Os Olhos de Beatriz
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 24 de set.
- 21 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
Do Livro Todas as Mulheres São Bruxas

Beatriz tinha um estranho poder em seus olhos azuis. Filha de portugueses, morena, portadora de um astigmatismo que a obrigava a usar uns óculos enormes, quase ninguém percebia. Mas ela, ainda muito criança, logo percebeu. Um dia, seu irmão mais velho estava a chateá-la e ela, instintivamente, tirou os óculos e fitou-o diretamente nos olhos.
O menino saiu correndo, apavorado.
Muitas vezes, durante a infância, ela usou esse recurso para afastar os chatos de sua vida. Mas só quando adolescente confessou a um namoradinho, por quem estava perdidamente apaixonada, esse seu poder, e ele pediu a ela que, então, o demonstrasse. Pela primeira vez, então, ela soube o que os seus olhos faziam com os outros. O garoto, ainda meio assustado, contou a ela:
- Bia, quando você olha desse jeito, eu consigo apenas ver um enorme espaço branco com duas bolas azuis. É uma coisa impressionante, é como se toda a realidade sumisse, tudo fica resumido aos seus olhos!
O susto dele, porém, fora grande e, a despeito da rapidez com que passam as paixões juvenis, ele resolveu cair fora daquele namoro. Sabe Deus o que significaria uma mulher com aqueles olhos mágicos!
Beatriz gostava sinceramente dele, confiara nele e não lhe passou desapercebido o motivo daquele repentino afastamento. Era como se o mundo tivesse acabado, tal a dor que esse rompimento causou ao seu puro coração de adolescente. Assim, resolveu que jamais revelaria seus estranhos segredos a mais nenhum homem por quem viesse a se apaixonar. Sim, porque havia outros segredos. Além do estranho poder de seus olhos, ela era dotada também da visão.
Não tinha controle sobre esta, porém. Mas podia, em certas ocasiões, adivinhar o futuro e via, com clareza, acontecimentos que se concretizariam logo depois. Por exemplo, um dia, na escola, uma amiguinha estava ansiosa, pois precisava tirar uma nota alta, 7,5 no mínimo, numa prova de inglês, ou ficaria sem dúvida em regime de recuperação, o que a impediria de ir para as sonhadas praias nas férias. Quando revelou sua angústia à Beatriz, esta viu claramente o sisudo professor a escrever no alto do prova da amiga: 8. E disse a ela:
- Não se preocupe. Você vai tirar 8.
E realmente assim foi.
Também foi assim naquela trágica noite em que seu pai, próspero comerciante local, estava na cidade vizinha para buscar um importante carregamento de mercadorias. Ela viu claramente, enquanto saboreava o caldo verde do jantar, o caminhão que trazia a carga para a loja perder a direção e deslizar por uma encosta, desmanchando-se entre pesadas pedras pelo caminho. Viu o corpo do pai, que estava ao lado do chofer, ser cuspido para fora do veículo e viu seus olhos, cheios de pavor, no instante em que sua cabeça rompia-se contra uma dura e pontiaguda pedra.
Manhã seguinte veio a notícia: o velho Luís estava morto.
Começou uma fase diferente na vida, então. Sua mãe, que sempre trabalhara também na loja, tomou a frente dos negócios. Mas não foi fácil. Os fornecedores não estavam acostumados a negociar com uma mulher e frequentemente tentavam ludibriá-la. Beatriz, que só tinha irmãos homens, se viu de repente obrigada a administrar as tarefas cotidianas da casa, que tinha duas empregadas, porque todo o tempo de sua mãe era dedicado aos negócios do comércio.
Vivia sempre cansada, tinha que dar um duro danado para fazer suas tarefas escolares, além das domésticas, e aprendeu na marra a disciplinar-se para poder melhor administrar o tempo. Ah, o tempo! Nessa época, passou como um pé de vento, super depressa e, quando ela se deu conta, já era adulta.
Tinha sonhos, queria cursar uma faculdade, mas, no pequeno município onde nascera e crescera, então ainda não existiam cursos superiores. Ela estudava, como quase todas as moças de classe média e com bom poder aquisitivo, no estabelecimento das freiras católicas. Uma semana antes da festa da formatura do Curso Normal, a madre superiora a chamou em seu gabinete e foi direto ao assunto:
- Agora que você é uma professora e vai dedicar sua vida à nobre tarefa de educar as gerações futuras, quero que me prometa esquecer todas essa história de premonições e outras artes do maligno.
Beatriz, que jamais revelara a nenhuma das freiras o seu dom, assustou-se:
- Que história de premonições, minha santa madre?
- Não se faça de sonsa – disse a superiora, com rispidez – Todas as suas colegas comentam que você já lhes revelou alguma coisa, mesmo que sem importância, sobre o futuro delas.
- Mas foi sem querer – respondeu rápida a moça, sendo, desta vez, sincera, pois às vezes deixava mesmo escapar pela boca um desses pensamentos.
- Minha filha – respondeu a madre - a capacidade de imaginar o futuro, a leitura de cartas e outras práticas similares são fortemente condenadas pela verdadeira fé cristã. São coisas do mal, artes da feitiçaria. Você tem uma grande missão na vida, todos nós temos, e seu único guia e sua única certeza devem ser o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
- Nunca disse que fosse diferente – respondeu secamente a jovem, sentindo já vontade de tirar os óculos e fazer, com aquela mulher-urubu, o mesmo que fazia com os chatos – A senhora me conhece há tantos anos, não há nada de que possa me acusar, eu tenho frequentado regularmente a Igreja e sido uma boa filha, cumpridora de minhas obrigações.
- Eu sei, minha filha, eu sei. Mas temo que essa inclinação para a premonição, que é objeto de mexericos aqui na escola, acabe dominando você. Quero apenas aconselhá-la a, quando se sentir tomada por esses pensamentos, lutar contra eles, sabendo que são inspirações demoníacas e não divinas. Lute, use a força da oração, peça sempre a Deus que a inspire e guie e afaste esse mal de sua alma.
Beatriz disse que sim e saiu de lá achando que a freira, embora bem intencionada, era uma tremenda duma careta. Afinal, quase sempre, a visão lhe indicava o melhor caminho a seguir, embora ela tivesse consciência de que não podia domar aquele estranho dom e, muitas vezes, quando precisaria que ele se manifestasse, nada acontecesse.
Quando sua mãe, dois anos depois da formatura de Beatriz, casou-se novamente com o gerente local do banco do Brasil, ela resolveu abandonar as aulas que ministrava na Escola Pública e se aventurar pelo mundo, já que agora a mãe não precisaria tanto assim dela.
Foi para São Paulo. Ficaria hospedada na casa de uns parentes, no bairro de Santo Amaro e, logo que conseguisse um trabalho, se mudaria para uma pensão e trataria de se preparar para o ingresso na faculdade.
A vida na cidade grande, no entanto, não era como ela pensava que fosse.
Embora tivesse um bom currículo, para uma jovem professora iniciante, não conseguia uma colocação. Nas primeiras semanas, gastou a sola do sapato e muito dinheiro, andando de ônibus pela cidade à procura de uma escola que a quisesse em seu quadro docente. Acabou conseguindo apenas algumas indicações para dar aulas particulares, mas também perdia muito tempo na locomoção até as casas dos alunos e gastava muito em condução e logo percebeu que jamais, se continuasse daquela maneira, conseguiria ganhar o suficiente para ir morar sozinha. Assim, comprou os jornais de domingo e candidatou-se a um emprego de secretaria. Os parentes que a tinham acolhido eram simpáticos e gentis, mas logo começou a sentir que era um peso naquela família. A velha história de “onde comem dez, comem onze” não era verdade, ela percebeu. Não pelo menos naquela casa. Mas teve sorte e, em duas semanas, estava empregada como secretária de um departamento de marketing numa grande empresa multinacional. Logo fez amizades e conseguiu uma vaga num apartamento que ficava bem perto da empresa e que era dividido por três moças universitárias. Mudou-se.
Anos mais tarde, quando já era velha e morava na montanha, podia lembrar-se daquela fase de sua vida como sendo a mais negra. Trabalhava oito horas por dia, à noite ia para a faculdade, chegava tarde, levantava cedo, se alimentava de qualquer jeito e seus fins de semana eram dedicados aos estudos e aos cuidados com a casa, na parte que lhe cabia da divisão de tarefas combinada com as moças que moravam no mesmo apartamento. Raramente conseguia uma folga para poder pegar um ônibus e visitar a mãe em sua cidade natal. Mesmo quando conseguia essas visitas não lhe davam nenhum prazer ou alegria porque a mãe só sabia se lamentar pela ausência dela, falando sempre sobre o absurdo que era morar em São Paulo, trabalhar e estudar, se matando com tantas atividades, “olha como estava magra e esverdeada, seu lugar é aqui, dando aulas e, por fim, fazendo um bom casamento...” Beatriz não dava ouvidos e tampouco queria discutir com a mãe. Mas não tinha a menor intenção de virar uma professorinha do interior. Já vislumbrara excelentes oportunidades profissionais para quando terminasse seu curso, embora percebesse claramente que esse caminho seria muito mais fácil se ela usasse calças em vez de saias. No entanto, naqueles anos 1970, já existiam mulheres executivas nas multinacionais instaladas em São Paulo e Beatriz tinha por objetivo se tornar mais uma delas. Por isso se matava de estudar e de trabalhar e nem percebeu que seus estranhos poderes a estavam abandonando. Certo dia resolveu tirar os óculos e encarar de frente um homem que a molestara no ônibus, mas ele apenas riu daquela moça a olhá-lo com tanta firmeza, ao invés de ficar apavorado, como sempre acontecera com outras pessoas. Também não conseguia mais ter visões e premonições. O que estaria errado? – pensava ela.
Com o tempo, envolvida por seus próprios planos profissionais, acabou se esquecendo de tudo isso. Estava dando certo. No último ano da faculdade ela foi promovida e passou a secretariar todo o departamento. Quando se formou, logo conseguiu o cargo de gerente de marketing e, em cinco anos, era a diretora. Vivia numa roda vida, viajando pelo país inteiro, montada em aviões e pouco parava no lindo apartamento que comprara apenas para si. Teve alguns namorados, mas nenhum deles dizia qualquer coisa ao seu coração. Eram apenas boas companhias para cama e mesa. Estava há dez anos em São Paulo, falava fluentemente três línguas e ganhava um salário de fazer inveja a muito marmanjo.
Sentia, no entanto, quando se via sozinha entre as paredes do seu belo apartamento, um vazio no peito, uma dor na alma. Conseguira o que queria. E agora?
Certa noite, voltando do trabalho, parada num congestionamento de trânsito, prestou atenção no rádio que tocava um sucesso de Raul Seixas. Os versos de Paulo Coelho soaram para ela como uma revelação:
“Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês. Eu devia agradecer ao Senhor por ter tido sucesso na vida, eu devia estar feliz porque consegui comprar um corcel 73... Eu devia estar feliz por ter conseguido tudo o que eu quis, mas confesso, abestalhado, que eu estou decepcionado, porque foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto e daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes para conquistar e não posso ficar aí parado...Mas que sujeito chato sou eu que não acha nada engraçado, praia, carro, jornal, tobogã, eu acho tudo isso um saco...É você olhar no espelho saber que é humano, ridículo, limitado e só usa 10% de sua cabeça animal e você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial e está contribuindo com a sua parte para o nosso belo quadro social. Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar, porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais, o cume calmo do meu olho que vê assenta a sombra sonora de um disco voador.”
Beatriz sentiu os versos doerem como um soco no peito. Era exatamente assim que se sentia. A noite estava escura e ela olhou para o céu. As muitas luzes da cidade impediam a clara visão das estrelas, mas ela viu um estranho triângulo, formado por pequenas estrelinhas que emitiam uma luz que, naquele momento e daquele ângulo, brilhavam mais forte que o resto. Por entre o triângulo, de repente, passou o que pareceu ser um cometa, uma estrela cadente. Beatriz sentiu frio, embora fosse verão e pensou que deveria ouvir com mais cuidado os discos de Raul Seixas.
Nunca prestava atenção aos cantores populares. As pessoas com quem convivera nos últimos anos de sucesso achavam a música brasileira de mau gosto e só ouviam jazz, ou rock. Tinha também uma certa má vontade para com os cantores e compositores da MPB ou do rock brasileiro que usavam trajes hippies e cabelos compridos. Jamais fora contestadora, ela queria conquistar o mundo como ele era e tinha, afinal, conseguido, mesmo que, nos seus tempos de faculdade, muitos de seus colegas não se aproximassem dela por julgarem-na careta e de direita. Escapou do congestionamento, entrou num Shopping, foi a uma loja e comprou todos os discos do Raul. Passou o resto da noite, até muito tarde, ouvindo as canções. Era como se pelas letras destas, ela despertasse. Fitou longamente o apartamento e a sua solidão. A pasta, onde trouxera um relatório que apresentaria no dia seguinte e pensava revisar, descansava no sofá sem ter sidor aberta. E Beatriz pensou no absurdo da vida que levava. Os amigos, mesmo os que ela julgaria mais chegados, certamente a abandonariam se ela perdesse o cargo na multinacional, a posição. Os namorados eram apenas bons companheiros. O apartamento, super bem decorado com as últimas tendências da moda, era frio e impessoal. Só a voz e as palavras do cantor pareciam ter despertado nela sentimentos há muito, muito, adormecidos.
No dia seguinte, no escritório, chamou a secretária:
- Débora, eu já ouvi você falar entusiasmada sobre esses artistas da MPB. Você me faria uma gentileza?
- Claro, D. Bia.
- Você poderia ir comigo a um shopping na hora do almoço e me indicar os melhores discos para eu comprar?
A secretária se sentiu orgulhosa, ia sair com a chefe e orientá-la numa compra? Era o máximo!
Assim, daquele dia em diante, Beatriz passava todo o seu tempo livre, em casa, ouvindo as músicas brasileiras de Caetano, Gil, João, Chico, Gal, Elis, Ivan Lins, Bethânia e outros. Estava absolutamente encantada com a poesia que encontrava nas letras das músicas e nas mensagens que elas transmitiam. Em breve, sabia de cor muitos trechos.
No trânsito, lembrava Caetano: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes, motos e fuskas avançam o sinal vermelho e perdem os verdes, somos uns boçais.”
Olhava os prédios da grande cidade e lembrava Chico: “Amou daquela vez como se fosse a última, beijou sua mulher como se fosse a única... e cada filho seu como se fosse o único e atravessou a rua com seu passo tímido, subiu a construção como se fosse máquina, ergueu no patamar quatro paredes sólidas, tijolo com tijolo num desenho mágico ...e tropeçou no céu como se ouvisse música e flutuou no ar como se fosse um bêbado... morreu na contramão atrapalhando o tráfego...Amou daquela vez como se fosse máquina,
beijou sua mulher como se fosse lógico, subiu a construção como se fosse sólido, ergueu no patamar quatro paredes mágicas, tijolo com tijolo num desenho lógico....e flutuou no ar como se fosse um príncipe e se acabou no chão como um pacote bêbado, morreu na contramão atrapalhando o público”.
Ouvia e ouvia seus novos discos e compreendia, pela magia das letras, que passara anos e anos dormindo, que nada vira ou entendera do que se passava à sua volta, em seu país, em sua cidade (sim, porque São Paulo era agora a sua cidade!). Percebeu o sentido do desprezo que lera, tantas vezes, nos olhos de seus colegas da faculdade. “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir, por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague”. Percebeu que passara pelos anos difíceis para todo o seu povo, levando uma vida fácil, alienada da angústia que vivia no ar, da opressão da liberdade, do silêncio à força, da tristeza que morava nos corações puros, que ansiavam por um mundo melhor.
“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”, gritava Elis Regina em seus ouvidos.
Beatriz compreendeu toda a solidão que impusera a si mesma, todos esses anos, na perseguição de seu objetivo egoísta: o sucesso. E, agora que o obtivera, com quem compartilhá-lo?
Compreendeu que sua vida teria que mudar ou morreria, no mínimo, de úlcera no estômago ou, pior, de enfarte.
Compreendeu que, por toda aquela década, enquanto ela perseguia o sucesso, artistas, compositores, jornalistas e todos os seres criativos que viviam ao seu lado lutavam com as palavras, tentando driblar a mão de ferro da censura do regime militar, que sofriam na carne e na alma as prisões injustas, o calar dos clamores...e sentiu-se, além de traidora, solitária.
“Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada”, eram os versos de Ivan Lins e Victor Martins, na voz, de novo, de Elis.
“Nos dias de hoje é bom que se proteja, ofereça a face pra quem quer que seja... Não ande nos bares, esqueça os amigos, não pare nas praças, não corra perigo, não fale do medo que temos da vida, não ponha o dedo na nossa ferida. Nos dias de hoje não lhes dê motivo porque na verdade eu lhe quero vivo... Já está escrito, já está previsto, por todas as videntes, pelas cartomantes, está tudo nas cartas, em todas as estrelas, no jogo dos búzios e nas profecias... Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada.”
Seu coração ansiava pelo rei de copas, por um sentido maior na vida, que não fosse a correria profissional, o acúmulo de bens, os dólares escondidos para protegê-la da inflação que, em todos os meses, comia os salários dos pobres e acrescentava algum valor à poupança dos remediados.
Sim, foram as músicas que abriram seus olhos e seu coração para a crueza da vida que levava. Vivera esses anos como se fosse imortal, como se a vida não fosse um mistério, como se não houvesse perguntas sem respostas.
De repente, sentiu que a moderna decoração do apartamento, os caros tapetes e quadros, todos os sinais de seu sucesso, a sufocavam. Saiu para a sacada, no décimo primeiro andar, e olhou o céu estrelado. O cintilar das luzes das estrelas, o perfume adocicado que vinha lá debaixo, do jardim do sofisticado condomínio, a brisa da noite e a luz da Lua crescente, trouxeram de volta todas as dúvidas, dúvidas que ela esquecera pois fizera questão de, por tantos anos, cercar-se de certezas. Certezas materiais, fugidias, compreendia agora. Por isso, aquele vazio interior. Beatriz decidiu que ia mudar. Não sabia como, de que maneira, mas sua vida teria que ser outra, mais verdadeira, mais natural, mais profunda.
Sentiu-se subitamente suja e saiu correndo para o chuveiro. Jogou as roupas para longe e meteu-se debaixo do jato quente da ducha. Depois, vestindo apenas um roupão leve, voltou para o terraço e ficou lá, até que a Lua se escondesse atrás de um grande prédio, sempre ouvindo suas músicas.
Antes de deitar – tinha uma reunião importante noutro estado e precisava pegar o avião muito cedo – foi passar seus caros cremes defronte ao espelho.
Sem óculos, fitou intensamente o próprio rosto no espelho e quando olhou diretamente para os seus olhos refletidos, então, finalmente, viu o que tantos já tinham visto: aquele espaço branco, com duas grandes esferas azuis, dominando todo o seu campo visual. A visão durou alguns segundos e ela sacudiu a cabeça, como a espantá-la. Então colocou novamente os óculos e tudo voltou ao normal.
Dia seguinte, deixou-se de novo envolver pelas muitas solicitações de seu cargo. Mas à noite, no avião, quando sobrevoava a cidade de São Paulo, pensou que seus perdidos poderes de premonição estavam lhe fazendo falta. Não que tivessem tido, antes, alguma utilidade verdadeiramente prática mas, pensava, naqueles tempos, eram aqueles estranhos poderes que a faziam viver uma sensação de estar ligada à Terra, à vida, de uma maneira forte, com uma profundidade que lhe faltava agora e que, de algum jeito, a poesia das letras da música brasileira tinha trazido de volta. Então, de repente, era como se as luzes da cidade, lá embaixo, tivessem se apagado e ela viu, claramente como num dia de sol, uma pequena aldeia, no alto de uma serra e entendeu que o seu caminho estava ali delineado. Lembrou-se de um pequeno município, limítrofe à cidade onde nascera, que ficava no alto das montanhas e estava, nos últimos anos, se tornando uma cidade turística: Serra Azul. E, decidiu, com o coração repleto de uma nova alegria, que se mudaria para lá.
Ninguém entendeu nada. O presidente da empresa pensou que a perdera para um concorrente. Os amigos censuravam: como, uma mulher que consegue, a despeito de seu sexo, um cargo como esse, abandona tudo de repente?
Beatriz vendeu tudo o que tinha: o apartamento, os móveis, os tapetes, os quadros, as louças. Mandou transferir uma montanha de dinheiro para o pacato município de Serra Azul e, numa manhã ensolarada, partiu para lá, dirigindo o seu próprio automóvel.
Nunca, talvez não apenas nos últimos anos, mas em toda a sua vida, sentira-se tão feliz quanto estava agora. Percebia que, afinal, nesta década passada em São Paulo perseguira (e alcançara!) um objetivo que não era realmente o seu; compreendia que fizera uma grande confusão entre o seu desejo de liberdade e a escravidão do trabalho que proporcionava uma vida confortável do ponto de vista material; por fim entendia que o sucesso, como o tinha alcançado, pertencia ao mundo masculino, a uma maneira masculina de ver o mundo, como uma conquista, como dominação de um ser sobre o outro. Era, acreditava agora Beatriz, a visão masculina do poder.
Para ela não servia. Porque hoje ela podia entender que o que queria da vida não era o poder mas, sim, a harmonia. Colocou no toca fitas do carro Gilberto Gil:
“Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria, que o mundo masculino tudo me daria do que eu quisesse ter. Que nada, minha porção mulher que até se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é a que me faz viver. Quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera...”
Nos primeiros dias em Serra Azul, hospedada num excelente hotel para turistas, tratou de conhecer toda a cidade. Por fim acabou comprando uma pequena casa de madeira, no alto de uma montanha, no centro de um grande terreno que, curiosamente, tinha sido todo calçado e só possuía pequenas faixas de grama entre aquele mar de cimento. Mandou quebrar todo o cimento e chamou um jardineiro. A terra foi revolvida e preparada para receber as mudas que ela mesma fez questão de ir comprar, na única loja de plantas da cidade. O jardineiro ficou intrigado com aquela madame, toda bem arrumada e de unhas brilhantes, que o ajudava a plantar as mudas, discutindo com ele a melhor posição desta ou daquela.
O jardim passou a ocupar grande parte do tempo de Beatriz. Foi um lento aprendizado. Com paciência ela foi descobrindo o regime de água e luz adequado para cada espécime. Em São Paulo, adquiriu novas mudas e sementes e também muitos livros sobre jardinagem. Seu coração batia forte de pura alegria quando uma planta respondia aos seus cuidados.
Ocupava-se e também ganhava algum dinheiro dando aulas particulares aos jovens da cidade. Breve era conhecida como “a professora” da montanha, que sempre conseguia, entre outras coisas, fazer entrar nas cabeças das crianças e dos jovens os mais complicados conceitos da língua, da matemática e até da filosofia. Em cinco anos era uma figura popular na cidade e se reunia, com algumas famílias locais, para preparar deliciosos jantares regados a vinho quente, que ela temperava com ervas especiais, de seu próprio canteiro. Gastava muito pouco para viver assim, com simplicidade. Foi enchendo a casa de novidades: veio o aparelho de CD, o computador, que ela logo dominou e se conectou à Internet. Os habitantes locais pensavam que ela era rica e os eventuais, que subiam a serra para a temporada de Inverno, costumavam visitar o seu deslumbrante jardim, como mais uma atração da pequena cidade.
Foram as ervas, naqueles anos, que a levaram para a cozinha. Logo aprendeu a dominar o segredo dos aromas e dos temperos da culinária. Depois, a preparar infusões que amenizavam de resfriados a dores nas costas.
Nunca mais sentiu solidão. Frequentemente sonhava estar em lugares encantados, sempre cheios de flores, e nesses lugares encontrava os desafetos do passado, uma esquecida colega de escola ou faculdade ou mesmo do trabalho e, nesses sonhos, não havia mágoa, tornava-se amiga de todos os que, um dia, a haviam desagradado séria ou bobamente.
Também nunca mais tirou os óculos com o objetivo de afastar quem quer que fosse e nem a abandonaram os presságios, as premonições. Quando acontecia, ela, com muito jeito, procurava alertar a pessoa em questão sobre o que antevira no futuro dela, mas sem jamais revelar que possuía o dom da visão.
Ficou conhecida também pelos seus sábios conselhos. Alguns homens tentaram se aproximar dela, com intenções sexuais ou mesmo amorosas, mas ela, com elegância, repudiava a todos.
Até que um dia, dez anos passados naquela cidade calma, conheceu Eduardo. Ele estava lá fazendo turismo e fora, acompanhado por uma namorada, conhecer o famoso jardim da professora. Quando o avistou com o grupo que acompanhava a guia turística, pela janela da casa, onde estava sentada defronte ao computador fazendo uma pesquisa na Internet, não pode mais desviar os olhos dele. Alguma coisa naquele homem, já grisalho, a atraiu com uma força que jamais sentira. De repente, ele, como que alertado pelos olhos dela, a enxergou, através da janela. Seus olhos se encontraram e ele estremeceu. Beatriz, quase sem perceber, tirou os óculos e então leu, no rosto dele, o mesmo temor que lia em todos os que presenciavam o estranho efeito de seu olhar. Ele recuou um passo, tropeçou e, em seguida, riu, comentando alguma coisa com a moça que estava ao seu lado. Ainda olhou mais uma vez na direção de Beatriz, antes de se afastar. Ela o viu, falando com a guia que veio até a janela e disse:
- Dona Bia, um dos turistas insiste em falar com a dona do jardim.
- Estou indo – respondeu e saiu para o jardim.
- Minha senhora – disse ele quando estendeu a mão para ela – Estou absolutamente encantado com a beleza de seu jardim. Gostaria que me concedesse a permissão para filmá-lo.
- O senhor é repórter?
- Não senhora. Sou Eduardo Carvalho, cineasta.
- E o senhor quer colocar o meu jardim num filme?
Na verdade, ele não queria, queria sim era conhecer aquela mulher que tinha um estranho poder nos olhos e era capaz de fazer as plantas resplandecerem.
- Permita-lhe apresentar a minha companheira, Cíntia.
- Muito prazer. O senhor não me respondeu...
- Oh, sim, é claro. No meu próximo filme há uma cena passada num jardim e...
- O senhor certamente – interrompeu Beatriz – há de encontrar outros jardins tão ou mais belos do que o meu...
- Não me lembro dessa cena no roteiro – disse, mal humorada, Cíntia.
- A senhora não gostaria que eu o filmasse?
- Realmente não – respondeu Beatriz. – Já foi muito difícil a Secretaria de Turismo de Serra Azul conseguir me convencer a exibi-lo aos turistas e só consenti porque eles prometeram trazer grupos pequenos e com muitas recomendações para que nenhuma planta fosse tocada ou danificada. Lamento, sr. Eduardo, mas o senhor certamente achará outro jardim para filmar. Passe bem. Boa tarde, Cíntia e bom passeio.
E virou as costas.
Mas todo o seu corpo vibrava e um calor estranho a invadia na proximidade daquele homem.
À noite sonhou que estava num estranho local, de vegetação rasa, um campo aberto, dentro de um círculo formado por enormes e pontiagudas pedras. Era noite e ela olhou para o céu, emoldurado pelas pedras e viu um estranho triângulo de estrelas brilhantes ao lado da lua crescente. Eduardo estava lá também, usando um longo traje muito branco e tinha os cabelos compridos, como o dos hippies que ela tanto odiara na juventude. Apoiava-se num cajado de madeira e parecia ter uns cem anos de idade. No sonho, ela disse a ele:
- Mestre, onde estou?
Mas ele virou-lhe as costas e se afastou. De repente, estava ela, num dia de sol, numa floresta de árvores enormes e de grossos troncos, como ela jamais vira. Saiu caminhando por entre as árvores cujas copas se juntavam e chegavam a esconder o céu. Foi sair numa clareira onde cresciam lindas orquídeas e samambaias, ladeando um pequeno córrego que parecia nascer por entre uma enorme pedra coberta de musgo. Um cavalo entrou na clareira, pelo lado oposto de onde ela se encontrava e ela viu que a cabeça e o pescoço do cavalo rapidamente se transformavam no dorso de um homem que tinha o rosto de Eduardo, como ela conhecera e não mais como um velho. Ele é um centauro! – exclamou para si mesma e percebeu que suas pernas falhavam, caiu, olhou para as pernas e estas tinham se transformado em cauda de peixe. Eu sou uma sereia! – exclamou novamente. Então seus olhos encontraram os dele e todo o seu campo visual se resumiu a um imenso espaço branco com duas enormes esferas marrons. Acordou, sentada em sua cama e com o corpo empapado de suor. Em sua cabeça, Caetano cantava: “Eu sou o sol. Ela é a Lua. Quando eu chego em casa, ela já foi pra rua”.
Na manhã seguinte estava na cozinha quando a campainha tocou. Era ele. Desta vez, sozinho.
- Desculpe vir incomodá-la tão cedo. Posso entrar? Quero falar com você.
Beatriz sorriu e o levou para cozinha, onde lhe serviu um pouco do café forte que preparava todas as manhãs, com deliciosas torradas feitas do pão caseiro que fizera no dia anterior. Ele perguntara sobre a infusão que ela tinha no fogo, numa panela enorme.
- É um chá de cebolinhas. Borifo no jardim, quando esfria, para manter as folhas das plantas livre dos fungos que as tornam amarelas.
- Você vive aqui sozinha?
- Eu, as plantas e Deus – respondeu ela rindo.
- Mas você foi uma mulher urbana, uma executiva de sucesso, não foi?
Ela riu de novo:
- Como é que você sabe disso?
- Achei que a conhecia. E realmente você foi matéria de algumas revistas femininas e masculinas também.
- Mas isso faz tanto tempo! Para mim, parece uma vida atrás...
- Vi tudo na Internet do hotel onde estou hospedado, ontem à noite. Seu nome completo está no folheto turístico da cidade e eu pesquisei...
- Nunca tive a curiosidade de me procurar na Internet. Por que fez isso?
- Por causa dos seus olhos. Fiquei completamente estarrecido com os seus olhos e, para ser sincero, também com o seu jardim.
A manhã inteira passou e eles nem perceberam. Passearam pelo jardim, ela lhe contando a história de algumas plantas, conversando os dois sobre as suas vidas, seus gostos, seus prazeres, como se fossem velhos amigos. Ela ficou sabendo que ele tinha ganho dois kikitos em Gramado, por dois filmes diferentes e que estava para lançar o que acabara de realizar. Era um cineasta importante e ficou de trazer, quando voltasse no próximo fim de semana, os filmes, em vídeo, para que ela os assistisse.
Ao meio dia, foram interrompidos pelo celular dele que tocou. Era Cíntia, cansada de esperar por ele.
No fim de semana seguinte ele voltou. E foi assim na absoluta maioria dos fins de semana que se seguiram por mais de uma década. Tornaram-se muito mais que amantes, eram companheiros e, todos os dias se falavam por telefone e por e-mail. No começo, Eduardo queria filhos, mas Beatriz ria-se dele:
- Desde muito pequena eu decidi que jamais seria mãe. E acho que nem mesmo sou capaz de gerar porque nunca tomei pílulas e nunca engravidei.
- E o que diz o seu médico?
- Que médico? Nunca precisei de médico nenhum!
- Mas, Bia, você é mulher. Pode ter um câncer de útero, de ovário ou de mama!
- Lá vem a imagem da Mulher Maldita, outra vez – riu ela – Só porque somos mulheres vocês acham que ficaremos doentes! E você, alguma vez fez exame de próstata?
Foi a vez de ele cair na risada. Não, não fizera.
Porque eram felizes e saudáveis, viveram assim por muitos anos. E quando, dez anos depois de se terem encontrado em Serra Azul, ele foi convidado por um grande estúdio italiano para dirigir lá filmes para a TV, ela o acompanhou sem pestanejar, deixando para trás o famoso jardim. Doou o terreno, é verdade, para a prefeitura, mas, na sua ausência, o jardim nunca mais foi o mesmo e hoje funciona lá uma escola pública.
Beatriz e Eduardo, na Europa, acabaram se aproximando do culto Wicca e, de vez em quando, vão à Glastonbury, no grande círculo de pedras, vibrar pela paz no mundo. Dizem que suas almas sempre farão parte da Grande Irmandade Branca e desmentem o mito de que não se alcança a felicidade na Terra.
Comentários