cristina odeia o ônibus lotado que a leva de volta ao trabalho. Odeia o trabalho, odeia o apartamento, o calor, as roupas feias, baratas.
Maria Cristina caminha a procura de um posto telefônico ainda aberto. A brisa do mar lhe dá enjoos. Onze e meia. Ele deve estar no clube. Está mesmo. Papai, acho que você tem razão. Não. Se você quer mesmo mandar alguém pra se livrar de tudo aqui, eu posso pegar o primeiro voo. Você estará em Nova Iorque quando? Então nos vemos lá. Não. Você já pagou o depósito**. Está comigo sim. Amanhã? Tá. Eu marco o primeiro voo que houver. Até a vista, então.
Bel, 1978 junho 19
*aparelho: local de encontro e residência dos miltantes que lutavam contra a ditadura no Brasil
** depósito compulsório: No tempo da ditadura militar brasileira só era possível sair do país fazendo um depósito em dinheiro, uma quantia bastante alta, só acessível aos ricos.
Comentarios