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Selena, Nascida na Lua Cheia

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 23 de set.
  • 16 min de leitura

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

(do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3)




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Selena nascera em 1918 . Mal abrira seus olhinhos de bebê e percebeu, pelo ambiente que a cercava, que estava novamente na Terra. Eita! – pensou – talvez agora eu tenha uma segunda chance!

Podia lembrar-se ainda, enquanto sua consciência de vidas anteriores perdurasse, de que pisara feio na bola, recusando-se a ouvir seu Eu Interior, na vida que acabara de deixar. Paciência! Agora teria a sua segunda chance. Sabia, no entanto, que a lembrança de outras vidas iria, aos poucos, se apagando à medida que ela adquirisse a consciência plena dessa sua nova vida. Rezou: oh, deuses, não permitam que agora eu seja tão idiota e acredite apenas na racionalidade! Sei que não serei completamente feliz se não encontrar a minha outra metade, a masculina, que me complete e faça-me viver em plenitude!

 

A Terra, em 1918, vivia sobre o terror da Pandemia da Gripe Espanhola.  Em São Paulo, no bairro então operário da Mooca, onde ela nascera, assim como por toda a parte, viam-se carroças circulando, cobertas de cadáveres.

 

No crepúsculo de seu vigésimo dia de vida, sua mãe, Alzira, a amamentava ao peito e seu pai, Ernesto, observava. E ele pensava: logo essa bebezinha vai desmamar, começar a crescer e será uma boca a mais a alimentar. Caçula de outros 5 irmãos, Selena, para o maior desespero de seu desempregado pai, ainda tinha que ter nascido mulher... Ainda se saísse dali uma mulher bonita e atraente, talvez arrumasse logo um bom casamento.

 

Ernesto não queria sentir raiva pelo nascimento de mais uma filha, mas sentia. As meninas mais velhas trabalhavam como operárias na tecelagem do bairro. Os meninos já trabalhavam também, um catava sucata e a vendia nos depósitos. Outros dois, num bar. Todos mal haviam concluído a escola primária, gratuita, do município, o então chamado Grupo Escolar. Juntando os rendimentos de todos, a família, ao menos, podiam comprar comida. Barata, mas comida.

Antes, quando Ernesto era o encarregado da manutenção de uma das fábricas da região, uma metalúrgica, continuavam pobres, mas tinham dignidade e ele sonhara com um futuro melhor para os meninos, queria que se formassem, estudassem, progredissem. Essa maldita gripe, matando gente aos baldes, acabara com a dignidade, com os empregos, com a alegria de viver!

 

-- Maldita Gripe Espanhola! – desabafou em voz alta – Além do emprego, dos parentes e amigos que levou, o que mais ela vai nos tirar... A esperança?

 

Levantou-se e pegou um copo. Alzira disse, com a voz cansada:

-- Ernesto, vê se não bebe hoje! Faço um chá. A vizinha me deu uma erva muito boa...

 

-- Chá é coisa de mulher ou de maricas – respondeu ele, já bravo.

Nem bebeu ainda e já está agressivo – pensou ela. Estava começando a ter medo daquele homem que ela amara um dia e, quem sabe, talvez ainda amasse. A cachaça, muitas vezes, fazia com que ele perdesse a cabeça. Dia desses tinha batido cruelmente num dos filhos que o chamara de cachaceiro.

 

-- Dobre essa língua, seu moleque desaforado! – ele gritara então – Sou seu pai, um homem honrado e trabalhador. Foi com o meu suor que criei vocês, seus ingratos! – E partiu para cima do garoto, aos tapas e murros.

 

Mais tarde se arrependeu e, na cama, Alzira percebeu que ele, silenciosamente, chorava.

 

Naquele fim de tarde, quando ele começou a beber, Alzira teve um horrível pressentimento. Dois copos e ele, atirando o copo vazio contra a parede, levantou-se e foi em direção a ela e ao bebê, que dormia em seu colo, após a mamada:

 

-- Zizi, sua vagabunda! Será que mais esse filho é meu também? Ou você andou me traindo com aquele português da padaria que eu já vi olhando você com a cara mais dura do mundo, sem nem disfarçar a sua cobiça! Me dá essa menina aqui. Não quero mais uma no mundo para sofrer! – Tentava arrancar a filha dos braços dela; agora, ambas choravam – Vou jogá-la no poço!

 

-- Ernesto! – gritou Zizi – Você não é um assassino, homem de Deus.

Nesse momento o filho mais velho chegava do trabalho. Percebendo a situação, se interpôs entre a mãe, que escondia o bebê dentro de sua malha de lã e o pai. Abraçou-o com força e disse carinhosamente:

 

-- Papai, vamos tomar um trago lá no bar. Por conta da casa. O patrão desconta do meu ordenado depois. Vamos lá, nós dois, conversar um pouco, ver outras pessoas. O senhor não pode só ficar trancado nessa casa. O senhor não é disso. Ninguém aguenta isso!

A atitude de ternura e o abraço do filho conseguiram o milagre de estancar a fúria alcoólica de Ernesto. Saíram.

 

Zizi desabou na cadeira, tentando acalmar a bebê Selena. Ela acreditava, como a maioria dos adultos acreditam, que bebês não pensam, não sentem, não veem, não ouvem e são ainda desprovidos de consciência. Mas Selena, que ainda era, dentro de sua mente, as outras que fôra em outras vidas, matutava:

 

-- Droga! Parece que acabei nascendo no passado! E no meio da Gripe Espanhola. Essa não! E, pela cara da casa, nasci bem pobre. Mas no começo do século XX! Que horror! Sem celular, sem internet, computador... Tem luz elétrica pelo menos. Mas e o banho? Água fria na banheira fria? Estou frita! Nem ao menos TV...Será que rádio tem? Mas nessa pobreza, com um pai que prefere me ver morta! Ainda bem que a mãe parece amorosa. E os irmãos... pelo menos esse aí, que acalmou o pai bêbado, é. Menos mal. E se eles não me proporcionarem nenhum estudo? Vou viver na ignorância? Justo eu, com a minha inteligência privilegiada... Será que, quando me esquecer do que fui em outras vidas, me esquecerei também dos conhecimentos que obtive em todas as minhas outras existências? Ah... tomara que haja alguma ancestral da Circe por perto, ela poderia me ajudar... Mas, diachos, como vou lembrar disso quando, a consciência desse meu novo corpo apagar a memória que trago de outras vidas?

 

Alzira dera o nome de Selena à sua nova filha porque sabia que esse nome significava “deusa da Lua” e a menina nascera na Lua Cheia. Ernesto não quisera concordar, preferia então Celina. Imagine – dizia ele – vão zombar dela na vizinhança. Ninguém se chama Selena! Acabou, depois de muita discussão, cedendo à vontade de sua esposa.

 

Ora, os astrólogos explicam que a lua cheia é o momento em que o nosso satélite exerce sua maior influência sobre a Terra, sobre as grávidas, sobre as marés e sobre os loucos. Assim, aqueles nascem quando a lua é cheia, são seres dotados de alto magnetismo e isso se reflete em energia e amor. São pessoas amorosas, dedicadas aos outros e amam os animais e as plantas. Esse era o destino de Selena em sua nova vida. Encantar a todos!

 

A bebê Selena esforçava-se por lembrar-se de suas antigas vidas. Na última, fôra Maria Alcina, a executiva que negava-se a deixar que sua voz interior falasse mais alto do que sua racionalidade. Antes, uma sacerdotisa celta. Em ambas essas vidas morrera muito cedo. Na última, o coração cansado de ser ignorado por ela, negara-se a continuar funcionando. Como sacerdotisa celta fôra queimada viva como bruxa, em um momento qualquer da inquisição católica. Na Terra, tinham sido essas duas vidas. Mas a bebê podia lembrar-se de ter nascido em outro planeta, um planeta de muito verde e de alto respeito pela Natureza. Mas era só isso. Não sabia quem fôra nessa vida nesse outro planeta,  da qual vagamente se lembrava... Estranho – refletiu – talvez só seja possível, como ser da Terra, lembrar-se das vidas aqui.

 

Por sorte, três meses depois de seu nascimento, Ernesto conseguiu seu emprego de volta. A fábrica ressurgia das cinzas da pandemia e o recontratou. A família voltou a se estabilizar.

 

Aos 9 meses de idade, Selena já ameaçava andar e falar. Com um ano e meio, falava, andava, e todos comemoram o que era considerado uma precocidade positiva. Seus irmãos e sua mãe a enchiam de mimos e se sentiam muito atraídos por aquela menina tão encantadora. Os vizinhos traziam-lhe pequenos presentes: uma blusinha de tricô, feita pela avó de um deles, um bolo quentinho que acabara de sair do forno, bolinhos de chuva... Um dia, uma dessas vizinhas lhe trouxe um gatinho, cuja gata que ela tinha em casa, acabara de desmamar. Encantada, Selena disse:

-- Meu liroucati!

 

E o gatinho passou a chamar-se então Liroucati.

Meses depois um engenheiro inglês, que acabara de instalar-se no bairro, veio conhecer a família de seu amigo Ernesto. O inglês, William, viera ao Brasil, a convite da metalúrgica, para implementar novos procedimentos e técnicas na primitiva indústria. Ao ver todos chamarem de Liroucati o gatinho de Selena, exclamou:

 

-- Ôhh! O gato desse casa ser meu... meu... do meu país, digo.

 

-- Como assim, Mr. William, o gato é de seu país? – perguntou Ernesto.

 

-- Ele chamar Little Cat, que querer dizer “gato pequeno” em inglês.

 

Todos se espantaram. Como Selena descobrira esse estranho nome para seu gatinho?

 

A menina explicou:

-- Eu sei falar inglês!

 

Como, se ninguém por ali, sabia?

 

Ela continuou:

-- É que eu vivi, um dia, no futuro, depois do ano 2000. E, lá, aprendi a falar essa língua.

 

Seu irmão mais velho riu:

-- Que imaginação! Como pode ter vivido no futuro? O futuro não existe.

 

-- Eu vivi lá! – exclamou a menina, já brava – e pronto!

 

Todos riram, encantados com ela, mas sem conseguir explicar como ela poderia saber que Liroucati seria, de fato Little Cat.

 

O tempo passou. Selena cresceu e todos acabaram esquecendo a história do Liroucati que, inclusive, morreu precocemente, ainda pequeno, esmagado pelas rodas de uma carroça que passava na rua da casa deles.

 

O fascínio, porém, pela menininha não foi esquecido. Todos se encantavam com a sua vivacidade, inteligência e, principalmente, com sua fluência verbal. No dia em que completou 6 anos de idade, depois de apagar as velinhas do seu bolo de aniversário, Selena exclamou:

-- Agora que já sou grande, vocês devem me pôr na escola!

 

Gargalhada geral. Seu irmão disse:

-- Meninas não precisam ir à escola. Lá não ensinam a cozinhar, varrer, lavar e passar e a criar bebês.

 

Selena respondeu: -- Eu não sou uma menina. Sou um ser inteligente e não quero varrer e cozinhar e nem vou ter bebês. Eu quero ser uma cientista.

 

-- Cientista? – perguntou uma de suas irmãs – Você sabe o que é isso?

 

-- Sei – respondeu Selena com segurança – Cientista é aquela pessoa que estuda as leis da Natureza e do Céu.

 

Nova gargalhada.

 

Aos 7 anos, Selena foi, afinal, de tanto amolar toda a família com esse seu desejo, para o Grupo Escolar.

 

Aprendeu as primeiras letras com rapidez e logo se pôs a reclamar que, na sua casa, não havia livros. Ela queria livros!

 

Depois que a Gripe Espanhola desapareceu, tão misteriosamente quanto surgira, os paulistanos ganharam um novo ânimo. Em 1922, a Semana de Arte Moderna, sacudira a cidade. E o povo, mesmo as pessoas mais simples, foram contaminadas por aquela efervescência cultural que os jornais não se cansavam de criticar ou de elogiar, enfim, de debater. Nesse contexto surgiu na cidade a primeira versão de um “Clube do Livro” e a professora de Selena, Dona Anália, também vítima dos grandes encantos da menina, era membro desse clube. Assim, começou a trazer livros para Selena: Malba Tahan, Machado de Assis, José de Alencar. A professora, ainda, dava aulas particulares em casas bem mais ricas do que a de Selena. Maria Antônia Prada, matriarca de uma das mais tradicionais famílias paulistanas, ouviu atenta a história da aluna Selena, que queria ler, e disse à professora Anália, que poderia pegar emprestado qualquer volume da sua vasta biblioteca e leva-lo à menina.

 

Quando Selena leu “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, publicado em 4 de julho de 1865, endoidou. Percebeu que a vida escondia outros segredos, segredos que transcendiam mesmo o que ela poderia esperar da tão amada ciência. E a ciência veio com Júlio Verne e suas previsões fantásticas de um mundo que ainda não nascera. Foi em Júlio Verne que Selena pôde lembrar-se, mais claramente, de sua vida no futuro da Terra. Ela vivera nesse futuro e até além dele. Lembrou-se dos submarinos, das viagens espaciais e ainda dos computadores e celulares.

 

Então, exercendo seu enorme poder de sedução, começou a falar aos vizinhos, na escola, em sua própria casa, sobre o que o futuro reservava a aqueles que estavam vivendo o alvorecer da tecnologia, que se espraiaria pelo século XX.

 

No começo, todos achavam graça nas histórias da menina. Alguns diziam que ela seria uma escritora, quando adulta, já que gostava tanto de livros e tinha essa imaginação incrivelmente fértil.

Mas depois, dada a riqueza de detalhes e a convicção com as quais Selena narrava suas histórias, começaram a teme-la:

-- É uma bruxa! – diziam – É parceira do Diabo! É perigosa e maléfica, tem a chave da porta de outros mundos.

 

Foi então que, Alzira, preocupada com a segurança de Selena, que já levara ovos podres e coisas piores, atiradas por transeuntes, resolveu leva-la a uma cartomante, no acampamento dos ciganos, à beira do Rio Pinheiros, do outro lado da cidade.

 

Assim que Selena entrou na tenda da cartomante, exclamou:

-- A senhora é a Circe! Eu me lembro!

 

A cigana aproximou-se acariciou o rosto da garota e disse:

-- Não, querida, nós nunca nos encontramos.

 

-- Encontramos, sim! – exclamou Selena – No futuro!

 

-- Não, eu não sou Circe – respondeu a cartomante – Eu me chamo Samara. Mas já ouvi falar em você. Você é a menina da Mooca que diz conhecer o futuro.

 

-- Isso mesmo, dona Samara – interrompeu Alzira – E os vizinhos já estão começando a chamá-la de bruxa, feiticeira, alguns a hostilizam. Não sei o que fazer. Por isso, vim consultá-la.

 

Samara dispôs as cartas sobre a sua mesa redonda, de maneira muito diversa – lembrava-se vagamente Selena – da forma usada por Circe no futuro: um círculo formado por pares, voltados para baixo. Pediu que a menina escolhesse uma delas e então virou-a para cima. Era a estrela. A Carta XVII dos arcanos maiores do Tarot.

 

-- Começamos bem – disse Samara à Alzira – Selena tirou uma das mais belas cartas do tarô. Significa uma vida plena: saúde, sucesso, prosperidade, um anjo sempre a olhar por ela, força para superar obstáculos e proteção divina. Indica ainda que ela encontrará o verdadeiro amor nessa vida.

 

-- Oba! – quase gritou Selena, lembrando-se da sua última frustração, na outra vida, por não ter aceitado reconhecer o seu Rei de Paus.

 

Samara riu, mas Alzira não.

 

Por mais de uma hora, as cartas foram consultadas. Ao final, a cartomante disse:

-- Selena, você terá que aprender uma coisa fundamental para o seu sucesso na vida: jamais revele a ninguém o que sabe do futuro, ou do passado, nem mesmo a alguém em que você confie. O seu privilegiado conhecimento está dentro de você para servir apenas a você mesma. Com isso, acabará também servindo aos outros. No entanto, quando você fala de mistérios às almas que estão vivendo pela primeira vez, ou às que não estão preparadas para ouvir e compreender os Mistérios Maiores da nossa Vida, gera nessas almas sentimentos dúbios que vão do medo do desconhecido à hostilidade contra você, menina. Se quiser, use tudo isso nos livros, pois já sabemos que seu destino nessa estada na Terra é escrever. O papel aceita tudo, podem alguns achar que seus livros são insanos, mas tudo não passará de ficção. Se você sente necessidade de dividir os conhecimentos que trouxe do passado ou do futuro, faça-o em forma de ficção. Quem puder entender, entenderá.

 

Zizi assustou-se um pouco com a seriedade de Selena com relação ao conselho de Samara. A menina o interpretou literalmente e parou de falar em futuro, conquistas tecnológicas, o que, convenhamos, assustava bastante as pessoas naquele ano de 1930.

 

No entanto, misteriosamente, quanto mais Selena ia se calando, mais conseguia lembrar-se de suas vidas passadas.

 

Nessa lembranças, no entanto, nem tudo eram flores.

 

Às vezes acordava à noite, gritando de dor, porque sentia que as chamas da fogueira estavam consumindo seu corpo. Outras, porque se lembrava daquele instrumento de tortura, usado pelos padres católicos, contra as bruxas, que, amarrados aos seus pulsos e calcanhares, numa cama de ferro que os algozes faziam ir se expandindo e, assim, esticando seu corpo, rompendo os ligamentos, fazendo-a querer morrer, de tanto que doía.

 

Em outras noites, ainda, via os lindos bosques em que praticava seus rituais de fertilidade, serem destruídos, pelo fogo, pelos inimigos cristãos, seus companheiros correndo, em pânico, para fugir das chamas que consumiam as árvores, as plantas, as flores... Era um verdadeiro terror!

 

Sabia, então, que naquela vida da Idade Média, cheia de encantos e de descobrimentos, com o advento do cristianismo, começaram as mulheres a viver a grande repressão de suas capacidades mágicas o que culminou, afinal, no sentimento de inferioridade e menos valia que abafava, agora, no sexo feminino, todas as suas potencialidades.

 

Compreendeu também que, em sua vida no século XXI, a racionalidade e a atitude masculinizada que ela tivera então, para galgar altas posições no mundo coorporativo, eram o reflexo, ao contrário, no espelho de sua feminilidade: em busca da igualdade de oportunidades no trabalho, ela negara o seu lado bruxa, o feminino ancestral que habitava em sua alma, para tentar pertencer ao mundo da testosterona, da racionalidade masculina. Quão estúpida fôra – refletia então. Tão estúpida a ponto de não reconhecer o verdadeiro amor quando este a procurara.

 

Durante dez anos, Maria Antônia Padra, que a professora Anália apresentara à menina Selena, encantada com a força e a personalidade, além do gosto pela Literatura, de Selena, resolvera financiar lhe os estudos. Ela então, menina pobre do bairro operário da cidade, foi estudar entre as ricas, num dos melhores colégios de São Paulo.

 

Formou-se no que era, na sua época, o curso Clássico.

 

Depois do Grupo Escolar, cursara mais 8 anos no colégio das ricas.

Aos 19 anos, formada, era considerada por suas colegas e professoras como uma moça brilhante, embora ligeiramente revoltada. Isso porque vivia falando em ideias feministas, identificando-se com Nísia Floresta, Bertha Lutz, Carlota Pereira de Queiroz, Pagu e sua própria primeira professora, Anália. 

 

A ciência, que ela pensara ser sua vocação, quando ainda criança, foi substituída em sua alma, pela sociologia, a Ciência Social.

 

Se, quando Selena parou de falar em suas vidas passadas e futuras, por um lado, pararam as agressões e os mexericos por parte da vizinhança, já em sua própria casa Selena enfrentava a hostilidade e os ciúmes dos irmãos, principalmente das irmãs mulheres. Por que não tiveram elas os mesmos privilégios da irmã caçula? Elas não tinham estudado senão o primário, como também os irmãos homens. Tinham empregos humildes enquanto Selena nem trabalhava. Seus dias eram dedicados à leitura e aos estudos. Frequentava aquele colégio de meninas ricas...

 

Aliás, no início do curso, as meninas ricas também a hostilizavam, porque sabiam que ela vinha de uma família pobre, de um bairro feio (no começo do século XX, a Mooca ainda não era o bonito lugar que seria na década de 2020) e que só estava ali pela caridade de uma senhora da alta sociedade que – sabe-se lá como! – se impressionara por ela.

 

Com o passar dos anos, porém, os encantos de Selena – a Deusa da Lua, nascida sob a proteção da Estrela do Tarô – foram conquistando as suas colegas, seus professores. As menina ricas, diante dos discursos feministas de Selena, começaram a questionar o seu próprio destino como rainhas-do-lar, um lar de fato sustentado e dominado por um marido. Por que não poderiam, elas também, prover o seu próprio sustento, dirigir a sua própria vida? Por que não poderiam votar para eleger seus representantes e governantes?

Muitas delas, por influência dos discursos e das reflexões de Selena, tornaram-se sufragistas e pagaram o preço de sua posição política: zombarias, hostilidades, desprezo e a desconfiança dos homens, que poderiam ser os “bons partidos” de suas vidas, mas que, agora, as temiam.

 

Selena, certo dia, entregou à porta da casa de Maria Antônia Prada, sua benfeitora, os originais de um dos livros que escrevera: “Condição de Mulher”. Era tão polêmico – julgou então a velha senhora – mas tão rico e tão bem escrito, numa linguagem lírica, poesia mesmo, e apontava tantas perspectivas para a liberdade do sexo feminino, para a possibilidade de realização plena das mulheres, que a matriarca dos Padra resolveu bancar-lhe a edição e ainda proporcionou-lhe uma maravilhosa noite de autógrafos, regada à champagne francês, no elitista Clube Atlético Paulistano, na Rua Estados Unidos.

 

O livro causou indignação ao crítico do jornal O Estado de São Paulo, mas foi muitíssimo elogiado pela crítica de outro jornal, então seu maior concorrente, O Diário Popular.

 

Comprado evidentemente por todas as quase cem famílias presentes ao lançamento no clube, agradou a muito poucas. Outras, a maioria, desprezaram o seu conteúdo e o livro, assim, acabou indo parar na mão das empregadas dessas casas que se encarregaram em distribuir aqueles exemplares, abandonados, em seu próprio meio. As mulheres mais pobres, aquelas que tinham o privilégio de serem alfabetizadas, disputavam os exemplares, encantadas pelas possibilidades, que o livro oferecia, de uma vida mais livre e mais plena.

 

O texto do livro foi traduzido para o inglês e enviado, por uma feminista brasileira de então, ao National Woman's Party 

nos Estados Unidos.

 

Dois meses depois, Selena foi convidada pelas sufragistas americanas (que tinham conquistado o direito ao voto, anos antes, em 1920) para dar uma palestra sobre sua obra em Nova Iorque.

 

Ora, Selena falava inglês fluente, pois sua alma aprendera o idioma em sua vida, como Maria Alcina, no século XXI. Foi o maior sucesso.

Logo o livro estava em todas as livrarias dos Estados Unidos, com o título de “Women’s Status”.

 

Foi convidada então, pela organização feminista fundada na Inglaterra por Emmeline Pankhurst, para dar sua palestra.

 

Na plateia, estava Sir William More, um simpatizante das causas feministas, assim como o fôra o próprio marido de Emmeline, Richard. Apaixonou-se por aquela “selvagem” do longínquo Brasil, ao vê-la discursar. Indiferente aos muitos preconceitos de classe, acabou por pedi-la em casamento.  Ela, ao vê-lo, reconheceu nele o “Rei de Paus” que rejeitara em sua outra vida, no século XXI.

 

Casados, foram morar na mansão que ele mantinha no campo. No começo, eram naturalmente hostilizados pelas famílias da nobreza britânica, à qual ele pertencia. Mas, com o passar dos anos... quem poderia resistir aos encantos de Selena?

 

Tiveram dois filhos. E, durante o resto de sua vida, Selena jamais desamparou sua família brasileira que, em algumas ocasiões, foi levada a conhecer os campos verdes da Inglaterra e nunca mais passara por apertos financeiros.

 

Em 1945, quase ao final da II Guerra Mundial, o então Cel. William foi abatido por tropas inimigas.

 

As cartas não mentem, porém também não dizem tudo. Ela encontrara, nessa vida do século XX, o seu Rei de Paus. Mas passara apenas 7 anos ao seu lado.

 

Selena – apesar da dor da perda de seu grande amor – continuou escrevendo, publicando e encantando a todos. Criou seu casal de filhos com uma visão progressista, mas jamais revelou a eles os seus conhecimentos de vidas anteriores. Mesmo assim, quando na adolescência, os filhos voltaram-se contra ela chamando-a de “a bruxa brasileira”(The Brazilian Witch), como se isso fosse uma desqualificação. Ela ria e os chamava de “muggles”*.

 

Selena continuou a pesquisar a história das mulheres e a escrever seus livros e a encantar as plateias com seu poder de sedução de lua e de estrela.  Até que, em 1979, morreu dormindo. A melhor morte para os que vão e a pior, para os que ficam. Seus filhos, completamente chocados, carregaram para sempre a culpa de terem zombado daquela mulher sábia.

 

Em seu sonho, na noite de sua morte, ela se via renascer, agora num planeta feliz, Ahtilantê, ainda dentro da Via Láctea, que orbitava em torno de uma estrela, o sol dele, duplo, chamado Capela.

 

* Muggles - gíria para maconha (1926) usada por JK Rawling em seus livros “Harry Potter” com o significado de “non magical”, pessoas que nascem sem poderes mágicos, e traduzida no brasil por “trouxa” que remete ainda à “trouxinha de maconha”.


Contos dessa mesma alma: 1. As Cartas Não Mentem (Alcina, anos 2020) 3. Origens, A Viagem Espacial das Almas (em Capella) 4. Kieza, a Escrava (no Império Brasileiro)


 

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