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As Visões de Helena

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 24 de set.
  • 10 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

(do livro Todas as Mulheres São Bruxas 3)


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Para Dra. June Melles Megre,

Médica psiquiatra e amiga querida


Helena era apenas uma criança quando começou a chorar, aparentemente sem motivo. Estava alegre, brincando, ou com a cara enfiada no celular, e, de repente, caía num choro sentido, uma enorme tristeza a atingia, visível em sua expressão, quase sentida também por sua mãe e por quem estivesse ao seu lado.

 

Em vão perguntavam a ela porque chorava. Ela não dizia. Apenas chorava.

 

Levaram-na ao Psiquiatra da Infância. Na anamnese, nada parecia indicar uma tendência à depressão. Era uma criança muito inteligente, ia bem na escola, tinha amiguinhos e era até bastante resiliente às pequenas (que, para as crianças, são grandes) dificuldades que porventura encontrasse em seu caminho.

 

Até que aconteceu a tragédia da Valle em Brumadinho. Mais de duzentas e cinquenta pessoas soterradas por um tsunami de terra carregada de resíduos de minério, que deslocou-se, numa velocidade impensável, sobre a pequena cidade, arrastando tudo o que encontrava pela frente.

 

Foi por volta das 16h00 que a mídia começou a noticiar o rompimento da barragem da Mina do Feijão: falavam em 4 mortos, todos funcionários da Mineradora, e cerca de 200 desaparecidos. Foi nessa hora que os rejeitos alcançaram o Rio Paraopeba, contaminando as águas de toda a bacia local. Não era apenas uma tragédia humana, mas também ambiental, social e econômica. Tragedia completa. Doze milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério, viajando à velocidade média de 80 quilômetros por hora.

 

Era feriado municipal em São Paulo naquele dia 25 de janeiro de 2019, aniversário da metrópole. Por isso os pais de Helena estavam em casa. Atraídos pela notícia, plantaram-se defronte a TV, mas mesmo assim ouviram claramente a filha, que estava em seu quarto, brincando de “casinha” com suas Barbies e a maquete de uma residência, daquelas abertas por uma parede lateral inexistente.

 

Helena chorava compulsivamente. Desta vez, conseguiu responder à eterna pergunta de seus pais e professores e amigos: Por que?

Entre soluços, ela disse:

-- Porque eles não podem respirar. Eles estão sendo enterrados, mas ainda estão vivos, vão morrer sem ar e sem caixões, assim como os peixes do rio estão morrendo agora, em meio às águas contaminadas, todos na superfície do rio, com a boquinha aberta, tentando respirar...

 

Como ela poderia saber?– perguntaram-se, atônitos, seus pais. Não estava diante do notebook ou o celular ou de alguma TV... Estava mergulhada em seu mundo de brincadeira e fantasia...

 

Pedro, seu pai, perguntou então:

-- Lelê querida, é por isso que você chora às vezes? É por que sabe que alguma grande tragédia aconteceu, ainda que muito longe de você?

 

Abraçada à Mirian, sua mãe, Helena disse:

-- Eu sonho, papai. Eu sonho sem estar dormindo e os sonhos, às vezes, são tão horríveis que me fazem chorar...

 

Pedro respondeu:

-- Não são sonhos, Helena. São visões. De alguma maneira, a sua mente capta fatos terríveis que realmente estão acontecendo naquele momento e, por isso, você chora.

 

-- Pedro! – exclamou Mirian, cheia de indignação – Assim você vai assustar a menina!

 

-- A verdade não pode assustar, Mirian. Nossa filha tem alguma capacidade telepática, alguma coisa que a faz perceber as tragédias que estão ocorrendo. Por isso ela chora. É melhor sabermos, nós três, o que acontece de fato em vez de estarmos mergulhados na escuridão de seu pranto.

 

-- Você sabia antes, das outras vezes em que chorou – perguntou com delicadeza Mirian à filha – por que estava chorando? Sabia o que estava acontecendo? Por que nunca nos contou?

 

Subitamente, Helena parou de soluçar e, limpando as lágrimas com as costas de suas mãozinhas, respondeu:

 

-- Eu sabia que sonhava sem estar dormindo. E fiquei com medo! Vocês já me levaram a um médico de loucos. Se eu dissesse que sonhava assim, o que vocês iam fazer? O que vão fazer comigo? Me internar numa casa de pessoas loucas?

 

-- Não, meu amor! Claro que não! Nós amamos você mais do que tudo no mundo. Vamos ficar sempre juntos. Vamos descobrir como parar esses sonhos...

 

No entanto – sabiam Pedro e Mirian – quem iria acreditar naquilo?

 

Voltaram ao Psiquiatra, desta vez sem a filha, e contaram a ele que a menina soubera, telepaticamente, da tragédia de Brumadinho.

 

O psiquiatra limitou-se a afirmar que, embora, desde a década de 1930, muitos tenham tentado provar cientificamente a existência de qualquer coisa semelhante à transmissão de pensamentos, a chamada telepatia, nenhuma evidência científica fôra de fato alcançada. Disse ainda que a menina, que estava em seu quarto, poderia ter ouvido alguma coisa das notícias que eles estavam vendo na TV do quarto deles.

 

Não convencidos pelos argumentos do médico, ao chegar em casa, foram conversar com a filha. Perguntaram a ela se conseguia lembrar-se de outros sonhos, já que várias vezes tinha chorado, aparentemente sem motivo. Perceberam que a menina ainda temia falar sobre isso e tentaram tranquilizá-la dizendo que, em algumas pessoas, havia mesmo aquela coisa de perceber fatos que ocorriam longe delas, que aquilo poderia ser normal, mas que queriam ajudá-la a livrar-se dos tais sonhos ou, pelo menos, a não sofrer com eles.

 

Pesquisando na Internet encontraram a comunidade Wicca, a das bruxas modernas. Mas perceberam que sua filha acabaria sendo considerada, por essa comunidade, como uma bruxa e que eles acabariam por influencia-la, ou mesmo coopta-la e ela era ainda uma criança, sem capacidade para discernir se seria isso mesmo o que gostaria para sua vida.

 

Pesquisaram e pesquisaram. Sociedades esotéricas. Espíritas. Religiões afrodescendentes. Nada os satisfazia.

 

Por fim, acabaram ouvindo falar na Bruxa mais famosa da cidade, que atendia políticos, milionários, a elite da elite, num casarão muito chique, num bairro nobre: era Circe.

 

Tiveram que esperar duas semanas por uma vaga na recheada agenda de Circe. E, como todos que visitavam a feiticeira pela primeira vez, ficaram muito impressionados com a imponência do lugar, com o atendimento de alta classe e com a beleza de seus jardins.

 

-- Também... – dissera Mirian – pelo que ela cobra por uma simples consulta...

 

-- Não importa! – retrucou Pedro – O bem-estar da nossa filha vale muito mais que o dinheiro!

 

Circe, diante do que lhe foi exposto pelos pais de Helena, nem precisaria consultar as cartas para saber que resposta dar a eles. Mas o fez, assim mesmo, para que estes não pusessem em dúvida o que ela lhes diria. Também traçou o mapa astral da menina, no computador e, afinal, deu o seu parecer:

 

-- Sua filha nasceu sob a proteção de um dos mais importantes arcanos do Tarô, a carta de n.2, a Papisa. É a carta associada às atividades esotéricas, aos estudos de Ocultismo e, principalmente, ao desenvolvimento da Intuição. Representa uma mulher muito sábia, uma sacerdotisa antiga, possuidora do conhecimento e da intuição para saber agir, pela vida, da forma mais adequada, representa ainda a serenidade, o estudo e o Mistério. O que quer dizer que sua filha deve sempre prestar atenção à sua intuição para poder compreender lhe os sinais. Não haverá, na vida de Helena, conselheira mais sábia do que sua voz interior.

 

-- Por outro lado – continuou Circe – Helena nasceu sob o signo de Touro, com ascendente em Aquário. São dois signos de energia fixa, ou seja, precisam de raízes. Enquanto Touro é conservador, Aquário requer novidades. Alcançado o equilíbrio entre essas tendências díspares, o resultado será uma personalidade fiel, leal, cheia de afeto e aberta à Liberdade, conseguindo sempre acumular sabedoria através das mudanças e novas formas de pensamento. Como os senhores podem ver a astrologia está de acordo com o que as cartas revelam sobre sua filha.

 

-- E, para completar – continuou Circe ante o olhar atônito e desconfiado de Pedro e Miriam – Helena nasceu numa data que a numerologia reduz ao número 7. O 7 é o número que carrega grande magia. Ele representa a espiritualidade, é o número da perfeição, que é o símbolo da totalidade do Universo, em transformação. O 7 confere introspecção, ocultismo, pesquisa profunda da espiritualidade e, ainda, o poder da reflexão, que leva à sabedoria.

 

-- Sim – disse Mirian com impaciência – mas o que tudo isso tem a ver com essa espécie de telepatia que faz com que Helena sonhe acordada com tragédias e outros fatos que a fazem chorar desesperadamente?

 

-- É uma carga muito pesada para uma menina de 8 anos apenas – respondeu Circe – ter nascido sob esses três signos que a levam à introspecção e ao esoterismo. Nenhum ser humano cuja alma está na Terra pela primeira vez nasce com toda essa carga combinada: A Papisa, Touro com Aquário e o número 7. Preciso conhece-la pessoalmente para afirmar com segurança o que a minha experiência, e também a minha intuição, estão a me dizer. Sua filha, muito provavelmente, trouxe de outras vidas o seu Poder da Visão. Um poder que as sacerdotisas da Antiguidade e da Baixa Idade Média tinham alcançado, cultivado e transmitido às suas descendentes. Da mesma maneira que ela, de repente, se põe a chorar, não existem também momentos em que ela parece extremamente alegre e feliz?

 

-- Sim – respondeu Pedro – Embora esses momentos não chamem tanto a nossa atenção quanto os momentos de profunda tristeza. Afinal, ela tem motivos para mostrar-se uma criança alegre: é sadia, inteligente, curiosa e tem uma vida confortável. Inclusive comentamos essas mudanças de humor com o psiquiatra infantil que aventou a possibilidade de Helena sofrer daquele transtorno bipolar: uma hora depressão, outra hora, euforia.

 

-- Mas ele acabou não levando adiante esse diagnóstico – respondeu Circe.

 

-- Sim – disse Mirian. Foi apenas uma possibilidade.

 

-- O que ocorre de fato – continuou Circe – é que, da mesma maneira que ela enxerga tragédias que ocorrem em ambientes muito exteriores à ela, também enxerga alegrias e fatos que podem significar a evolução da sabedoria, ou mesmo da ciência, entre os povos da Terra. Sua filha é uma alma muito velha. Uma alma sábia e que está no mundo para abençoar e auxiliar às almas menos evoluídas em sua trajetória de crescimento e aperfeiçoamento.

 

-- Tudo isso é muito interessante e intrigante – disse Pedro – mas o que nós queremos é que a nossa filha seja uma criança como as outras, que cresça sadia e tenha oportunidades na vida, oportunidades concretas de boa formação, de realização pessoal e profissional. Enfim, uma criança normal, do século XXI, e não uma sacerdotisa do passado longínquo.

 

-- Ela é o que é – respondeu Circe com firmeza – e o senhores não têm o poder de mudar isso. É claro que ela pode ter essa vida de oportunidades e de realização pessoal e profissional, como almejam para ela. Mas o que está na alma dela, o que veio de outras vidas, a sabedoria e a visão que essa alma trouxe consigo, jamais poderão ser desfeitas, são parte dela, estão dentro dela.

 

Mirian mexeu-se, desconfortavelmente, na poltrona onde estava sentada diante da mesa da maga:

 

-- Quer dizer então que a nossa filha está condenada a viver todo esse sofrimento só porque trouxe de outras vidas essa tal visão?

 

-- De maneira alguma – respondeu Circe – Ela precisa apenas ter consciência desse poder e saber dominá-lo. Não é tão difícil quanto parece. Ela precisa de um esporte que goste de praticar, leituras e filmes que falem da história da humanidade, principalmente da Idade Média e de sua Magia, logo poderá ler também, por exemplo, as Brumas de Avalon e encontrará ali o enigma da Visão das sacerdotisas. Precisará frequentar grupos de meditação e relaxamento e em breve aprenderá a dominar seu dom. São todas essas atividades reunidas que acabarão por ensiná-la a fazer isso.

 

-- E a senhora pode nos indicar alguns desses locais onde ela poderá praticar meditação, relaxamento? Alguns livros, próprios para a idade dela, algum caminho?

 

-- Minha secretária lhes dará várias opções. Talvez, se ela gostar, possa aprender também um pouco de jardinagem, ainda que para colocar em prática em vasos que poderá cultivar em apartamento. Moram em apartamento, não é?

 

Pedro e Mirian balançaram a cabeça em afirmativa.

 

Circe continuou:

-- O contato direto com outras espécies, plantas e animais de estimação, só farão bem a ela. Tem muito a aprender com eles. Levem-na aos parques da cidade, para que tenha ainda mais contato com a natureza, com árvores principalmente. Ou passem a frequentar regularmente algum clube de campo. Temos, inclusive, aqui mesmo, nessa casa, um curso de jardinagem para crianças e jovens. Aqui eles certamente aprendem a amar a Natureza. Mas não precisa ser o nosso. Existem outros. A escolha é dos senhores.

 

Mirian e Pedro saíram da casa de Circe ainda bastante incrédulos. Mas puseram em prática tudo o que ela dissera. Matricularam, inclusive, Helena no curso de jardinagem de Circe e viram, espantados, como o interesse da menina pelas plantinhas despertou e ela encheu a casa de vasos, cuidando deles com carinho e dedicação. Foi ficando mais calma. Frequentava a meditação e o relaxamento, ginástica olímpica, abraçava as árvores do clube de campo, quando passavam lá os fins de semana. Dizia que tanto as árvores quanto as plantas que cultivava conversavam com ela sobre os mistérios da natureza.

 

Quando, em 2021, o Talibã tomou o poder no Afeganistão, a TV da sala de jantar estava ligada enquanto faziam uma de suas raras possíveis refeições juntos. Helena disse, entre uma garfada e outra:

-- Sonhei com isso! Vi mulheres com medo desses homens feios aí, percebi que, para eles, elas não passavam de escravas burras. Algumas queriam fugir, mas não sabiam como fazer.

 

-- Você sonhou com isso acordada ou dormindo? – perguntou o pai.

 

-- Ah... foi acordada! – ela respondeu.

 

-- E não teve medo desses homens? – perguntou a mãe.

 

-- Eles estão muito longe do Brasil – disse a menina – Mas fiquei muito sentida por causa das mulheres deles.

 

-- E não chorou? – perguntou o pai.

 

-- Não. Agora os meus sonhos já não me fazem chorar, mesmo que eu fique triste. Cresci, né?

 

Mirian e Pedro se entreolharam e sorriram:

 

-- Sim – disse a mãe – Você já é uma mocinha agora! Vive até aconselhando seus amiguinhos nas redes sociais e aqui em casa!

 

Seriam eternamente gratos à Circe por ter proporcionado à sua filhinha a paz de espírito da qual ela agora desfrutava. Não sabiam bem como isso acontecera. As plantas? As árvores? A meditação? Os novos conhecimentos? Os livros? Os filmes? A ginástica? Ou tudo isso junto? Não importava muito, afinal, saber. O que sabiam é que Helena, senhora agora dos seus dons, seguiria pela vida e certamente seria uma vida útil e cheia de sabedoria.

 

30 de agosto de 2021.


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