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Bulímica (O Corpo de Emília)

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 24 de set.
  • 17 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

(do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 2)




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De que adiantaria dizer que vinte anos passam depressa demais, que a vida é um caminho rápido, muito rápido, para a morte? Elvira lembrava-se de que seu pai dissera coisa semelhante tantas vezes, quando ela era jovem, e ela simplesmente não ouvira. Agora sabia. E queria dizer à filha que aproveitasse a sua juventude, que não desperdiçasse aqueles anos dourados em tristezas inúteis e dúvidas inférteis. Mas como fazer isso? Como transmitir à menina essa dura certeza da morte, do lento e cruel envelhecimento, uma certeza que a faria apreciar melhor o grande milagre de ser jovem, de estar cheia de vida, pronta a enfrentar desafios?


Elvira voltara há pouco do consultório do cirurgião plástico, onde, mais uma vez, enfrentara as doloridas picadas das agulhas que lhe injetaram no rosto as mágicas substâncias que faziam desparecer as marcas do tempo, mas que não resolviam, definitivamente não, as marcas da alma. Tinha o rosto dolorido e inchado e saiu a passear pelo seu jardim, uma das poucas alegrias que lhe restavam na vida.


Ah, a vida! Não que tivesse sido ruim, mas, até aqui, fora rápida demais e agora - a grande dor - pregara-lhe essa peça cruel, fazendo-lhe morrer o marido, companheiro desses vinte anos de amor e alegrias, pai de sua única filha, aquela menina sofrida, angustiada, que adoecera tão inexplicavelmente na procura de um corpo ideal, um ideal imposto apenas pela mídia, que estava a transformar as naturalmente rechonchudas brasileiras em tábuas de passar roupa. Psiquiatras, psicólogos, médicos endocrinolgistas e até pais de santo, a todos já procurara, levando de arrastão consigo aquela única filha, em busca de solução para os problemas da menina. Anorexia e bulimia era o diagnóstico. Emília, a sua filha, que recebera esse nome em homenagem a Monteiro Lobato, era uma escrava do corpo. Magra, olhava-se no espelho e julgava-se gorda. Recusava-se a comer qualquer coisa além das saladas verdes sem tempero e estava, ela própria, ficando verde também. Nos últimos meses dera para levantar da cama, em plena madrugada, e atacar a geladeira. Comia compulsivamente o que encontrasse: doces, sobras do jantar, frutas... depois corria para o banheiro, metia o dedo na garganta e vomitava tudo. E, como se isso não bastasse, Emília sempre encontrava algum médico de periferia que lhe receitava aquelas malditas fórmulas para emagrecer que tiravam o apetite e o humor. A menina ficava horrivelmente irritada, brigava com tudo e com todos, dirigia como uma louca pelo congestionado trânsito da cidade, colocando em risco não só a sua própria vida como a de outros que nada tinham a ver com isso.


Pensando nessas coisas, Elvira sentia-se impotente para ajudar a filha.


Lembrava-se de quando ela era uma menininha pequena (e parecia que fora ontem!) com aquela pele de pêssego, brilhante, um serzinho frágil de cabelos sedosos, castanhos e que, em muitas noites, vinha, como tantas crianças mimadas, pedir para deitar-se na cama dos pais, assustada com um sonho ou com uma tempestade. Agora tinha a pele esverdeada, os olhos avermelhados, descoloria os cabelos castanhos, estava magra e julgava-se gorda, estava feia, acabada, parecendo uma morta viva... ah, que tristeza!  Tantos planos bonitos fizera para ela! Naqueles tempos, enquanto Emília criança, ainda podia ajudar a filha. Havia o ursinho, Péricles era o nome dele. Emília não desgrudava dele. Tinha sido um presente de Natal, da tia Anita, irmã de Elvira, quando Emília completara dois anos de idade. A menina adorara o ursinho e se apegara a ele como só as crianças podem fazer. Péricles era o seu confidente e companheiro de todas as horas. Elvira ri ao lembrar-se de que quando a filha fora pela primeira vez à escola, aos cinco anos, levara o ursinho com ela. Naquele tempo, Elvira acabara descobrindo uma estranha e maravilhosa técnica. Sempre que não conseguia transmitir alguma coisa à filha, conversava com o ursinho. Da primeira vez, acontecera quase por acaso. Fazer a menina escovar os dentes era sempre uma experiência traumática. Ela detestava, cuspia, esperneava e até chorava. Uma noite, depois de outra sessão de desespero com a escova e a pasta, Elvira entrara no quarto da filha e olhara para o ursinho. “Ai, Péricles – dissera ela então em pensamento – você bem podia convencer a sua dona da necessidade de escovar os dentes!”


Na manhã seguinte, depois do café, quando entrara no banheiro para apressar a filha, pois já estava mais que na hora de ir para o colégio, a encontrara escovando os dentes.

- Ué! Que milagre é esse? – perguntara espantada.

A menina explicou que sonhara que seus dentes estavam pretos e que caíam todos. Contou ainda que acordara assustada e, agarrando-se ao ursinho, esse lhe explicara que, se ela teimasse em não escovar os dentinhos, o sonho ia virar realidade e ela ficaria horrorosa, sem dentes na boca e que todos os seus amiguinhos ririam dela então.


Desse dia em diante, Elvira acostumara-se a dizer a Péricles tudo o que não conseguia dizer diretamente à filha. E funcionava!


Ah, pensa ela agora, que bom se, nesse momento, tivesse o ursinho para pedir-lhe que convencesse a jovem Emília de que a vida era muito mais que um corpo magro, que lhe dissesse que estava a desperdiçar sua juventude em drogas e regimes “milagrosos”, em busca de um corpo que não era o seu... Mas Péricles fora cruelmente jogado fora quando Emilia completara treze anos e se julgava, então, já uma moça, para quem não era adequado conservar um velho e sujo ursinho de pelúcia!


Pensando no drama da filha, Elvira caminha pelo jardim. Ali, sente-se bem, como se as plantas, de quem tanto cuidava e com tanto carinho, tivessem o poder de revigorar-lhe a alma. Pára sob a árvore enorme, um  Chapéu de Sol, lembrando-se de que o plantara, apenas uma mudinha de meio metro de altura, no ano em que Emília nascera. Vinte anos atrás. A árvore era agora enorme agora e espalhava seus ramos, esplendorosa, desenhando sua sombra sobre a grama verde. Forçou um pouco a memória, tentando lembrar-se de exatamente quando o plantara. Sabia que fora no ano de 1984, o ano em que o banco a transferira para a agência da Av. Paulista. Logo nos primeiros dias de trabalho na sua nova agência, saíra para o almoço e, passando em frente ao prédio da TV Gazeta, vira que, no saguão do prédio, havia uma distribuição de mudas de árvores, era uma promoção de um grupo ecológico. Pegara aquele vasinho com o pequeno Chapéu de Sol que, agora, se transformara naquela árvore enorme. Mas, de repente lembrara-se com clareza, ela ainda estava grávida. Isso mesmo. Grávida de uns cinco ou seis meses. 1984 fora um ano de transformações em sua vida. O banco a promovera a gerente geral de uma de suas agências mais importantes, ela conhecera Luiz e, apenas dois meses depois, ele viera viver com ela e já esperavam o filho que, afinal, seria Emília...


No ano anterior seus pais haviam morrido naquele trágico acidente de automóvel e ela ficara morando sozinha naquela casa, onde vivia até hoje, desde que nascera. A princípio, Luiz não quisera vir morar no casarão com ela. Achava que a família dela podia chiar, afinal a casa não era uma herança só de Elvira, era também dos irmãos. Mas estes haviam concordado em vender sua parte para que ela e Luiz pudessem viver ali sem constrangimentos. Ali nascera e crescera Emília. Junto com o Chapéu de Sol, reflete agora Elvira. Sempre gostara daquela árvore e achava mesmo que ela dera nova vida ao antigo jardim e viera somar beleza a algumas plantas que estavam ali desde antes da própria Elvira nascer e a muitas outras que ela mesma plantava, pois desde menina descobrira que mexer na terra e cultivar plantas tinha o estranho poder de acalmá-la e deixá-la com uma sensação alegre de dever cumprido. Mas nunca associara o crescimento do Chapéu de Sol ao crescimento de sua filha. Lembrava-se agora de que, quando Emília tinha 4 ou 5 anos, Luiz pendurara um balanço em um dos galhos daquela árvore que então já era forte o suficiente para embalar a menina. Hoje estava altíssima, passava em muito a altura da casa e alguns pássaros tinham feito ali seus ninhos. Esquisito: os Chapéus-de-Sol não eram naturalmente árvores muito altas e sim frondosas. Mas aquele pé tinha crescido estranhamente muito mais do que o que seria de se esperar e surpreendia aos visitantes da casa, pelo menos àqueles que conheciam e se interessavam por árvores e plantas. Tornara-se o rei do jardim, pensa Elvira, acariciando-lhe o tronco. Por mais que não quisesse, seus pensamentos estão voltados para o problema da filha. Nem mesmo a sua querida árvore parece hoje transmitir-lhe a tranquilidade pela qual ela tanto anseia. O último ano tinha sido um ano de perdas. Aposentara-se compulsoriamente. Por ela, teria continuado a trabalhar, mas o banco não permitia isso. Ofereceram-lhe um assento na fundação que o banco mantinha e era essa, atualmente, a sua única ocupação fora as coisas domésticas e o jardim. Logo depois, morrera-lhe o marido, de um enfarte fulminante e absolutamente inesperado. E sua filha, além do quadro de anorexia, que já durava quatro longos anos, agora dera também para ser bulímica.


Elvira dá um longo suspiro e senta-se no banco de jardim que ela e Luiz haviam comprado especialmente para colocá-lo sob a árvore. O que mais pode fazer, pensa, para tirar Emilia daquela louca obsessão com a magreza? Os remédios que ela insiste em tomar, escondido da mãe, (como se esta não pudesse adivinhar, pelo estado emocional da menina, que ela os estava novamente tomando) a faziam ainda mais agressiva, nervosa e infeliz. Para Emília, nada estava bom. A casa, que Elvira tanto amava, nada significava para ela, que vivia dizendo que deviam vendê-la e comprar um apartamento nos Jardins ou na Giovanni Gronchi. Como se Elvira fosse trocar aquele chão onde sempre vivera por um horroroso apartamento de salas grandes e quartos pequenos, um pedaço de laje, pendurado no ar...


A faculdade, que tanto esforço custara a Emília, agora conquistada, era apenas um lugar chatésimo, cheio de professores burros e incompetentes e alunos mais ainda. Aos poucos, Emília afastava os amigos, de tão exigente e mal humorada que vivia. Namorados não duravam mais que uma semana e a menina se recusava a voltar às consultas médicas que talvez pudessem ajudá-la a superar aquele quadro mental que, na verdade, era como um círculo vicioso. Ela comprava ainda, compulsivamente, caras roupas e tênis da moda, para logo esquecê-los no guarda roupa com o argumento de que a deixavam ainda mais gorda. Gorda? Ela era magérrima e, a cada dia, parecia mais doente. Elvira culpava a mídia, por incentivar a magreza das jovens, exibindo e exaltando modelos e atrizes que ostentavam seus ossos sob as peles perfeitas, como se fossem troféus e que fizera sua filha escravizar-se a uma imagem de corpo ideal, escravizar-se a ponto de perder completamente a noção de sua própria imagem corporal.


Mas o que mais poderia ela fazer? Até os médicos pareciam cansados e frustrados quando viam as duas, mãe e filha, aparecerem nos consultórios. Um dos psiquiatras que as atendera receitara um antidepressivo, na esperança de que, atrás da anorexia, estivesse uma depressão endógena. Mas Emília tomara o remédio apenas por alguns dias, logo dizendo que era um absurdo tomar um medicamento que a fazia sentir-se bem quando, de fato, não tinha motivo nenhum para sentir-se bem, sendo gorda e feia e infeliz e, ainda por cima, órfã de pai. Ah, se Elvira ainda tivesse o Péricles, o ursinho, pediria a ele que convencesse Emília a tomar o antidepressivo em vez dessas bolinhas que médicos irresponsáveis e gananciosos receitavam às meninas, sem pensar nas consequências... Nesse instante, um vento bateu agitando ferozmente as folhas da árvore e as plantas do jardim. Elvira olhou para o céu e o balanço dos galhos do Chapéu de Sol parecia querer dizer-lhe algo. Sentiu todo o corpo a tremer como as folhas ao vento, as palmas de suas mãos subitamente inundaram-se de um suor frio e seu coração se pôs a bater descompassadamente. Levantou-se de súbito. Emília. Algo acontecera a sua filha, pensou ela em desespero. Tirou nervosamente o celular do bolso para chamar a menina, mas antes mesmo de terminar de teclar o número, uma calma a invadiu e ela pensou: Foi só um susto.

Ouviu a voz, nervosa, da filha, do outro lado da linha.

- O que aconteceu? – perguntou.

- Um idiota acaba de me dar uma fechada e levar metade do meu páralamas esquerdo. Agora está aqui brigando comigo, dizendo que não tem seguro e que eu tenho que pagar o prejuízo dele! – gritou Emília.

- Mas você está bem? Não se machucou?

- Claro que não, mãe. Sou boa motorista. Meti o pé no freio, virei a direção e, se não faço isso, esse bocó tinha levado toda a frente do meu carro!

Elvira pode escutar uma voz agressiva de homem e as buzinas, atrás dos gritos de Emília.

- Escute, Emília, diga a ele que você vai pagar.

- Como mãe? A culpa foi dele! É um incompetente, com um carro velho, logo se vê que é pobre mesmo!

- Não ofenda o homem, minha filha – gritou desta vez Elvira. – Faça uma caridade, já que ele é pobre. Dê seu cartão a ele, diga que vai pagar e venha para casa. Não fique brigando no meio do trânsito. Hoje em dia isso é perigoso. Você não sabe quem é ele.

Seguiram-se momentos de tensão. Elvira escutava a voz exaltada do homem, exigindo o pagamento imediatamente e ouvia Emília argumentar com ele aos gritos. Finalmente, a moça pegou o telefone:

- Dei um cheque pra ele, mãe. Mas ele só pegou depois de anotar a chapa do meu carro e de eu ameaçá-lo com a polícia. Qualquer guarda imbecil logo perceberia que a culpa foi dele e não minha. Esse cara é um bandido, um canalha!

- Deixa pra lá, minha filha. Você está em condições de dirigir ou quer que eu vá te buscar?

Mas ela não quis e vinte minutos depois estava guardando seu carro, bem estragado, na garagem da casa. Foi sentar-se ao lado da mãe, que ainda estava ali, conversando com o Chapéu de Sol.


Sim, porque decidira conversar com a árvore, para ver se conseguia um pouco de calma, depois do furacão interno que a invadira com o telefonema e, pensando bem, até mesmo antes dele.

Não que fosse alguma novidade esse negócio de conversar com as plantas. Elvira acreditava mesmo que o hábito de falar carinhosamente com suas plantas é que fazia o seu jardim sempre exuberante, embora também ela dedicasse todos os cuidados necessários a cada espécie, como adubá-las e podá-las nas épocas certas, fornecer a cada uma o que elas realmente precisavam, como o regime de regas correto, essas coisas todas que os livros de jardinagem e até os sites de jardineiros tanto recomendavam. Mas, independente dos cuidados, sabia que o fato de falar com elas e até mesmo de colocar música clássica nos alto-falantes que mandara instalar no jardim contribuía e muito para a saúde e beleza de suas plantas. Naquele momento, porém, preocupada com o acidente da filha, que já andava tão nervosa e insatisfeita, pela primeira vez ela se dirigiu ao Chapéu de Sol como se ele fosse um velho amigo ou o médico de confiança e colocou para ele todas as angústias que lhe oprimiam a alma pela situação de vida em que sua única filha se metera. Peito aberto, falou com a árvore em voz alta, como se falasse ao antigo ursinho de pelúcia, o Péricles, que fora tão cruelmente jogado no lixo, na fúria adolescente da menina, e que parecia realmente transmitir à Emília as inquietações de sua mãe.


Estranhamente o Chapéu de Sol parecia, enquanto Elvira falava, passar-lhe um pouco de paz e quietude. Assim, quando Elvira chegou, encontrou a mãe muito tranquila e narrou-lhe o acidente e a estupidez do motorista que batera em seu carro.


A moça estava nervosíssima, mas, aos poucos, sob a paz do jardim, sentada ao lado da mãe que a ouvia calmamente desta vez, ouvindo o farfalhar do vento nas folhas do Chapéu de Sol, seu tom de voz foi se normalizando e até seu rosto se descontraiu.

Na manhã seguinte, ao acordar e sair para o jardim, como fazia em todas as manhãs, Elvira viu, não sem surpresa, a filha sentada no banco sob a árvore, a ler um livro. Aproximou-se:

- Bom dia. Acordou cedo hoje, não?

- Pois é. Comecei a ler esse livro ontem à noite e não conseguia parar, adormeci em cima dele e, como só tenho aula às três horas hoje, resolvi vir terminá-lo aqui. É uma coisa esse livro, mãe! Você precisa ler.

 

Elvira estranhou a atitude da filha, ali, placidamente sentada sob a árvore a ler um livro, ela que normalmente não parava quieta um segundo, sempre agitada artificialmente pelas anfetaminas das fórmulas assassinas para emagrecer.

- Você não tomou as suas bolinhas hoje, Emília? – perguntou a mãe.

Emilia, surpreendentemente, em vez de responder com agressividade, como seria de se esperar, disse:

- Não vou tomar mais. Eu não estou emagrecendo nada com elas. Vou dobrar o meu tempo na academia, aí acho que emagreço.

Elvira pensou em dizer-lhe que ela não precisava emagrecer, ao contrário, precisa até engordar um pouco, mas calou-se pois sabia que não adiantava, que o problema da filha era mesmo uma séria distorção da própria imagem corporal e não havia argumento racional que pudesse resolver isso.


O dia estava lindo e Elvira pediu à empregada que servisse o café no jardim. Surpreendeu-se ao ver que a filha comia mais frutas do que habitualmente, mas não fez comentários. Foi para uma reunião na Fundação com a alma alimentada por um fiapo de esperança de que a filha pudesse, afinal, superar aqueles problemas.


Voltou no final da tarde, a empregada já fora, Emília ainda estava na aula e ela foi sentar-se novamente sob o Chapéu de Sol. Engraçado. Logo que se sentou, um pé de vento sacudiu as folhas, como se a árvore estivesse reagindo à sua presença. Elvira sorriu e acariciou-lhe o tronco. Depois, em pensamentos, pôs-se a conversar com a planta. Contou-lhe que havia aquele fiapo de esperança em seu coração e falou-lhe de como era grande e incondicional o amor materno que trazia no peito. Recordou tempos antigos, quando Emília era apenas uma meninazinha e chorava porque os meninos faziam pouco dela na escola, dizendo que todas as meninas eram burras e covardes e ela partia de socos e pontapés para cima deles, era sempre a parte castigada, pois a diretora a repreendia pelas atitudes pouco femininas e mandava ver em suspensões enquanto, para os meninos, dava apenas, no máximo, uma bronca. Elvira ri, contando à arvore a revolta da menina e como ela procurava driblar-lhe a tristeza preparando seus doces prediletos. Elvira sempre fora uma cozinheira de mão cheia e agora lamentava não ter para quem cozinhar, com a filha metida naquelas dietas malucas e com o marido ausente. Falou ainda, para sua árvore amiga, da culpa que sentia por ter, na infância da filha, tentado compensar as tristezas da menina com bolos e doces de chocolate, temendo que isso pudesse ter tido influência nesses distúrbios relacionados à alimentação que agora ela vivia. Mesmo quando a filha nada contava, ela adivinhava que tinha havido briga na escola. Os meninos, sabendo que Emília reagia, viviam provocando-a, divertiam-se com aquela garota que, ao invés de sair chorando ante as suas chacotas, partia pro tapa. Aliás, explica Elvira à árvore, ela sempre soubera tudo o que acontecia de errado com a filha. Mesmo quando esta era pouco mais que um neném, descobria se o choro era de fome, de dor de barriga ou de ouvido.


Fora sempre assim. Por que então, agora, não conseguia ela descobrir uma solução para a vida da filha, que estava se acabando com aqueles distúrbios alimentares? Falou e falou com a árvore e, quando se deu conta, estava anoitecendo. A noite veio quente e estrelada, com direito à lua cheia e à beleza da luz do luar. Elvira não queria sair dali. Num impulso, arrastou a mesa do jardim para debaixo da árvore e foi para dentro de casa, colocar o jantar no microondas e trazer os apetrechos necessários para montar ali mesmo uma bela mesa para esperar pela filha.


Emília chegou perto das oito da noite e surpreendeu-se com o requinte daquela mesa iluminada por velas montada no jardim.

- Nossa! Estamos comemorando alguma data que eu esqueci?

Não. Apenas uma noite linda e quente e era melhor jantar no jardim, explicou Elvira. Abriu uma garrafa de vinho branco e, surpreendentemente, viu a filha servir-se de uma taça. A refeição era de uma simplicidade franciscana: muita salada, sem tempero, carne magra assada, duas batatas cozidas. Elvira fazia dieta junto com a filha, mas esta quase nunca comia nada, a não ser folhas de salada verde. Naquela noite, viu a menina servir-se de tudo, até mesmo de uma fina fatia de batata, que cortara cuidadosamente.

- Hoje posso comer um pouco mais, já que dobrei a carga de exercícios na academia – disse Emília para a mãe, como se dissesse para si mesma.


Quando terminaram a refeição e Elvira tirava a mesa, surpreendeu-se novamente ao ver que a filha, ao invés de ir trancar-se no quarto com seu computador ou com a TV, deixara-se ficar no banco de jardim, sob a árvore, fumando com prazer um cigarro. Arrumou tudo e foi sentar-se ao lado da menina:

- Você vai para a balada hoje?

- Não. Já estou de saco cheio de sair à noite, ir aos mesmos lugares, ver as mesmas pessoas. Vou ficar um pouco aqui fora. Estou me sentindo bem aqui.


Algum milagre está acontecendo com ela!, pensou Elvira mas nada disse.


Ficaram bastante tempo ali, as duas, como velhas amigas, combinaram que dividiriam o carro da mãe no dia seguinte, para poder deixar o da filha na funilaria. Emília contou o caso de uma amiga da faculdade, que perdera, em uma semana, repentinamente, o pai e a mãe. O pai morrera de enfarte, como acontecera com o seu pai, enquanto atravessava a sala de jogos de seu clube e a mãe, surpreendida pela morte súbita do marido, resolvera passar uns dias no apartamento do Guarujá e lá, onde nem tinha trânsito, batera o carro e morrera ao cair com a nuca sobre o meio fio da calçada. A moça tinha a idade de Emília. Para a surpresa de Elvira, ao acabar de narrar o caso, a filha colocara afetuosamente o braço sobre o seu ombro, a puxara para si e dissera:

- Ainda bem que você não morreu junto com o papai, né, mãe?


Na manhã seguinte deixaram, logo cedo, o carro de Emília na oficina e Elvira novamente se surpreendeu ao ver a filha, de biquini, estender uma esteira no jardim e anunciar que ia tomar sol.

- Me olhei no espelho e resolvi que vou ficar melhor se me bronzear. Também marquei cabeleireiro para esta tarde, depois da escola, e vou pintar o cabelo.

- Mas ainda quase está sem raízes – disse a mãe.

- Não, você não entendeu. Pedi ao Jean que preparasse uma tinta da minha cor natural, castanho-claro. Cansei de ser loura. Além disso, todo mundo acha que as louras são burras.

Elvira lembrou-se dos meninos da infância de Emília, que a chamavam de burra.


À tarde, sozinha outra vez em casa, depois que a empregada se fora, Elvira foi sentar-se sob o Chapéu de Sol que, novamente, balançou as folhas ao vê-la chegar.

- Parece um milagre – disse ela à árvore. – Já é o segundo dia em que ela toma café da manhã comendo frutas, come alguma carne no almoço e hoje até comeu uma fatia de queijo. Agora, resolveu bronzear-se e voltar os cabelos à cor natural.

Um pé de vento estremeceu as folhas.

- Ah, meu Deus! Será que está passando? Será que ela vai se recuperar?


Todos os dias, cada vez mais animada, Elvira sentava-se sob o frondoso Chapéu de Sol para narrar-lhe os pequenos progressos de Emília. A menina estava comendo normalmente as refeições de dieta que ela preparava, tinha até aumentado um pouco de peso e nem se importara com isso, explicando aos outros e a si mesma que ganhara massa muscular porque dobrara a carga de atividade física. A mãe sabia que, em uma semana, isso não seria possível, a menina realmente engordara um pouco. Os cabelos, agora castanhos, de Emília haviam ganho novo brilho, o rosto estava corado pelo sol e certamente também pela alimentação saudável. Naquela tarde, em especial, oito dias depois de iniciadas as conversas com a árvore, Elvira estava eufórica. Descobrira que já havia cinco dias que a filha decidira tomar os tais antidepressivos que o psiquiatra receitava e que, há muito, estavam esquecidos na gaveta. Vira a moça tomar um remédio na hora do café da manhã e perguntara, já assustada:

- Você não acha que passa melhor sem essas bolinhas para emagrecer?

- Mãe, isso aqui não é bolinha, não. É aquele tal de antidepressivo que o Dr. Adriano me receitou.

- Ué, você tinha dito que não ia tomar.

- É, mas um professor meu, com quem conversei na cantina da faculdade, me disse que eu poderia estar sofrendo não de uma doença mental e sim de um simples distúrbio neuroquímico cerebral. Quando o médico me receitou isso, fiquei ofendida, achando que ela estava me tachando de louca, desequilibrada, lá sei eu. Mas depois entendi o que o professor me explicou. Sabe, mãe, eu acho mesmo que estava meio doente, com essa história do papai morrer assim, sem aviso... Agora estou até me achando bonita, com esse cabelo escuro e bronzeada...


Elvira, com aquela intuição que só as mães possuem, perguntara:

- Esse seu professor costuma frequentar a cantina da escola? – sabendo que os professores não têm normalmento o hábito de se misturar aos seus pupilos.

Emília rira.

- Acho que ele está interessado em mim... Vamos sair juntos sábado à noite, ele quer me levar ao teatro e me convidou para jantar...


Assim, quase sem perceber, Emília foi retornando ao que ela fora uns anos atrás: uma menina alegre, viva, inteligente. Quase sem perceber também tornara-se tão amiga da árvore quanto sua mãe. As duas, nos dias de sol, sempre tomavam o café da manhã sob a sombra do Chapéu de Sol e costumavam jantar ou almoçar no jardim. Era ali também que liam seus romances prediletos.


Dois anos depois, quando Emília, quase dez quilos mais gorda e sem sombra das enfermidades que haviam assombrado sua vida, anunciou que estava decorando um apartamento para onde se mudaria com o professor, Elvira sabia que não ficaria só no casarão. Além do Chapéu de Sol, agora seu eterno companheiro, havia aquele senhor, viúvo como ela, que conhecera na Fundação.


O que Elvira nunca soube e, de fato, não lhe interessava muito saber, era o que realmente curara sua filha: se os antidepressivos, se o amor ou se a árvore.


leia e veja a continuação: Chapéu de Sol.


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