Kieza, a Escrava
- SAUDE&LIVROS Fomm
- 23 de set.
- 14 min de leitura
por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano
do Livro Todas as Mulheres São Bruxas 3

Estava parecendo mesmo que o seu destino de alma sábia era viver e viver de novo e mais uma vez, na Terra. Verdade que a Terra era o mais bonito dos planetas em que ela já vivera. Pena que os seres humanos ali acabaram cavando a sua própria extinção. No entanto, ela sabia, 10 mil anos pouco significavam para o Cosmos e, depois do aniquilamento daqueles bobocas poluidores, outros seres humanos viriam ressurgindo sobre o Planeta e, talvez, não fizessem, afinal, as mesmas besteiras ecológicas do que os humanos do chamado Terceiro Milênio.
Sabia também que os grandes feitos daquela Humanidade extinta, os feitos realmente positivos, estavam vivos nos Registros Acásicos do Céu. Mozart, Van Gogh, Drummond, Picasso, Pessoa, Platão, Shakespeare... Toda a beleza criada por esses seres iluminados jamais se perderia no Universo. Estavam lá, no Grande Inconsciente Coletivo das Almas e acabariam por se repetir numa nova Humanidade.
Mas, com mil demônios, lá estava ela nascendo de novo no passado, antes da destruição daquela mais recente raça humana.
Abriu seus olhinhos de bebê para ver se conseguia descobrir em que momento do Deus Tempo estava nascendo agora.
Sentiu que dois braços fortes a amparavam e traziam-na junto a um colo negro. Duas mamas imensas e ela abocanhou uma deles, para sua primeira refeição dessa nova vida. Percebeu então que essa sua nova mãe chorava. Sentiu uma sacudidela e, de repente, um ar frio e salgado penetrou seus pulmõezinhos de bebê. O chão balançava e ela compreendeu que estava no mar.
Imediatamente, porém, o cheiro do sofrimento físico a atingiu. Muitos cheiros. Vômito. Fezes. Feridas purulentas. Peste. Ratos. Tinha até o cheiro da morte. Correntes, pendiam dos pulsos e tornozelos daqueles homens e mulheres fétidos, adoentados, alguns que tinham sido príncipes e princesas em suas nações de origem, antes de escravizados.
“Em que momento da escravidão dos africanos estarei agora?” – pensou ela, já entendendo que estava num navio negreiro. Mas indo para qual país?
Quando viu alguns marinheiros descerem ao porão do barco, para recolher três cadáveres, e percebeu que eles falavam português, pensou: Bom, pelo menos talvez estejamos indo para o Brasil... Menos mal!
Fechou seus olhinhos e só os abriu quando chegaram ao seu destino.
Nossa! Era lindo! Um Rio de Janeiro sem prédios na orla. Uma baía de Guanabara sem resíduos fétidos enegrecendo lhes as águas. O ar puro!
Porém, foi a única coisa linda que a bebê, da nação dos bantos, trazidos de Moçambique, viu no desembarque do último navio negreiro a aportar na cidade do Rio de Janeiro.
Era 1852. Dois anos antes a Lei Eusébio de Queiroz proibira de vez o tráfico negreiro em águas brasileiras. Por sorte, uma outra lei brasileira, um pouco anterior, vedava aos traficantes dos negros a separação das famílias na hora da venda. Por isso Kieza(1), filha de Ayana(2) e Akin (3), nascida em meio ao incrível sofrimento de pessoas transportadas num imundo porão de navio, foi vendida, juntamente com seus pais, a uma família abastada de um comerciante que não só morava próxima ao Palácio Imperial, como também o frequentava em algumas ocasiões.
Dizia-se, na cidade, que às vezes o próprio Imperador ia até a Loja de José Basílio para adquirir livros importados e a própria Imperatriz, convidava Maria Caetana para o chá da tarde e, depois, as duas senhoras se enfiavam na cozinha do Palácio para discutir e trocar receitas da culinária local e internacional. A Imperatriz, apesar de sua origem de Princesa da Sicília e esposa da Autoridade Máxima do Brasil, às vezes arregaçava as mangas e ia pra cozinha, preparar pratos especiais que os negros (todos alforriados) do Palácio serviriam, mais tarde, à família imperial.
José Basílio e Maria Caetana tiveram 8 filhos, mas apenas 4 deles sobreviveram à primeira Infância: João, Filipe, Joaquina e Augusta. Quando a nova família de escravos chegou à casa deles, Augusta, a caçula de apenas 8 anos de idade, encantou-se por aquela bebê-negrinha e foi logo exigindo:
-- Ela é minha! Eu a quero! Ela é o meu neném.
O pai, que sempre fazia as vontades da menina, concordou:
-- Está muito bem. Mas você vai ter que trata-la, ensiná-la a falar e a andar, você vai banha-la, vesti-la e alimentá-la. Ela é um bebê de verdade, não um brinquedo!
Enquanto Ayana amamentou a filha, Augusta ficou livre da última obrigação que o pai lhe impusera. Mas aprendeu a dar banho na menininha e vestia-a como se ela fosse boneca. Quando, porém, se pegava longe das vistas de todos, fazia suas pequenas maldades, beliscava o corpinho da bebê, enfiava o dedo no seu ânus – quentinho – bolinava suas partes íntimas, dava-lhe fel para beber, tudo porque ver a pobrezinha sofrer dava-lhe um prazer perverso. E, quando Kieza caía no choro, Augusta a pegava em seus braços, acariciava lhe o corpo, dava-lhe ternos beijinhos e fazia-lhe cócegas, para, então vê-la rir.
Assim, entre a maldade e o carinho de Augusta, Kieza foi crescendo. Acostumou-se às brincadeiras sexuais de Augusta e, com o tempo, no meio da noite, Kieza escorregava para a cama da patroa e ambas ficavam ali, no escuro, debaixo das cobertas, bolinando-se mutuamente. Acabaram, desta forma, sendo uma espécie de cúmplices.
João e Filipe (respectivamente 4 e 2 anos mais velhos que Augusta) frequentavam as escolas cariocas mantidas por jesuítas. Joaquina recebia a primorosa educação das freiras católicas, no convento, onde aprendia a arte de ser uma perfeita esposa para um fidalgo e todas as lições necessárias para governar, com maestria, um lar abastado. Já Augusta tinha um mentor, um pianista pobre e homossexual, que ensinava-lhe música, letras, história, matemática e ciências. Quando Kieza chegou aos 7 anos de idade, Augusta exigiu dos pais que a pequena escrava fosse alfabetizada. José Basílio riu das ideias da filha, e disse:
-- Vocês, meninas, só estudam porque sua mãe faz absoluta questão disso. Por mim, mulher não precisa saber ler nem escrever e, muito menos, conhecer história. Para que? Para casar-se, ter filhos, cuidar da casa... A minha Maria Caetana porém diz que a Princesa Isabel está sendo educada pelo Imperador para governar, recebeu educação igual a de um homem e que, quando ela for imperatriz, vai baixar um decreto obrigando todas as meninas do Rio a frequentar escolas. Não vai ter escola suficiente, mas todos sabem que essa moça, a princesa, não passa de uma sonhadora. Agora... educar uma escrava? Por Deus, minha filha! Para que?
-- Para que ela possa ler livros para mim, antes de eu dormir.
José Basílio, que sempre fazia as vontades de sua filha caçula, acabou cedendo.
Augusta era apenas 2 anos mais velha que a Princesa, que nascera em 29 de julho de 1846 e estava agora com 13 anos. A Corte, porém, sabia que Isabel tinha mestres vindos do Exterior e, apesar de sua pouca idade, falava três idiomas, estudava todas as ciências e até a arte da política. Estava sendo educada para ser Imperatriz, já que D. Pedro II e Tereza Cristina tinham perdido seus dois únicos filhos machos: o primeiro, em 1847 e o segundo, em 1850.
A família de Kieza fôra realmente abençoada por ter sido adquirida pelo casal de comerciantes. Maria Caetana era uma mulher religiosa, mas não estúpida como tantas carolas locais que viviam falando em inferno, em castigo divino e outras bobagens. Caetana era generosa, bondosa, carinhosa. E o era assim com todos, inclusive com os escravos. A mãe de Augusta, depois de 10 anos que adquirira aqueles escravos, via em Ayana o próprio significado de seu nome, linda flor. Fez dela sua sombra. Se Caetana era bondosa demais para punir os outros escravos serviçais por suas falhas ou desatenções, Ayana o fazia pela dona da casa. Tinham, na residência, cerca de 20 escravos e todos temiam “a negra besta” (como a chamavam, pelas costas). Alguns – embora reclamando que aquele fosse, em seu continente de origem, trabalho para mulher – cuidavam das hortas, do pomar e dos cavalos na estrebaria. As mulheres se revezavam na cozinha e Akin, o pai de Kieza, acabou por se tornar – a exemplo do que ocorrera com sua mulher, Ayana e Maria Caetana – também o braço direito de José Basílio. Acompanhava-o a toda parte, ia com ele ao Porto vistoriar as ricas mercadorias que chegavam de muitos lugares do mundo para abastecer a mais fina loja do Rio de Janeiro, a dele. Eram porcelanas inglesas, tapetes persas, tecidos finíssimos, perfumes franceses, vinhos e as demais iguarias exigidas pelos muito ricos, além das mais recentes obras literárias e científicas publicadas na Europa. Basílio ensinou-o a cuidar e a classificar o estoque de mercadorias e Akin, dessa maneira e como estava acontecendo com sua filha, foi aprendendo as letras e os números. Quando deu por si, sabia ler.
Já sua filha, Kieza, descobrira os segredos da horta e do jardim. Ia lá, várias vezes ao dia, e, com os escravos que cuidavam da terra, foi conhecendo as ervas, as frutas. Logo estava entendendo a linguagem das plantas, da mesma forma com que entendera a linguagem das letras. Com o passar dos anos, dominou todas as técnicas que alguns dos escravos conheciam sobre o uso medicinal das plantas e foi além dessas: criou as suas próprias. Preparava, na cozinha da casa, chás, unguentos, poções e ninguém mais, por ali, tinha uma dorzinha de cabeça sequer que não fosse minimizada por suas beberagens (o que vinha dos salgueiros, por exemplo, acabava com elas); ninguém mais teve uma ferida que não fosse tratada por ela; ninguém mais se queixou de dor nas juntas... e assim por diante!
Mas, nem por isso – a situação privilegiada de escravos urbanos, bem alimentados e relativamente bem tratados – os negros da casa ignoravam o que acontecia com seus irmãos de continente no resto do país. Sabiam que os escravos que tentavam fugir das propriedades rurais (fossem elas grandes fazendas ou modestos sítios), ou mesmo os que cometiam pequenas faltas, eram duramente castigados, atados aos “troncos”, chicoteados até quase perderam os sentidos e tinham suas feridas, decorrentes do espancamento, salgadas. Alguns morriam de febre, em alguns dias e até em algumas horas depois. Sabiam que a alimentação dos negros era basicamente feita das sobras das mesas dos patrões. Sabiam que as negras eram frequentemente estupradas por seus proprietários e que tudo isso acabava por desintegrar várias famílias negras, formais ou informais, que se constituíam regularmente.
O Brasil foi o último país do mundo a libertar seus escravos.
Enquanto isso não acontecia, cada vez mais a ideia abolicionista ia tomando corpo entre as lideranças políticas e intelectuais da nação.
Lá pela década de 1880, quando os filhos de João Basílio e Maria Caetana já eram homens e mulheres adultos e tinham suas próprias famílias (exceto por Augusta que vivia dizendo que não se casaria por não ter “vocação para escrava”) e quando a Princesa Isabel já não fazia segredo tanto de suas ideias abolicionistas quanto sufragistas e pela igualdade entre os gêneros, duas leis que visavam melhorar a condição dos escravos já existiam: a Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885). Essa última, alforriando escravos maiores de 60 anos de idade, fez com que montanhas de negros velhos fossem abandonados e passassem a perambular pelas matas, pelas cidades, mendigando sua sobrevivência, trabalhando muitas vezes, duramente, pelo prato de comida que, mal ou bem, teriam normalmente quando escravizados. A primeira, mais antiga, a que alforriava imediatamente todos os bebês nascidos dos ventres das escravas, acabara por fazer com que os patrões não tivessem mais o menor interesse em zelar pelos bebês que, crescendo, seriam homens livres e não mais propriedades deles. Ambos os resultados tinham sido tiros bem-intencionados que saíram pela culatra.
Kieza e Augusta continuavam a frequentar uma a cama da outra. Eram jovens cultas, bonitas e bem tratadas. A escrava, depois que aprendera a ler, devorava os livros da biblioteca de José Basílio e ajudava sua mãe a administrar a casa. A Princesa Isabel, certo dia, recebeu ambas para o chá, juntamente com Maria Caetana e a Imperatriz. Suas altezas ficaram encantadas com as jovens, na verdade, mais encantada ficou Isabel, que encontrou, nos ideais professados por Kieza e Augusta, um grande eco de suas próprias pretensões humanísticas. A Princesa não tinha preconceitos e estava acostumada a receber vários negros – alforriados, intelectuais e escravos fugidos – à sua mesa, tanto no Palácio do Rio quanto no de Petrópolis.
Em 1883 formara-se a Confederação Abolicionista. Nomes importantes, que passariam para a História, faziam parte dela:
André Rebouças, Luiz Gama, José do Patrocínio, Francisco José do Nascimento, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e mais inúmeros cidadãos e cidadãs cariocas que não podiam suportar a escravidão.
Foi também por essa época que o português José Seixas de Magalhães começou a escrever o seu nome na História. Ele fabricava malas e sacos de viagem em sua fábrica no centro do Rio, na Rua Gonçalves Dias. Era um sucesso, uma verdadeira versão carioca de Louis Vuitton, e já expusera seus produtos até em Paris. Seixas tinha ainda uma chácara onde cultivava flores e escondia escravos fugidos. Assim, a propriedade passou a ser conhecida como “Quilombo Leblon”, nome que se referia ao antigo proprietário daquela erma região, o francês Carlos Le Blon. Lá eram cultivadas flores nativas e flores de outros lugares do mundo. Uma delas era a Camélia, flor até então desconhecida dos brasileiros, a preferida da Princesa Isabel. Tanto a princesa quanto os membros da Confederação Abolicionista e até mesmo os seus simpatizantes passaram a usar camélias brancas na lapela. A Princesa mandou fazer uma cerca viva de camélias na sua residência de Petrópolis. A camélia enfeitava sua mesa, seu decote, sua capela, sua escrivaninha.
Logo todos os escravos fugidos sabiam que, se encontrassem alguém nas ruas usando uma camélia na lapela, ali estava um amigo. O quilombo do Leblon crescia.
A polícia sabia. Mas não ousaria bater de frente com ninguém nada mais nada menos que os protegidos de sua Princesa. Era um lugar alegre, o quilombo. Os ex escravos sentiam-se valorizados e amparados. Cantavam. Faziam festas, grande parte dos abolicionistas ia lá, comemorar, participar dos batuques dos negros e aliviar as tensões cotidianas com largas doses da melhor cachaça.
Um dia, Augusta e Kieza, acompanhadas por Akin, também foram. E Kieza não conseguiu, a partir daí, pensar em mais nada a não ser na Chácara das Flores. Imaginava que poderia produzir, lá, muito mais do que produzia nos jardins e pomares de Maria Caetana e José Basílio. Além disso, contagiara-lhe a alma a alegria que lá reinava. Seus irmãos afrodescendentes, suas danças, suas músicas... Disse para Augusta:
-- Tem tanto negro bonito lá que eu acabaria por arrumar um marido.
Augusta, ressentida, respondeu:
-- Está sentindo falta de homem? Não basto eu?
Não. Não bastava. De fato, aquele domingo inteiro vivido na Chácara das Flores, despertara em Kieza não apenas a paixão pelo lugar, mas também por um quilombola forte, uns 10 anos mais velho que ela, com um riso estupendo e as costas lenhadas por cicatrizes de algumas surras que levara no tronco da fazenda de onde acabara fugindo. Seu nome era Bomani(4), que significa guerreiro.
Kieza tentou pelo lado do bem. Conversou com Augusta e Maria Caetana: queria sua alforria, queria ir viver no Quilombo do Leblon e usar camélias nos cabelos.
Quando José Basílio ficou sabendo do desejo da escrava, sua primeira reação foi de decepção e de tristeza. De fato, estimava a garota como se fosse sua própria filha. Parecia a ele ter recebido dela uma facada pelas costas.
-- Ingratidão! – exclamou ele com um grito.
Caetana assustou-se. Nunca vira o marido, em todos esses anos, gritar.
-- Fizemos tudo por essa moça! – continuou ele -- Pagamos-lhe os estudos, a vestimos de seda, com os mesmos trajes usados por nossas filhas! Fizemos dela uma mulher culta, coisa quase impossível para a maioria das mulheres, ainda que não escravas. Não nega a raça, mesmo, essa ingrata! Prefere sair do conforto e do luxo do nosso lar para ir viver num bando de negros sujos e vagabundos!
-- Agora você está sendo injusto – respondeu Caetana com calma – Os negros da Chácara das Flores não são sujos e, muito menos, vagabundos. Trabalham para o Sr. Seixas, são alegres e cordiais.
Basílio mandou chamar Kieza.
-- Você sempre recebeu, desde bebê, quando chegou a essa casa, tudo de bom e do melhor. Mas agora – disse ele levantando-se da mesa do jantar e tirando a cinta da calça – está na hora de receber um corretivo. É para o seu próprio bem. Para acabar com essa ingratidão. Deite-se ali, de costas. E, se não quiser que eu rasgue o seu lindo vestido, abaixe-o! – disse ele, apontando um sofá.
A pele brilhante e imaculada de Kieza logo foi cortada em tiras, pela violência da cinta, pelo lado da fivela, com que ele a surrou. O sofá ficou todo manchado com seu sangue. Augusta não fez o menor gesto em defesa da negra. Até voltou a sentir um resquício do prazer sádico que sentira, há anos, ao machucá-la, quando ela ainda não passava de uma bebê.
José Basílio chamou Akin e Ayana e lhes disse:
-- Essa sua filha ingrata levou uma surra para aprender a não cuspir no prato que comeu. Levem-na para os alojamentos de vocês, aqui, no quarto de Augusta, não há mais lugar para ela. A partir de hoje, acabam-se os privilégios dela!
Consternados pelo sofrimento de Kieza, seus pais obedeceram. Trataram de seus ferimentos com as próprias poções que a moça fazia para tratar de todos. Graças a eles, os ferimentos dela foram se cicatrizando com maior rapidez do que era comum. Kieza, revoltada, esperava a compaixão e a compreensão dos pais. Mas estes não a apoiaram. Disseram que o patrão era quem estava certo. Que ele proporcionara à sua família, dignidade, conhecimento e conforto. Concordavam com ele. Kieza estava sendo apenas um monstro de ingratidão.
Quarenta dias depois, na calada da noite, ajudada por alguns companheiros escravos, Kieza montou um dos cavalos do estábulo da casa e fugiu dali, a galope e sem olhar para trás.
Quando, alguns anos mais tarde, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea e pôs um fim ao regime de escravidão no Brasil, em 13 de maio de 1888, nascia a quarta filha de Kieza e Bomani, na Chácara das Flores. Deram-lhe o nome de Isabel, em homenagem à Redentora. A Princesa, porém, e sua família Imperial, foi banida do Brasil quando da Proclamação da República, pouco mais de um ano depois da Abolição. Deixando para trás os filhos que tivera com o Conde D’Eu, Isabel, seu marido, O Imperador e a Imperatriz tiveram todos os seus bens, no país, confiscados e partiram, de navio, para Portugal, com a roupa do corpo. A Princesa lamentava que toda uma população de afrodescendentes, agora libertos, não encontrariam, nos republicanos, apoio algum. Enquanto no poder, sua família procurava incentivar os brasileiros a darem emprego e moradia aos negros libertos que, com a Lei Áurea (outro tiro pela culatra, julgava ela) viram-se da noite para o dia, sem teto, sem trabalho e sem comida. E ela tivera que deixar o Brasil sem nem mesmo chegar a implementar uma política que visasse criar condições para que os negros libertos pudessem se integrar na sociedade. Isabel morreria em julho de 1921, na propriedade de seu marido, na França, sem jamais pisar novamente em território brasileiro. Sua casa era conhecida na Europa como “embaixada do Brasil” e a princesa recebia brasileiros e os ajudava em seus planos. Um desses, foi Santos Dummont.
A Chácara das Flores, que agora não poderia mais ser chamada de Quilombo do Leblon, prosseguia muito bem, assim como a loja de Seixas e também a de João Basílio.
Augusta, depois da fuga de Kieza, nunca mais quis saber de sua antiga companheira e, para desgosto de seus pais, enrabichou-se por uma rica fazendeira de Juiz de Fora, nas Minas Gerais, e foi-se embora do Rio para viver com a nova amante.
Bomani e Kieza, agora livres, se encarregam de abastecer as lojas da cidade não só com as belíssimas flores da Chácara, mas também com os medicamentos que ela criava a partir das ervas, arbustos e árvores, que cultivava ali. A alma atormentada de Alcina e Selena, encontrara afinal, na Terra, novamente o seu grande e tão sonhado amor.
José Basílio morreu de desgosto, pela filha, pela sua filha-escrava e pela Família Imperial banida do Brasil pelos “canalhas republicanos”, como gostava de chama-los, na virada do século. Maria Caetana, ajudada por Akin, tocou a loja e era muito mal-vista pela sociedade carioca que julgava que “lugar de mulher era em casa, cuidando dos netos, e não por detrás de um balcão”. Continuou morando na casa mas já sem o seu séquito de negros. Em 1901, à beira da morte, chamou Ayana – que já passara a barreira dos 80 anos de idade e ainda conservava os cabelos escuros – e disse:
- Ayana, não morra sem perdoar sua filha e sem conhecer seus netos.
-- Eu via eles de longe, às vezes, quando estava pela cidade.
Só não contou que, nessas ocasiões, seus olhos se turvavam com as lágrimas.
-- Peça a um dos empregados para leva-la ao Leblon.
Quando Caetana se foi, as famílias de seus filhos venderam o casarão e também a loja e instalaram Ayna e Akin numa casinha de subúrbio, atendidos por duas negras contratadas por eles. Kieza, Bonami e seus filhos visitavam regularmente os seus velhos.
(1) Kieza = “a que chega”
(2) Ayana = “linda flor”
(3) Akin = “herói”
(4) Bomani = “guerreiro”
2021, setembro, 9, 10 e 11.
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