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As Cartas não Mentem

  • Foto do escritor: SAUDE&LIVROS Fomm
    SAUDE&LIVROS Fomm
  • 23 de set.
  • 15 min de leitura

Atualizado: 5 de out.

por Isabel Fomm de Vasconcellos Caetano

(do Livro "Todas as Mulheres São Bruxas 3)


Leia abaixo e/ou veja o video com esa história.

Contos das vidas dessa mesma alma:

  1. Selena, a da Lua Cheia (1918, São Paulo)

  2. Origens, A Viagem Espacial das Almas (em Capella)

  3. Kieza, a Escrava (no Império Brasileiro)

A Cartomante, ilustração Simon's Creation
A Cartomante, ilustração Simon's Creation

Era bonita, inteligente, simpática, boa de cama. Tinha tudo – julgava – para agradar os homens. Na verdade, pensando bem, agradar... ela agradava. Não o suficiente, porém, para que algum deles aventasse a possibilidade de tê-la como companheira na vida.

Ia fazer 30 anos, semana que vem. Tinha dois ou três namorados que a procuravam, saiam juntos, dormiam juntos, até viajavam nos fins de semana... mas compromisso, nem pensar.

 

Veja, me entendam bem, ela, Alcininha, não era uma dessas mulheres caçadoras de marido. Formada em administração de empresas pela melhor escola, a Fundação Getúlio Vargas, conseguira um ótimo emprego numa indústria farmacêutica internacional e, nos últimos seis anos, já acumulava 3 promoções, sendo a gerente de marketing da empresa e – sabia – acabaria por ser a diretora. Ganhava bem morava sozinha num ótimo apartamento num bairro de classe média alta, comprado com financiamento bem curto (para a tristeza de seus pais, porque, por eles, a sua caçula, a mais nova de dois irmãos bem mais velhos que ela e já com suas famílias formadas, ainda viveria em casa, com eles). Era uma mulher independente e profissionalmente realizada.

 

No entanto, ansiava por viver um grande amor – como aquele que, ela vira por toda a vida, unira seus próprios pais, aos quais ela creditava a maior parte de seu sucesso: à segurança de ter sido criada por um casal que realmente se amava.  Maria Alcina queria um amor assim, como o de seus progenitores.  Alguém com quem dividir as alegrias e as angústias do cotidiano. Alguém com quem dividir a velhice, que inevitavelmente chegaria. E alguém com quem, é claro, fosse feliz na cama. Feliz na cama ela era também com seus eventuais namorados. Mas sabia que, para eles, era apenas isso. Queria mais.

 

Um dia, desabafando com sua amiga de infância, Beth, essa lhe disse:

 

-- Alcininha, não há nada que assuste mais os homens do que uma mulher independente. Eles até topam ter um caso com ela, mas se casam mesmo com aquelas bobocas que dependerão deles para tudo, principalmente do dinheiro deles. Homens têm medo de mulheres que não poderão controlar. Temem que elas os traíam, ou que ganhem mais do que eles, enfim, que não estejam atadas a eles por uma forte dependência afetiva e econômica. A sua segurança os assusta.

 

-- Tudo bem, Beth. – respondeu Maria Alcina – Eu compreendo tudo isso, mas um amor de verdade estará acima dessas coisas, um amor de verdade nos dá coragem para enfrentar qualquer circunstância. Será que nunca encontrarei esse amor?

 

-- Está aí uma questão – disse Beth com um riso irônico – que deveria ser colocada à alguém que transcende as esferas materiais.

 

-- Como assim?

 

-- Uma bruxa – respondeu a amiga – Alguém que sabe dos caminhos espirituais, que os desvenda, que poderia revelar a você onde está escondida a sua cara metade, o homem que o destino reservou para você e para quem você foi reservada pelo Universo.

 

Alcininha caiu na risada.

 

-- Que papo é esse, menina? Nunca soube que você era chegada a essas bobagens esotéricas.

 

-- Não são bobagens – respondeu Beth. “Há muitos mais mistérios entre o céu e a terra, do que sonha nossa vã filosofia”. Você, que é uma mulher inteligente, terá coragem de negar que existem forças na Natureza e na vida, que ainda nos são quase completamente desconhecidas e, principalmente não explicadas? Nunca, em nenhum momento da sua bem-sucedida trajetória, topou com elas? Duvido!

 

Maria Alcina tentou lembrar-se de alguma coisa semelhante. Não conseguia. Até que, num rompante, veio-lhe à mente um dia em que, voltando para casa, de madrugada, um casal, parado ao lado de um táxi, numa rua erma, fizera sinal para o carro dela. Poderia ser uma armadilha, daquelas tão comuns em uma cidade como São Paulo, mas alguma coisa lhe disse que poderia parar. E assim o fez. A mulher, nervosa, chegou à janela do carro dela e explicou que o taxista negava-se a aceitar o cartão de crédito deles, que eles não tinham dinheiro vivo para pagar a corrida e o homem os tinha ameaçado, dizia que chamaria a polícia e outros horrores. Alcininha então pagara a corrida a eles, que, agradecidos e emocionados, queriam uma forma de ressarci-la. Ela respondera – sem saber bem porque – que Deus a recompensaria, que o importante era que eles ficassem bem. Como – refletiu ela então – percebera que não estava entrando em uma armadilha? Não havia explicação racional para isso.

 

-- Sim – respondeu ela à Beth – Uma vez me aconteceu.

 

-- Então – disse Beth – você sabe que esses poderes existem e que não existe explicação racional para eles.

 

A amiga acabara de ecoar os seus próprios pensamentos.

 

-- E que bruxa é essa? – perguntou à Beth – Você a conhece?

 

-- Sim. Foi ela quem me revelou a traição do meu ex-marido e que me levou a divorciar-me dele. 

 

-- Revelou como?

 

-- Pelas cartas. Ela é uma cartomante. Posso lhe dar o contato dela.

 

-- Não sei se quero... – respondeu Maria Alcina.

 

-- Você não quer encontrar esse tão sonhado amor? – perguntou Beth e continuou: -- Vá lá. O máximo que pode acontecer é nada! O nome dela é Circe – e riu – até o nome é de feiticeira.

 

Alcininha não acreditava nessas coisas. “Yo no creo em Brujas, pero que las hay, las hay”, como diria Dom Quixote. Então, por via das dúvidas, foi.

 

Teve que esperar quase duas semanas por uma hora vaga com a cartomante. Circe atendia numa casa discreta, escondida por muros cobertos de hera que deixavam avistar muitas copas de árvores altas para dentro de seus limites. Quando o grande portão respondeu ao chamado de Maria Alcina, na campainha eletrônica, ela pôde ver que duas rampas de pedra levavam a uma grande garagem. Enquanto subia com o carro, pela outra rampa desciam 4 batedores de motocicleta cercando um automóvel preto de vidros blindados e chapa oficial. Eita – pensou ela – a Madame Circe esteve atendendo a algum figurão.

 

Em torno das rampas tudo era verde. Orquídeas floridas atadas aos troncos das árvores, dezenas delas e mais outras dezenas ainda sem flor. “A orquídea floresce uma vez por ano e suas flores duram até 6 meses”  – lembrou-se de ter lido num site de jardinagem. Havia muitas espécies de flores, foi notando Alcininha, enquanto caminhava pelo jardim em direção à porta principal da casa. Muitos pássaros, notou. E a casa!!! Também coberta de hera até o telhado, tinha um grande canteiro de Belladonas cercando-a, a planta das bruxas, com flores roxas, brancas e rosadas. Alcininha lembrou-se que a Belladona era também conhecida como “planta-do-diabo” devido aos preconceitos cristãos contra as chamadas “bruxas” celtas que utilizavam a planta em seus rituais, como alucinógeno, e também para fabricar medicamentos em seus caldeirões. Venenosa, se na dose errada, a planta era medicinal, na dose certa, usada pelos povos “bárbaros” para combater a depressão (doença que chamavam de melancolia), a loucura e, ainda, problemas gástricos. Extrato de Belladona era usado pelas italianas medievais como parte de sua maquiagem pois, pingado no olhos, dilata as pupilas, o que as mulheres de então achavam bastante atraente. Também chamada de Atropa Belladona, ou de Trombeta dos Anjos, a planta em questão pertence ao gênero cuja classificação, derivada da Mitologia Grega, vem de Atropos, que é uma das três irmãs que tecem o destino dos humanos: Cloto, a tecelã, tecia o destino das pessoas, do nascimento à morte; Laquesis, a compartilhadora, analisava o tamanho do fio tecido por sua irmã e determinava o comprimento deste, determinando assim a longevidade de cada um e, finalmente, a Atropos cabia cortar o fio de cada vida, sendo a senhora da Morte.

 

Estava imersa nesses pensamentos quando a grande porta da frente se abriu e um mordomo a conduziu ao que parecia ser uma mistura de biblioteca com sala de espera e indicou-lhe os grandes sofás forrados de exóticos tecidos, para que se acomodasse “até que Madame Circe mandasse busca-la”.

 

Alcininha olhou com curiosidade para as estantes que cobriam a parede oposta ao sofá. Junto à janela e sob um grande abajur de pé, uma clássica mesa de leitura. Quando o mordomo saiu e deixou-a só, ela levantou-se e foi olhar os títulos dos livros. Havia de tudo. Clássicos da literatura mundial e brasileira, clássicos do esoterismo e da magia, incluídas aí as obras de Helena Blavatsky e de mestres rosa-cruzes, e ainda o famoso Martelo das Bruxas. Um pouco de poesia: Shelley, Bandeira, Drummond, Manoel de Barros.

 

Não pôde ver muito mais porque logo uma secretária (ou o que parecia ser uma) toda vestida em Chanel, veio chamá-la:

-- Senhorita Maria Alcina, Madame Circe pode recebê-la agora.

 

Alcina esperava encontrar uma senhora mais para gorda, vestida em trajes exóticos, saias longas e rodadas, blusa de mangas bufantes,  usando colares e pulseiras e brincos e turbante... a imagem clássica das cartomantes, quase todas, ciganas. Circe porém era tão ou mais elegante do que sua secretária. Esbelta. Cabelos grisalhos cortados no consagrado Chanel-de-nuca-batida, um muito bem moldado tailleur de linho branco, blusa de seda azul, meias de nylon, colar de pérolas de três voltas, sapatos clássicos de salto alto e uma flor azul na lapela.

 

Era impressionante – pensava Alcininha – quanto custaria tudo aquilo? Manter uma casa grande, com empregados, num dos mais nobres bairros de São Paulo, e aquele jardim extremamente belo e bem cuidado? Pensando que Circe tinha clientes da elite (como aquele – seria político? – figurão cujo automóvel saíra da garagem quando ela estava entrando) e sabendo que já pagara, por PIX, a quantia de 2.500 reais por uma simples consulta, imaginou que Circe faturaria, mensalmente, muito mais do que ela, com todo o seu currículo, mestrado, pós e mais seis anos de promoções dentro de um ramo dos mais ricos da indústria, o farmacêutico.

 

Trocados os primeiros cumprimentos formais, sentaram-se, uma em frente à outra, numa mesa de jacarandá em estilo clássico, retangular (Alcininha, em sua imaginação, julgara que Circe a atenderia numa mesa redonda e rústica).

 

-- Muito bem, Maria Alcina, em que posso ajudá-la?

 

Alcininha então narrou a ela o que a afligia, o fato de ser uma executiva bem-sucedida profissional e financeiramente, os namorados ocasionais que, segundo sua amiga Beth, pareciam temer a sua liberdade e a sua posição, e falou no desejo de viver um grande amor, como o que unia seus próprios pais.

 

Circe pegou um baralho comum (Alcina esperava que fosse o tarô), embaralhou-o e estendeu o monte fechado de cartas para que ela o cortasse, usando a sua mão esquerda.

 

-- Primeiro – disse Circe –  farei uma pergunta simples. Quero saber se esse grande amor está presente em seu destino ou não. Caso o baralho responda “não”, nossa consulta sobre esse assunto estará definitivamente encerrada e você jamais encontrará o amor dos seus sonhos. Aí então você poderá me consultar sobre outros assuntos, profissionais, pessoais, do presente, do futuro e do passado. Concorda?

 

Alcininha balançou a cabeça numa afirmativa.

 

Circe foi então dispondo as cartas em quatro montes separados, uma a uma. Pegou cada um deles, manuseou-os e separou-os sob um critério que Alcininha não saberia dizer qual fôra. De cada um dos quatro montes, desprezou algumas cartas e empilhou-as, afastando essa pilha. Reuniu as que sobraram, embaralhou-as novamente e agora, as dividiu em três montes. Repetiu, com estes, a operação anterior. Desprezou algumas cartas, afastando-as e uniu as que sobraram nos três montes, embaralhou-as, e agora as dividiu em dois. Pegou cada montinho (restavam pouquíssimas cartas) e separou cada um deles, desprezando algumas cartas e finalizou com apenas 4 cartas na mão. Colocou-as viradas para cima para que Alcininha as visse. Eram os quatro ases do baralho.

 

-- O baralho disse que sim – afirmou Circe num tom de triunfo – Você é uma das poucas privilegiadas, na Terra, que tem, sim, um grande e transcendente amor que a espera. Vamos ver agora, quem será ele.

 

Circe então pegou o tarô. Espalhou todas as 78 cartas, viradas para baixo e pediu a Alcina que fechasse os olhos e escolhesse uma delas.

 

-- O seu naipe é Paus – disse a cartomante, separando as cartas de paus das demais – Não me causa espanto, porque afinal o que há de mais importante agora e sua vida é o trabalho. Paus significa o trabalho, o sustento e, ainda, o esforço que fazemos para alcançar nossos objetivos profissionais.

 

Alcininha sentiu uma certa decepção. Esperava que, ao indagar sobre o amor, escolhesse, mesmo de olhos fechados, uma carta de copas.

 

Circe continuou: -- O naipe de paus está relacionado ao elemento Fogo e sugere que, para alcançarmos o que desejamos teremos que lutar com convicção. A primeira carta que você puxou é justamente o Ás de paus. Representa a iniciativa. O Ás é a carta máxima de cada naipe. O começo e o fim. Ele diz que é preciso investir, acreditar, lutar e acabará conseguindo o que procura.

 

Circe pediu a ela que novamente fechasse os olhos e retirasse uma segunda carta. Era o Nove.

 

-- O nove – prosseguiu simboliza o fim de um ciclo, o que significa que você está mais próxima do seu objetivo do que imagina. O nove de paus indica que você deverá, na luta que o às já sugeriu, procurar o equilíbrio entre o seu plano mental e seu plano físico, o que você nunca fez. (E aqui Alcina lembrou-se da conversa com sua amiga Beth) -- Você nunca – ou em pouquíssimas ocasiões – se deu conta da Força Interior que existe em você, mas é justamente essa Força que poderá auxiliá-la. Indica ainda que precisa acreditar mais em si mesma e nos seus próprios sentimentos e intuições pois, embora esteja enfrentando obstáculos, seu coração a colocou no bom caminho e você deve insistir em apostar no amor.

 

Mais uma. Era o quatro.

Circe riu: -- Nem vou me estender muito no significado dessa carta. O que importa lhe dizer é que o quatro de paus, entre outras indicações, diz que poderá surgir na sua vida um novo amor. Bom, anime-se! A próxima carta que você tirará agora será uma carta dos arcanos maiores. Até agora estivemos vendo os arcanos menores, eles dizem respeito ao nosso livre-arbítrio, ou seja, o papel que podemos ter na condução de nossas vidas, através de nossas escolhas e determinações. Mas o arcanos maiores indicam as diretrizes dos deuses, aquilo ao qual dificilmente poderemos escapar, aquilo que está acima das nossas influências. Pode tirar.

 

Alcininha titubeou. Circe não separara as cartas arcanos menores das cartas arcanos maiores. Como poderia afirmar que ela tiraria uma dessa últimas?

 

-- Você disse que agora eu vou tirar uma carta arcano maior. Como pode ser, se aí estão todas misturadas, as maiores e as menores?

 

Circe sorriu: -- Vê como você duvida de sua Força Interior? Eu apenas avisei que será uma dessas... e será!

 

Alcininha fechou os olhos, tirou uma carta. Era justamente carta XI dos Arcanos Maiores: a Força.

 

Circe disse: - Veja, é a Força. Era sobre o que falávamos. Essa carta é sempre positiva. Com relação ao amor, ela assegura que você poderá encontrar, sem dúvida, um novo amor. Se unirmos todas as mensagens dessas cartas que surgiram aqui para você, só é possível tirar uma conclusão: esse amor verdadeiro, pelo qual você tanto anseia, está mais próximo a você do que imagina. O que você necessita agora, minha cara, é um mergulho interior, acreditar nesse seu Eu de dentro e o acesso a ele exige leveza, uma leveza que a racionalidade nos rouba. Pare de pensar sobre todas as coisas, permita-se começar a apenas sentir. Acostume-se a ouvir a voz da alma, da sua alma e a dos outros.

 

Alcininha olhou para ela, sem saber bem que o pensar. Pagara 2.500 reais para ouvir o mesmo conselho que, com outras palavras, lhe dera a sua amiga Beth?

 

Para sua surpresa a Maga falou:

-- Agora mesmo, nesse exato instante, o seu Eu Racional luta para abafar o seu Eu Interior. E isso acontece por sua vontade, pelo seu hábito de viver tentando explicar a vida, o mundo, o destino, tudo, pela razão. Foram os homens, os do sexo masculino quero dizer, que estabeleceram que a Razão manda no mundo. Nós, mulheres, porém, nunca acreditamos nisso. A intuição é forte em nosso sexo, exatamente porque faz parte do conjunto de atributos físicos e mentais com os quais a Natureza nos privilegiou para podermos exercer plenamente a Maternidade. Seu amor de verdade está mais perto de você do que você pensa. Só não o está enxergando porque olha a todos, ao seu redor, com os olhos da racionalidade. Tente ver com o coração, com seus sentimentos e emoções, e você o descobrirá.

 

Alcininha balançou a cabeça, com um riso irônico e disse:

 

-- Não tenho a mais mínima ideia de como proceder para poder enxergar com os olhos da intuição e do sentimento.

 

-- Já lhe disse – respondeu Circe – com leveza. Relaxe. Não pense. Apenas ouça o que diz o seu Eu Interior. Será difícil no começo, mas, como dizem os arcanos menores que apareceram aqui hoje, com esforço e determinação você conseguirá.

 

-- Isso é tudo? – perguntou Maria Alcina.

 

-- Não – riu Circe – Ainda não vimos quem é esse seu amor!

 

-- Ah – fez Alcininha – e podemos saber também isso? Quem é ele?

 

-- O Tarô nos dirá que tipo de pessoa é ele. Caberá a você descobri-lo.

 

Circe misturou as cartas sobre a mesa e disse: -- Olhos fechados, pode tirar!

 

Saiu um Rei de Paus.

-- Aí está – disse Circe – Um homem de ação, regido pelo elemento Fogo, um homem com um cargo importante ou uma posição de grande poder. O Rei de Paus, no amor, aponta para uma relação sólida, calcada em bases profundas e com a segurança material para constituir uma família. Você é uma mulher poderosa e de trajetória profissional, ascendente. Decerto deve estar cercada de alguns homens com essas características. Aprenda a abrir os olhos da alma para poder encontra-lo. Boa sorte – acrescentou já levantando-se e dando a consulta por terminada.

 

-- Obrigada – respondeu Maria Alcina, levantando-se também. Apertaram-se as mãos e Alcina saiu da sala sem olhar para trás.

 

Na alameda de pedras, seu carro, dirigido pelo manobrista a quem ela o entregara na entrada, já a esperava. O mordomo se aproximou, fazendo um sinal ao manobrista, para que aguardasse. Trazia uma cesta, muito bem embalada em papel celofane, com uma muda de Belladona.

 

-- A patroa percebeu que a senhora admira essa flor e pediu que aceitasse essa pequena lembrança de sua visita. A planta gosta de locais sombreados onde pode receber algum sol direto pela manhã ou à tarde. Regue com moderação e ela crescerá sadia, trazendo-lhe muitas alegrias e carregando o ambiente com energias positivas.

 

O manobrista acomodou o presente no chão, sobre o carpete, atrás do banco do carona.

 

...

 

-- E então? – perguntou Beth acariciando as folhas da Belladona que descansava no parapeito da janela do apartamento de Alcina – Não só descobriu que terá um amor como ainda ganhou um presente?

 

Alcininha riu:

-- Um presente meio caro, diga-se de passagem. Essa mulher, se receber 4 clientes por dia, 5 dias por semana, 20 dias por mês, ou seja trabalhando pouco, fatura 200 mil reais em um mês!

 

-- A casa é linda, não? – disse Beth – e o jardim então... Parece mesmo a casa de uma fada. Entrei lá e me senti num Castelo Encantado, desses de livro, cheio de magia, energia positiva e um maravilhoso perfume no ar.

 

-- Somos mesmo completamente diferentes – disse Alcina – Achei a casa bonita e bem cuidada, mas não vi nada disso que você viu.

 

-- É porque – respondeu Beth – você ainda não sabia ver com os olhos da alma e do coração!

 

Alcininha riu: -- É, ainda não sei!

 

...

O diretor da sucursal, em Salvador, da empresa onde Alcininha trabalhava, sempre que vinha à São Paulo, olhava para aquela fria mulher, a gerente de marketing, com olhos ternos, e ao mesmo tempo sensuais. Nesses seis anos de empresa, todo mundo sabia que o Dr. Hércules, diretor em Salvador, estava apaixonado por ela. Todo mundo, menos ela própria.

 

Naquela tarde, finda a reunião, ele muniu-se de toda a sua coragem, aproximou-se da mesa de trabalho dela e disse:

 

-- Maria Alcina, vou ficar em São Paulo por mais alguns dias para resolver algumas questões particulares. Confesso que não estou familiarizado com os excelentes restaurantes que existem aqui. Você aceitaria me levar a conhecer algum deles e jantar comigo essa noite?

 

Ela titubeou. Olhou para ele. Chamava-se Hércules, como o deus grego, era um homem um pouco mais velho que ela, de porte atlético, moreno do sol da Bahia, e muito bonito. Pensou imediatamente no que diriam as más línguas da empresa quando soubessem que ela saíra com o diretor da sucursal. Sentiu uma forte atração por ele, coisa que nunca sentira, mal pensara nele como alguém além do cargo que ocupava. Era o seu Rei de Paus, mas Alcina, usando de seu pensamento racional, negou-se a perceber. Disse:

-- Oh, Dr. Hércules. Eu lamento muitíssimo, mas já tenho um compromisso para hoje à noite.

 

-- Ok – disse ele, desapontado – Outra noite, talvez. – E afastou-se.

 

As cartas não mentiram. Ela é que se negou a deixar-se levar pelo coração e foi incapaz de perceber que o amor estava ao seu lado.

 

Anos depois, ainda sozinha e agora presidente da empresa para a América Latina, conhecida profissionalmente como implacável e de uma exigência doentia, lembrou-se de tudo o que Circe lhe dissera, havia tanto tempo. E percebeu que, na fala da Maga, havia muitas possibilidades e, de fato, nenhuma certeza. Percebeu que teria cabido a ela abrir sua alma, ainda que com esforço (esforço esse que ela não fizera, afinal) para reconhecer o Rei de Paus, quando o encontrasse. Uma dor fina a atingiu na região do peito. Poderia ser ele! Poderia ser Hércules, mas ela se negou a descobrir. Estúpida! – pensou sobre si mesma. Estivera com o amor nas mãos e o deixara escorrer por entre os dedos! A dor fina foi crescendo dentro de seu peito. É o meu coração, percebeu. Coração a quem nunca dei espaço! Tinha apenas 46 anos de idade. E se foi, naquele instante, por um infarto fulminante. Teve tempo, ainda, de pensar, antes da partida: Talvez numa outra vida; afinal, cartas não mentem.

 

Em sua bonita sala, agora em um vaso enorme, as flores da Belladona começaram, uma a uma, a murchar.


Contos das vidas dessa mesma alma:

  1. Selena, a da Lua Cheia (1918, São Paulo)

  2. Origens, A Viagem Espacial das Almas (em Capella)

  3. Kieza, a Escrava (no Império Brasileiro)

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